
HISTÓRIA COMUM
... Caí na copa do chapéu de um homem
que passava... Perdoe-me este começo; é
um modo de ser épico. Entro em plena ação. Já o leitor sabe que caí, e caí na copa
do chapéu de um homem que passava; resta dizer donde caí e por que caí.
Quanto à minha qualidade de alfinete,
não é preciso insistir nela. Sou um simples alfinete vilão, modesto, não
alfinete de adorno, mas de uso, desses com que as mulheres do povo pregam os
lenços de chita, e as damas de sociedade os fichus, ou as flores, ou isto, ou
aquilo. Aparentemente vale pouco um alfinete; mas, na realidade, pode exceder ao próprio vestido.
Não exemplifico; o papel é pouco, não há senão o espaço de contar a minha
aventura.
Tinha-me comprado uma triste mucama.
O dono do armarinho vendeu-me, com mais onze irmãos, uma dúzia, por não sei
quantos réis; coisa de nada. Que destino! Uma triste mucama. Felicidade, — este
é o seu nome, — pegou no papel em que estávamos pregados, e meteu-o no baú. Não
sei quanto tempo ali estive; saí um dia de manhã para pregar o lenço de chita
que a mucama trazia ao pescoço. Como o
lenço era novo, não fiquei grandemente desconsolado. E depois a mucama era
asseada e estimada, vivia nos quartos das moças, era confidente dos seus
namoros e arrufos; enfim, não era um destino principesco, mas também não era um
destino ignóbil.
Entre o peito da Felicidade e o
recanto de uma mesa velha, que ela tinha na alcova, gastei uns cinco ou seis
dias. De noite, era despregado e metido numa caixinha de papelão, ao canto da
mesa; de manhã, ia da caixinha ao lenço. Monótono, é verdade; mas a vida dos
alfinetes, não é outra. Na véspera do dia em que se deu a minha aventura, ouvi
falar de um baile no dia seguinte, em casa de um desembargador que fazia anos.
As senhoras preparavam-se com esmero e afinco, cuidavam das rendas, sedas,
luvas, flores, brilhantes, leques, sapatos; não se pensava em outra coisa senão
no baile do desembargador. Bem quisera eu saber o que era um baile, e ir a ele;
mas uma tal ambição podia nascer na cabeça de um alfinete, que não saía do
lenço de uma triste mucama? — Certamente que não. O remédio era ficar em casa.
— Felicidade, diziam as moças, à
noite, no quarto, dá cá o vestido. Felicidade, aperta o vestido. Felicidade,
onde estão as outras meias?
— Que meias, nhanhã?
— As que estavam na cadeira...

— Uê! nhanhã! Estão aqui mesmo.
E Felicidade ia de um lado para
outro, solícita, obediente, meiga, sorrindo a todas, abotoando uma, puxando as
saias de outra, compondo a cauda desta, concertando o diadema daquela, tudo com
um amor de mãe, tão feliz como se fossem suas filhas. E eu vendo tudo. O que me
metia inveja eram os outros alfinetes. Quando os via ir da boca da mucama, que
os tirava da toilette, para o
corpo das moças, dizia comigo, que era bem bom ser alfinete de damas, e damas
bonitas que iam a festas.
— Meninas, são horas!
— Lá vou, mamãe! disseram todas.
E foram, uma a uma, primeiro a mais
velha, depois a mais moça, depois a do meio.
Esta, por nome Clarinha, ficou arranjando uma rosa no peito, uma linda rosa;
pregou-a e sorriu para a mucama.
— Hum! hum! resmungou esta. Seu
Florêncio hoje fica de queixo caído...
Clarinha olhou para o espelho, e
repetiu consigo a profecia da mucama. Digo isto, não só porque me pareceu vê-lo
no sorriso da moça, como porque ela voltou-se pouco depois para a mucama, e
respondeu sorrindo:
— Pode ser.
— Pode ser? Vai ficar mesmo.
— Clarinha, só se espera por você.
— Pronta, mamãe!
Tinha prendido a rosa, às pressas, e
saiu.
Na sala estava a família, dois carros
à porta; desceram enfim, e Felicidade com elas, até à porta da rua. Clarinha foi com a
mãe no segundo carro; no primeiro foi o pai com as outras duas filhas. Clarinha
calçava as luvas, a mãe dizia que era tarde;
entraram; mas, ao
entrar caiu a rosa do peito da moça. Consternação desta;
teima da mãe que era tarde, que não valia a pena gastar tempo em pregar a rosa
outra vez. Mas Clarinha pedia que se demorasse um instante, um instante só, e
diria à mucama que fosse buscar um alfinete.
— Não é preciso, sinhá; aqui está um.
Um era eu. Que alegria a de Clarinha!
Com que alvoroço me tomou entre os dedinhos, e me meteu entre os dentes,
enquanto descalçava as luvas. Descalçou-as: pregou comigo a rosa, e o carro
partiu. Lá me vou no peito de uma linda moça, prendendo uma bela rosa, com
destino ao baile de um desembargador. Façam-me o favor de dizer se Bonaparte
teve mais rápida ascensão. Não há dois minutos toda a minha prosperidade era o
lenço pobre de uma pobre mucama. Agora, peito de moça bonita, vestido de seda,
carro, baile, lacaio que abre a portinhola, cavalheiro que dá o braço à moça,
que a leva escada acima; uma escada suada de tapetes, lavada de luzes, aromada
de flores... Ah! enfim! eis-me no meu lugar.
Estamos na terceira valsa. O par de
Clarinha é o Dr. Florêncio, um rapaz bonito, bigode negro, que a aperta muito e
anda à roda como um louco. Acabada a valsa, fomos passear os três, ele
murmurando-lhe coisas meigas, ela arfando de cansaço e comoção, e eu fixo,
teso, orgulhoso. Seguimos para a janela. O Dr. Florêncio declarou que era tempo de autorizá-lo a
pedi-la.
— Não se vexe; não é preciso que me
diga nada; basta que me aperte a mão.
Clarinha apertou-lhe a mão; ele
levou-a à boca e beijou-a; ela olhou assustada para dentro.
— Ninguém vê, continuou o Dr.
Florêncio; amanhã mesmo escreverei a seu pai.
Conversaram ainda uns dez minutos,
suspirando coisas deliciosas, com as mãos presas. O coração dela batia! Eu, que
lhe ficava em cima, é que sentia as pancadas do pobre coração. Pudera! Noiva
entre duas valsas. Afinal, como era mister
voltar à sala, ele pediu-lhe um penhor, a rosa que trazia ao peito.
— Tome...
E despregando a rosa, deu-a ao
namorado, atirando-me, com a maior indiferença, à rua... Caí na copa do chapéu
de um homem que passava e...
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em A Estação, em 15/04/1883.
Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em A Estação, em 15/04/1883.
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