
LETRA VENCIDA
CAPÍTULO
PRIMEIRO
Eduardo B. embarca amanhã para a
Europa. Amanhã quer dizer 24 de abril de 1861, pois estamos a 23, à noite, uma triste
noite para ele, e para Beatriz. —
Beatriz! repetia ele, no jardim, ao pé da janela donde a moça se debruçava estendendo-lhe
a mão.
De cima, — porque a janela ficava a
cinco palmos da cabeça de Eduardo, — de cima
respondia a moça com lágrimas, verdadeiras lágrimas de dor. Era a primeira grande
dor moral que padecia, e, contando apenas dezoito anos, começava cedo. Não
falavam alto; poderiam chamar a atenção da gente da casa. Note-se que Eduardo
despedira-se da família de Beatriz naquela mesma noite, e que a mãe dela e o
pai, ao vê-lo sair, estavam longe de pensar que entre onze horas e meia-noite,
voltaria o moço ao jardim para fazer uma despedida mais formal. Além disso, os
dois cães da casa impediriam a entrada de algum intruso. Se tal supuseram é que
não advertiram na tendência corruptora do amor. O amor peitou o jardineiro, e
os cães foram recolhidos modestamente para não interromper o último diálogo de dois corações aflitos.
Último? Não é último; não pode ser
último. Eduardo vai completar os estudos, e tirar carta de doutor em
Heidelberg; a família vai com ele, disposta a ficar algum tempo, um ano, em
França; ele voltará depois. Tem vinte e um anos, ela dezoito: podem esperar.
Não, não é o último diálogo. Basta ouvir os protestos que eles murmuram, baixinho, entre si e Deus, para crer
que esses dois corações podem ficar separados pelo mar, mas que o amor os uniu
moralmente e eternamente. Eduardo jura que a levará consigo, que não pensará em
outra coisa, que a amará sempre, sempre, sempre, de longe ou de perto, mais do
que aos próprios pais.
— Adeus, Beatriz!
— Não, não vá já!
Tinha batido uma hora em alguns
relógios da vizinhança, e esse golpe seco, soturno, pingando de pêndula em
pêndula, advertiu ao moço de que era tempo de sair; podiam ser descobertos. Mas ficou; ela
pediu-lhe que não fosse logo, e ele deixou-se estar, cosido à parede, com os
pés num canteiro de murta e os olhos no peitoril da janela. Foi então que ela
lhe desceu uma carta; era a resposta de outra, em que ele lhe dava certas
indicações necessárias à correspondência secreta, que iam continuar através do
oceano. Ele insistiu verbalmente em algumas das recomendações; ela pediu certos
esclarecimentos. O diálogo interrompia-se; os
intervalos de silêncio eram suspirados e
longos. Enfim bateram duas horas: era o rouxinol? Era a cotovia? Romeu
preparou-se para ir embora; Julieta pediu alguns minutos.
intervalos de silêncio eram suspirados e
longos. Enfim bateram duas horas: era o rouxinol? Era a cotovia? Romeu
preparou-se para ir embora; Julieta pediu alguns minutos.
— Agora, adeus, Beatriz; é preciso!
murmurou ele dali a meia hora.
— Adeus! Jura que não se esquecerá de
mim?
— Juro. E você?
— Juro também, por minha mãe, por
Deus!
— Olhe, Beatriz! Aconteça o que
acontecer, não me casarei com outra; ou com você, ou com a morte. Você é capaz de jurar a
mesma coisa?
— A mesma coisa; juro pela salvação
de minh’alma! Meu marido é você; e Deus que me ouve há de ajudar-nos. Crê em
Deus, Eduardo; reza a Deus, pede a Deus por
nós.
Apertaram as mãos. Mas um aperto de
mão era bastante para selar tão grave escritura? Eduardo teve a idéia de trepar
à parede; mas faltava-lhe o ponto de apoio. Lembrou-se de um dos bancos do
jardim, que tinha dois, do lado da frente; foi a ele, trouxe-o, encostou-o à
parede, e subiu; depois levantou as mãos ao peitoril; e suspendeu o corpo;
Beatriz inclinou-se, e o eterno beijo de Verona conjugou os dois infelizes. Era
o primeiro. Deram três horas; desta vez era a cotovia.
— Adeus!
— Adeus!
Eduardo saltou ao chão; pegou do
banco, e foi repô-lo no lugar próprio. Depois tornou à janela, levantou a mão,
Beatriz desceu a sua, e um enérgico e derradeiro aperto terminou essa despedida, que era também
uma catástrofe. Eduardo afastou-se da
parede, caminhou para a portinha lateral do jardim, que estava apenas cerrada,
e saiu. Na rua, a vinte ou trinta passos, ficara de vigia o obsequioso
jardineiro, que unira ao favor a discrição, colocando-se a distância tal, que nenhuma palavra pudesse chegar-lhe aos
ouvidos. Eduardo, embora já lhe houvesse pago a cumplicidade, quis deixar-lhe
ainda uma lembrança de última hora, e meteu-lhe na mão uma nota de cinco
mil-réis.
No dia seguinte verificou-se o
embarque. A família de Eduardo compunha-se dos pais e uma irmã de doze anos. O
pai era comerciante e rico; ia passear alguns meses e fazer completar os
estudos do filho em Heidelberg. Esta idéia de Heidelberg parecerá um pouco
estranha nos projetos de um homem, como João B., pouco ou nada lido em coisas
de geografia científica e universitária; mas sabendo-se que um sobrinho dele,
em viagem na Europa, desde 1857, entusiasmado com a Alemanha, escrevera de
Heidelberg algumas cartas exaltando o ensino daquela Universidade, ter-se-á
compreendido essa resolução.
Para Eduardo, ou Heidelberg ou
Hong-Kong, era a mesma coisa, uma vez que o arrancavam do único ponto do globo
em que ele podia aprender a primeira das ciências, que era contemplar os olhos
de Beatriz. Quando o paquete deu as primeiras rodadas na água e começou a
mover-se para a barra, Eduardo não pôde reter
as lágrimas, e foi escondê-las no camarote. Voltou logo acima, para ver ainda a cidade, perdê-la pouco a pouco, por
uma ilusão da dor, que se contentava de um retalho, tirado à purpura da
felicidade moribunda. E a cidade, se tivesse olhos para vê-lo, podia também
despedir-se dele com pesar e orgulho, pois era um esbelto rapaz, inteligente e
bom. Convém dizer que a tristeza de deixar o Rio de Janeiro também lhe doía no
coração. Era fluminense, não saíra nunca deste ninho
paterno, e a saudade local vinha casar-se à
saudade pessoal. Em que proporções, não
sei. Há aí uma análise difícil, mormente agora, que não podemos mais distinguir
a figura do rapaz. Ele está ainda na amurada; mas o paquete transpôs a barra, e
vai perder-se no horizonte.
paterno, e a saudade local vinha casar-se à
saudade pessoal. Em que proporções, não
sei. Há aí uma análise difícil, mormente agora, que não podemos mais distinguir
a figura do rapaz. Ele está ainda na amurada; mas o paquete transpôs a barra, e
vai perder-se no horizonte.
CAPÍTULO
II
Para que hei de dizer que Beatriz
deixou de dormir o resto da noite? Subentende- se que as últimas horas dessa
triste noite de 23 de abril foram para ela de vigília e desespero. Direi
somente que também foram de devoção. Beatriz, logo que Eduardo transpôs a porta
do jardim, atirou-se à cama soluçando e sufocando os soluços, para não ser
ouvida. Quando a dor amorteceu um pouco, levantou-se e foi ao oratório de suas
rezas noturnas e matinais; ajoelhou-se e encomendou a Deus, não a felicidade, mas a consolação de
ambos.
A manhã viu-a tão triste como a
noite. O sol, na forma usual, mandou um dos seus raios mais jucundos e vivos ao rosto de
Beatriz, que desta vez o recebeu sem ternura nem gratidão. De costume, ela dava
a esse raio amado todas as expansões de
uma alma nova. O sol, pasmado da indiferença, não interrompeu todavia o seu
curso; tinha outras Beatrizes que saudar, umas risonhas, outras lacrimosas, outras apáticas, mas todas
Beatrizes... E lá se foi o D. João do azul, espalhando no ar um milhão daquelas
missivas radiosas.
Não menos pasmada ficou a mãe ao
almoço. Beatriz mal podia disfarçar os olhos cansados de chorar; e sorria, é verdade, mas
um sorriso tão forçado, tão de obséquio e dissimulação, que realmente faria
descobrir tudo, se desde alguns dias antes, as maneiras de Beatriz não tivessem
revelado tal ou qual alteração. A mãe supunha alguma moléstia; agora,
sobretudo, que os olhos da moça tinham um ar febril, pareceu-lhe que era caso
de doença incubada.
— Beatriz, você não está boa, disse
ela à mesa.
— Sinto-me assim não sei como...
— Pois tome só chá. Vou mandar vir o
doutor...
— Não é preciso; se continuar amanhã,
sim.
Beatriz tomou chá, nada mais do que
chá. Como não tinha vontade de outra coisa, tudo se combinou assim, e a
hipótese da doença foi aparentemente confirmada.
Ela aproveitou-a para meter-se no
quarto o dia inteiro, falar pouco, não fazer toilette, etc. Não
chamaram o médico, mas ele veio por si mesmo, o Tempo, que com uma de suas
velhas poções abrandou a vivacidade da dor, e tornou o organismo ao estado
anterior, tendo de mais uma saudade profunda, e a imortal esperança.
Realmente, só sendo imortal a esperança,
pois tudo conspirava contra ela. Os pais de ambos os namorados tinham a seu
respeito projetos diferentes. O de Eduardo meditava para este a filha de um
fazendeiro, seu amigo, moça prendada, capaz de o fazer feliz, e digna de o ser
também; e não meditava só consigo, porque o fazendeiro nutria iguais idéias.
João B. chegara mesmo a insinuá-lo ao filho, dizendo-lhe que na Europa iria
vê-lo alguém que provavelmente o ajudaria a concluir os estudos. Este foi, com
efeito, o plano dos dois pais; seis meses depois, iria o fazendeiro com a
família à Alemanha, onde casariam os filhos.
Quanto ao
pai de Beatriz,
os seus projetos
eram ainda mais
definitivos, se é possível.
Tratava de aliar a filha a um jovem político, moço de futuro, e tão digno de
ser marido de Beatriz, como a filha do fazendeiro era digna de ser mulher de
Eduardo. Esse candidato, Amaral, freqüentava a
casa, era aceito a todos, e tratado como pessoa de família, e com um tal
respeito e carinho, um desejo tão intenso de o mesclar ao sangue da casa, que realmente
faria rir ao rapaz, se ele próprio não estivesse namorado de Beatriz. Mas
estava-o, e grandemente namorado; e tudo isso aumentava o perigo da situação.
Eduardo. Esse candidato, Amaral, freqüentava a
casa, era aceito a todos, e tratado como pessoa de família, e com um tal
respeito e carinho, um desejo tão intenso de o mesclar ao sangue da casa, que realmente
faria rir ao rapaz, se ele próprio não estivesse namorado de Beatriz. Mas
estava-o, e grandemente namorado; e tudo isso aumentava o perigo da situação.
Não obstante, a esperança subsistia
no coração de ambos. Nem a distância, nem os cuidados diversos, nem o tempo, nem os
pais, nada diminuía o viço dessa flor misteriosa e constante. Não disseram
outra coisa as primeiras cartas, recebidas por um modo tão engenhoso e tão
simples, que vale a pena contá-lo aqui, para uso de outros desgraçados. Eduardo
mandava as cartas a um amigo; este passava-as a uma irmã, que as entregava a
Beatriz, de quem era amiga e companheira de colégio. Geralmente as companheiras
de colégio não se recusam a estes pequenos obséquios, que podem ser recíprocos;
em todo o caso, — são humanos. As duas primeiras cartas, assim recebidas, foram
a transcrição dos protestos feitos naquela noite de 23 de abril de 1861;
transcrição feita com tinta, mas não
menos valiosa e sincera do que se o fora com sangue. O mar, que deixou passar
essas vozes concordes de duas almas violentamente separadas, continuou o
perpétuo movimento da sua instabilidade.
CAPÍTULO
III
Beatriz voltou aos hábitos
anteriores, aos passeios, saraus e teatros do costume. A tristeza, de aguda que
era e manifesta, tornou-se escondida e crônica. No rosto era a mesma Beatriz, e
tanto bastava à sociedade. Naturalmente não tinha a mesma paixão da dança, nem
a mesma vivacidade de maneiras; mas a idade explicava a atenuação. Os dezoito
anos estavam feitos; a mulher completara-se.
Quatro meses depois da partida de
Eduardo, entendeu a família da moça apressar o casamento desta; e eis aqui as
circunstâncias da resolução.
Amaral cortejava a moça
ostensivamente, dizia-lhe as finezas usuais, freqüentava a casa, ia onde ela
fosse; punha o coração em todas as ações e palavras. Beatriz entendia tudo e
não respondia a nada. Usou duas políticas diferentes. A primeira foi mostrar-se
de uma tal ignorância que o pretendente achasse mais razoável esquecê-la. Pouco
durou esta; era improfícua, tratando-se de um homem verdadeiramente apaixonado.
Amaral teimou; vendo-se desentendido, passou a linguagem mais direta e clara.
Então começou a segunda política; Beatriz mostrou que entendia, mas deixou ver
que nada era possível entre ambos. Não importa; ele teimou ainda mais. Nem por
isso venceu. Foi então que o pai de Beatriz interveio.
— Beatriz, disse-lhe o pai, tenho um
marido para ti, e estou certo que vais aceitá-lo...
— Papai...
— Mas ainda que, a princípio recuses,
não por ser indigno de nós; não é indigno, ao contrário; é pessoa muito
respeitável... Mas, como ia dizendo, ainda que a tua primeira palavra
seja contra o
noivo, previno-te que
é desejo meu
e há de cumprir-se.
Beatriz fez um movimento de cabeça,
rápido, espantado. Não estava acostumada àquele modo, não esperava a intimação.
— Digo-te que é um moço sério e
digno, repetiu. Que respondes?
— Nada.
— Aceitas então?
— Não, senhor.
Desta vez foi o pai que teve um
sobressalto; não por causa da recusa; ele esperava-a, e estava resolvido a
vencê-la, segundo a avisou desde logo. Mas o que o espantou foi a prontidão da
resposta.
— Não? disse ele daí a um instante.
— Não, senhor.
— Sabes o que estás dizendo?
— Sei, sim, senhor.
— Veremos se não, bradou o pai
levantando-se, e batendo com a cadeira no chão; veremos se não! Tem graça! Não, a mim! Quem
sou eu? Não! E por que não? Naturalmente, anda aí algum petimetre sem presente
nem futuro, algum bailarino, ou estafermo. Pois veremos...
E ia de um lado para outro, metendo
as mãos nas algibeiras da calça, tirando-as, passando-as pelos cabelos,
abotoando e desabotoando o paletó, fora de si, irritado.
Beatriz deixara-se estar sentada com
os olhos no chão, tranqüila, resoluta. Em certo momento, como o pai lhe parecesse
exasperado demais, levantou-se e foi a ele para aquietá-lo um pouco; mas ele
repeliu-a.
— Vá-se embora, disse-lhe; vá
refletir no seu procedimento, e volte quando estiver disposta a pedir-me
perdão.
— Isso já; peço-lhe perdão já, papai...
Não quis ofendê-lo; nunca o ofendi... Perdoe-me; vamos, perdoe-me.
— Mas recusas?
— Não posso aceitar.
— Sabes quem é?
— Sei: o Dr. Amaral.
— Que tens contra ele?
— Nada; é um moço distinto.
O pai passou a mão pelas barbas.
— Gostas de outro.
Beatriz calou-se.
— Vejo que sim; está bem. Quem quer
que seja, não terá nunca a minha aprovação.
Ou o Dr. Amaral, ou nenhum mais.
— Nesse caso, nenhum mais, respondeu
ela.
— Veremos.
CAPÍTULO
IV
Não percamos tempo. Beatriz não casou
com o noivo que lhe davam; não aceitou outro que apareceu no ano seguinte;
mostrou uma tal firmeza e decisão, que encheu o pai de assombro.
Assim se passaram os dois primeiros
anos. A família de Eduardo voltou da Europa; este ficou, para tornar quando
acabasse os estudos. “Se me parecesse, ia já (dizia ele em uma carta à moça),
mas quero conceder isto, ao menos, a meu pai: concluir os estudos.”
Que ele estudava, é certo, e não
menos certo é que estudava muito. Tinha vontade de saber, além do desejo de
cumprir, naquela parte, as ordens do pai. A Europa oferecia-lhe também alguns
recreios de diversa espécie. Ele ia nas férias à França e à Itália, ver as
belas-artes e os grandes monumentos. Não é impossível que, algumas vezes,
incluísse no capítulo das artes e na classe dos monumentos algum namoro de
ordem passageira; creio mesmo que é negócio liquidado. Mas, em que é que essas pequenas excursões em terra
estranha lhe faziam perder o amor da pátria, ou, menos figuradamente, em que é
que essas expansões miúdas do sentimento
diminuíam o número e a paixão das cartas que mandava a Beatriz?
Com efeito, as cartas eram as mesmas
de ambos os lados, escritas com igual ardor às das primeiras semanas, e nenhum
outro método. O método era o de um diário.
As cartas eram compostas dia por dia, como uma nota dos sentimentos e dos
pensamentos de cada um deles, confissão de alma para alma. Parecerá admirável
que este uso fosse constante no espaço de um, dois, três anos; que diremos
cinco anos, sete anos! Sete, sim, senhora; sete, e mais. Mas fiquemos nos sete, que é a data do rompimento entre as
duas famílias.
Não importa saber por que brigaram as
duas famílias. Brigaram; é o essencial. Antes do rompimento desconfiaram os
dois pais que os filhos tinham-se jurado alguma coisa antes da separação, e não
estavam longe de concordar em que se casassem. Os projetos de cada um deles
tinham naufragado; eles estimavam-se; nada
havia mais natural do que aliarem-se mais intimamente. Mas brigaram; veio não
sei que incidente estranho, e a amizade converteu-se em ódio.
Naturalmente um e outro pensaram logo
na possibilidade do consórcio dos filhos, e trataram de afastá-los. O pai de
Eduardo escreveu a este, já diplomado, dizendo que o esperasse na Europa; o de
Beatriz inventou um pretendente, um rapaz desambicioso que jamais pensaria em
pedi-la, mas que o fez, animado pelo pai.
— Não, foi a resposta de Beatriz.
O pai ameaçou-a; a mãe pediu-lhe por
tudo o que havia de mais sagrado, que aceitasse o noivo; mostrou-lhe que eles
estavam velhos, e que ela precisava ficar amparada. Foi tudo inútil. Nem esse
pretendente nem outros que vieram, uns por mão do pai, outros por mão alheia.
Beatriz não iludia ninguém, ia dizendo a todos que não.
Um desses pretendentes chegou a
crer-se vencedor. Tinha qualidades pessoais distintas, e ela não desgostava dele,
tratava-o com muito carinho, e pode ser que sentisse algum princípio de
inclinação. Mas a imagem de Eduardo vencia tudo. As cartas dele eram o prolongamento de uma alma
querida e amante; e aquele candidato, como os outros, teve de recuar vencido.
— Beatriz, vou morrer dentro de
poucos dias, disse-lhe um dia o pai; por que me não dás o gosto de deixar-te
casada?
— Qual, morrer!
E não respondia à outra parte das
palavras do pai. Eram já passados nove anos da separação. Beatriz tinha então vinte e sete.
Via chegar os trinta com tranqüilidade e a pena na mão. Não seriam já diárias
as cartas, mas eram ainda e sempre pontuais; se algum paquete não as trazia ou
levava, a culpa era do correio, não deles.
Realmente, a constância era digna de nota e admiração. O mar separava-os, e
agora o ódio das famílias; e além desse obstáculo, deviam contar com o tempo,
que tudo afrouxa, e as tentações que eram muitas de um e outro lado. Mas apesar
de tudo, resistiam.
O pai de Beatriz morreu dali a
algumas semanas. Beatriz ficou com a mãe, senhora achacada de moléstias, e cuja
vida naturalmente não iria também muito longe. Esta consideração deu-lhe ânimo
para tentar os últimos esforços, e ver se morria deixando a filha casada.
Empregou os que pôde; mas o resultado não foi melhor.
Eduardo na Europa sabia tudo. A
família dele trasladou-se para lá, definitivamente, para o fim de o reter, e
tornar impossível o encontro dos dois. Mas, como as cartas continuavam, ele sabia tudo o que se passava
no Brasil. Teve notícia da morte do pai de Beatriz, e dos esforços empregados
por ele e depois pela mulher, viúva, para estabelecer a filha; e soube (pode
imaginar-se com que satisfação) da resistência da moça. O juramento da noite de
23 de abril de 1861 estava de pé, cumprido, observado à risca, como um preceito
religioso, e, o que é mais, sem que lhes custasse mais do que a pena da
separação.
Na Europa, morreu a mãe de Eduardo; e
o pai teve um instante idéias de voltar ao Brasil; mas era odiento, e a idéia
de que o filho podia então casar com Beatriz, fixou-o em Paris.
“Verdade é que ela não deve estar
muito tenra...” dizia ele consigo.
Eram então passados quinze anos.
Passaram-se mais alguns meses, e a mãe de Beatriz morreu. Beatriz ficou só, com trinta e
quatro anos. Teve idéia de ir para Europa, com alguma dama de companhia; mas
Eduardo contava então vir ao Rio de Janeiro arranjar alguns negócios do pai,
que estava doente. Beatriz esperou; mas Eduardo não veio. Uma amiga dela, confidente
dos amores, dizia-lhe:
— Realmente, Beatriz, você tem uma
paciência!
— Não me custa nada.
— Mas esperar tanto tempo! Quinze
anos!
— Nada mais natural, respondia a
moça; eu suponho que estamos casados, e que ele anda em viagem de negócios. É a
mesma coisa.
Essa amiga estava casada; tinha já
dois filhos. Outras amigas e companheiras de colégio tinham casado também.
Beatriz era a única solteira, e solteira abastada e pretendida. Agora mesmo,
não lhe faltavam candidatos; mas a fiel Beatriz conservava-se como dantes.
Eduardo não veio ao Brasil, segundo
contava, nem naquele nem no ano seguinte. As doenças do pai agravaram-se, tornaram-se
longas; e nisto correram mais dois anos. Só então o pai de Eduardo morreu, em
Nice, no fim de 1878. O filho arranjou os primeiros negócios e embarcou para o
Rio de Janeiro.
— Enfim!
Tinham passado dezoito anos. Posto
que eles tivessem trocado os retratos, mais de uma vez durante esse lapso de
tempo, acharam-se diferentes do que eram na noite da separação. Tinham passado
a idade dos primeiros ardores; o sentimento que os animava era brando, embora tenaz.
Vencida a letra, era razoável pagar;
era mesmo obrigatório. Trataram dos papéis; e dentro de poucas semanas, nos
fins de 1878, cumpriu-se o juramento de 1861. Casaram-se, e foram para Minas,
donde voltaram três meses depois.
— São felizes? perguntei a um amigo
íntimo deles, em 1879.
— Eu lhe digo, respondeu esse amigo
observador. Não são felizes nem infelizes; um e outro receberam do tempo a
fisionomia definitiva, apuraram as suas qualidades boas e não boas, deram-se a
outros interesses e hábitos, colheram o fastio e a marca da experiência, além
da surdina que os anos trazem aos movimentos do coração. E não viram essa
transformação operar-se dia por dia. Despediram-se uma noite, em plena
florescência da alma, para encontrarem-se carregados de fruto, tomados de ervas
parasitas, e com certo ar fatigado. Junte a isto o despeito de não achar o
sonho de outrora, e o de o não trazer consigo; pois cada um deles sente que não pode dar a espécie
de cônjuge que aliás deseja achar no outro; pense mais no arrependimento
possível e secreto de não terem aceitado outras alianças, em melhor quadra; e
diga-me se podemos dizê-los totalmente felizes.
— Então infelizes?
— Também não. Vivem, respeitam-se;
não são infelizes, nem podemos dizer que são felizes. Vivem, respeitam-se, vão
ao teatro...
---
---
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em A Estação, de
31/10/1882 a 30/11/1882.
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