
METAFÍSICA DAS ROSAS
Pour la rose, le jardinier est immortel,
car de mémoire de rose, on n’a pas vu
mourir un jardinier.
FONTENELLE
LIVRO PRIMEIRO
No princípio era o Jardineiro. E o
Jardineiro criou as Rosas. E tendo criado
as Rosas, criou a chácara e o jardim, com todas as coisas que neles vivem para glória e contemplação das
Rosas. Criou a palmeira, a grama. Criou as folhas, os galhos, os troncos e
botões. Criou a terra e o estrume. Criou as árvores grandes para que amparassem
o toldo azul que cobre o jardim e a chácara, e ele não caísse e esmagasse as Rosas. Criou as
borboletas e os vermes. Criou o sol, as brisas, o orvalho e as chuvas.
Grande é o Jardineiro! Suas longas
pernas são feitas de tronco eterno. Os braços são galhos que nunca morrem; a
espádua é como um forte muro por onde a erva trepa. As mãos, largas, espalham
benefícios às Rosas.
Vede agora mesmo. A noite voou,
amanhã clareia o céu, cruzam-se as borboletas e os passarinhos, há uma chuva de
pipilos e trinados no ar. Mas a terra estremece.
É o pé do Jardineiro que caminha para as Rosas. Vede: traz nas mãos o regador
que borrifa sobre as Rosas a água fresca e pura, e assim também sobre as outras
plantas, todas criadas para glória das Rosas. Ele o formou no dia em que, tendo
criado o sol, que dá vida às Rosas, este começou a arder sobre a terra. Ele o
enche de água todas as manhãs, uma, duas,
cinco, dez vezes. Para a noite, pôs ele no ar um grande regador invisível que peneira orvalho; e
quando a terra seca e o calor abafa, enche o grande regador das chuvas que
alagam a terra de água e de vida.
LIVRO II
Entretanto, as Rosas estavam tristes,
porque a contemplação das coisas era muda e os olhos dos pássaros e das
borboletas não se ocupavam bastantemente das Rosas. E o Jardineiro, vendo-as tristes, perguntou-lhes:
— Que tendes vós, que inclinais as
pétalas para o chão? Dei-vos a chácara e o jardim; criei o sol e os ventos
frescos; derramo sobre vós o orvalho e a chuva; criei todas as plantas para que
vos amem e vos contemplem. A minha mão detém no meio do ar os grandes pássaros
para que vos não esmaguem ou devorem. Sois as princesas da terra. Por que
inclinais as pétalas para o chão?
Então as Rosas murmuraram que estavam
tristes porque a contemplação das coisas era muda, e elas queriam quem cantasse
os seus grandes méritos e as servisse.
O Jardineiro sacudiu a cabeça com um
gesto terrível; o jardim e a chácara
estremeceram até aos fundamentos. E assim falou ele, encostado ao bastão que trazia:
— Dei-vos tudo e não estais satisfeitas?
Criei tudo para vós e pedis mais? Pedis a contemplação de outros olhos; ides
tê-la. Vou criar um ente à minha imagem que vos servirá, contemplará e viverá milhares
e milhares de sóis para que vos sirva e ame.
E, dizendo isto, tomou de um velho tronco
de palmeira e de um facão. No
alto do tronco
abriu duas fendas iguais aos seus
olhos divinos, mais abaixo outra igual à
boca; recortou as orelhas, alisou o nariz, abriu-lhe os braços, as pernas, as
espáduas. E, tendo feito o vulto, soprou-lhe em cima e ficou um homem. E então
lançou mão de um tronco de laranjeira,
rasgou os olhos e a boca, contornou os braços e as pernas e soprou-lhe também
em cima, e ficou uma mulher.
E como o homem e a mulher adorassem o
Jardineiro, ele disse-lhes:
— Criei-vos para o único fim de
amardes e servirdes as Rosas, sob pena
de morte e abominação, porque eu sou o Jardineiro e elas são as senhoras da
terra, donas de tudo o que existe: o sol e a chuva, o dia e a noite, o orvalho
e os ventos, os besouros, os colibris, as andorinhas, as plantas todas, grandes
e pequenas, e as flores, e as sementes das flores, as formigas, as borboletas,
as cigarras os filhos das cigarras.
LIVRO III
O homem e a mulher tiveram filhos e
os filhos outros filhos, e disseram eles entre si:
— O Jardineiro criou-nos para amar e
servir as Rosas; façamos festas e danças
para que as Rosas vivam alegres.
Então vieram à chácara e ao jardim, e
bailaram e riram, e giraram em volta das Rosas, cortejando-as e sorrindo para
elas. Vieram também outros e cantaram em verso os merecimentos da Rosas. E quando
queriam falar da beleza de alguma filha das mulheres faziam comparação com as
Rosas, porque as Rosas são as maiores belezas
do universo, elas são as senhoras de tudo o que vive e respira.
Mas, como as Rosas parecessem
enfaradas da glória que tinham no jardim,
disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres: Façamos outras grandes festas que as alegrem.
Ouvindo isto, o Jardineiro disse-lhes: — Não; colhei-as primeiro, levai-as
depois a um lugar de delícias que vos
indicarei.
Vieram então os filhos dos homens e
as filhas das mulheres e colheram as
Rosas, não só as que estavam abertas como algumas ainda não desabrochadas; e depois as puseram
no peito, na cabeça ou em grandes
molhos, tudo conforme ordenara o Jardineiro. E levando-as para fora do jardim,
foram com elas a um lugar de delícias, misterioso e remoto, onde todos os
filhos dos homens e todas as filhas das mulheres as adoram prostrados no chão.
E depois que o Jardineiro manda embora o sol, pega das Rosas cortadas pelos homens e pelas mulheres, e uma
por uma prega-as no toldo azul que cobre
a chácara e o jardim, onde elas ficam cintilantes
durante a noite. E é assim que não faltam luzes que clareiem a noite quando o
sol vai descansar por trás das grandes árvores do ocaso.
Elas brilham, elas cheiram, elas dão
as cores mais lindas da terra. Sem elas nada haveria na terra, nem o sol, nem o
jardim, nem a chácara, nem os ventos,
nem as chuvas, nem os homens, nem as mulheres, nada mais do que o Jardineiro,
que as tirou do seu cérebro, porque elas são os pensamentos do Jardineiro, desabrochadas no ar e
postas na terra, criada para elas e para glória delas. Grande é o Jardineiro! Grande e
eterno é o pai sublime das rosas
sublimes.
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis,Vol. III Rio de Janeiro: Nova Aguilar,, 1994. Publicado originalmente em Gazeta Literária, 1º. de dezembro de 1883.
Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis,Vol. III Rio de Janeiro: Nova Aguilar,, 1994. Publicado originalmente em Gazeta Literária, 1º. de dezembro de 1883.
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