
HABILIDOSO
Paremos neste beco. Há aqui uma loja
de trastes velhos, e duas dúzias de casas pequenas, formando tudo uma espécie
de mundo insulado. Choveu de noite, e o sol ainda não acabou de secar a lama da
rua, nem o par de calças que ali pende de uma janela, ensaboado de fresco.
Pouco adiante das calças, vê-se chegar à rótula a cabeça de uma mocinha, que acabou
agora mesmo o penteado, e vem mostrá-lo cá fora; mas cá fora estamos apenas o
leitor e eu, mais um menino, a cavalo no
peitoril de outra janela, batendo com os calcanhares na parede, à guisa de
esporas, e ainda outros quatro, adiante, à porta da loja de trastes, olhando para
dentro.
A loja é pequena, e não tem muito que
vender, coisa pouco sensível ao dono, João Maria, que acumula o negócio com a
arte, e dá-se à pintura nas horas que lhe sobram da outra ocupação, e não são
raras. Agora mesmo está diante de uma pequena tela, tão metido consigo e com o
trabalho, que podemos examiná-lo a gosto, antes que dê por nós.
Conta trinta e seis anos, e não se
pode dizer que seja feio; a fisionomia, posto que trivial, não é desengraçada.
Mas a vida estragou a natureza. A pele, de fina que era nos primeiros anos, está agora áspera,
a barba emaranhada e inculta; embaixo do queixo, onde ele usa rapá-la, não
passa navalha há mais de quinze dias.
Tem o colarinho desabotoado e o peito à mostra; não veste paletó nem colete, e as mangas da camisa, arregaçadas,
mostram o braço carnudo e peludo. As calças são de brim pardo, lavadas há
pouco, e muito remendadas nos joelhos; remendos antigos, que não resistem à
lavadeira, que os desfia na água, nem à costureira, que os recompõe. Uma e
outra são a própria mulher de João Maria, que reúne aos dois misteres o de
cozinheira da casa. Não há criados; o filho, de seis para sete anos, é que lhes vai às
compras.
João
Maria veio para
este beco há
uns quinze dias. Conta fazer alguma
coisa, embora seja lugar de pouca passagem, mas não há, no bairro, outra casa
de trastes velhos, e ele espera que a notoriedade vá trazendo os fregueses.
Demais, não teve tempo de escolher;
mudou-se às pressas, por intimação do antigo proprietário. Ao menos, aqui o
aluguel é módico. Até agora, porém, não vendeu mais que um aparador e uma
gaiola de arame. Não importa; os primeiros tempos são mais difíceis. João Maria
espera, pintando.
Pintando o que, e para quê? João
Maria ignora absolutamente as primeiras lições do desenho, mas desde tenra idade pegou-lhe o
sestro de copiar tudo o que lhe caía nas mãos, vinhetas de jornais, cartas de
jogar, padrões de chitas, o papel das paredes, tudo. Também fazia bonecos de
barro, ou esculpia-os a faca nos sarrafos
e pedaços de caixão. Um dia aconteceu-lhe ir à exposição anual da
Academia das
Belas-Artes, e voltou de lá cheio de planos e ambições. Engenhou logo uma cena de assassinato, um conde que
matava a outro conde; rigorosamente, parecia oferecer-lhe um punhal. Engenhou
outros, alastrou as paredes, em casa, de narizes, de olhos, de orelhas; vendo
na Rua da Quitanda um quadro que representava um prato de legumes, atirou-se
aos legumes; depois, viu uma marinha, e tentou as marinhas.
Academia das
Belas-Artes, e voltou de lá cheio de planos e ambições. Engenhou logo uma cena de assassinato, um conde que
matava a outro conde; rigorosamente, parecia oferecer-lhe um punhal. Engenhou
outros, alastrou as paredes, em casa, de narizes, de olhos, de orelhas; vendo
na Rua da Quitanda um quadro que representava um prato de legumes, atirou-se
aos legumes; depois, viu uma marinha, e tentou as marinhas.
Toda arte tem uma técnica; ele
aborrecia a técnica, era avesso à aprendizagem, aos rudimentos das coisas. Ver
um boi, reproduzi-lo na tela, era o mais que, no sentir dele, se podia exigir
do artista. A cor apropriada era uma questão dos olhos, que Deus deu a todos os
homens; assim também a exação dos contornos e das atitudes dependia da atenção,
e nada mais. O resto cabia ao gênio do artista, e João Maria supunha tê-lo. Não
dizia gênio, por não conhecer o vocábulo, senão no sentido restrito de índole —
ter bom ou mau gênio —, mas repetia consigo mesmo a palavra, que ouvia aos
parentes e aos amigos, desde criança.
— João Maria é muito habilidoso.
Assim se explica que, quando alguém
disse um dia ao pai que o mandasse para a academia, e o pai consentiu em
desfazer-se dele, João Maria recusasse a pés juntos. Foi assim também que,
depois de andar por ofícios diversos, sem acabar nenhum, veio a abrir uma casa
de trastes velhos, para a qual se lhe não exigiam estudos preparatórios.
Nem aprendeu nada, nem possuía o
talento que adivinha e impele a aprender e a inventar. Via-se-lhe, ao menos,
alguma coisa parecida com a faísca sagrada? Coisa nenhuma. Não se lhe via mais que a
obstinação, filha de um desejo, que não correspondia às faculdades. Começou por
brinco, puseram-lhe a fama de habilidoso, e não pôde mais voltar atrás. Quadro
que lhe aparecesse, acendia-lhe os olhos, dava rebate às ambições da
adolescência, e todas vinham de tropel, pegavam dele, para arrebatá-lo a uma
glória, cuja visão o deslumbrava. Daí novo esforço, que o louvor a outros vinha
incitar mais, como ao brio natural do cavalo se junta o estímulo das esporas.
Vede a tela que está pintando, à
porta; é uma imagem de Nossa Senhora, copiada
de outra que viu um dia, e esta é a sexta ou sétima em que trabalha.
Um dia, indo visitar a madrinha,
viúva de um capitão que morreu em Monte Caseros, viu em casa dela uma Virgem, a
óleo. Até então só conhecia as imagens de santos nos registros das igrejas, ou
em casa dele mesmo, gravadas e metidas em caixilho. Ficou encantado; tão bonita!
cores tão vivas! Tratou de a decorar para pintar outra, mas a própria madrinha
emprestou-lhe o quadro. A primeira cópia que ele fez, não lhe saiu a gosto; mas
a segunda pareceu-lhe que era, pelo menos, tão boa como o original. A mãe dele,
porém, pediu-lha para pôr no oratório, e João Maria, que mirava o aplauso
público, antes do que as bênçãos do céu, teve de sustentar um conflito longo e
doloroso; afinal cedeu. E seja dito isto em honra dos seus sentimentos filiais,
porque a mãe, D. Inácia dos Anjos, tinha tão pouca lição de arte, que não lhe
consentiu nunca pôr na sala uma gravura, cópia de Hamon, que ele comprara na Rua da
Carioca, por pouco mais de três mil-réis. A cena representada era a de uma
família grega, antiga, um rapaz que volta com um pássaro apanhado, e uma
criança que esconde com a camisa a irmã mais velha, para dizer que ela não está
em casa. O rapaz, ainda imberbe, traz nuas as suas belas pernas gregas.
— Não quero aqui estas francesas
sem-vergonha! bradou D. Inácia; e o filho não teve remédio senão encafuar a
gravura no quartinho em que dormia, e em que não havia luz.
João Maria cedeu a Virgem e foi
pintar outra; era a terceira, acabou-a em poucos dias. Pareceu-lhe o melhor dos
seus trabalhos: lembrou-se de expô-lo, e foi a
uma casa de espelhos e gravuras, na Rua do
Ouvidor. O dono hesitou, adiou, tergiversou, mas afinal aceitou o quadro, com a
condição de não durar a exposição mais de três dias. João Maria, em troca,
impôs outra: que ao quadro fosse apenso um rótulo, com o nome dele e a
circunstância de não saber nada. A primeira noite, depois da aceitação do
quadro, foi como uma véspera de bodas. De manhã, logo que almoçou, correu para
a Rua do Ouvidor, a ver se havia muita gente a admirar o quadro. Não havia
então ninguém; ele foi para baixo, voltou para cima, rondando a porta,
espiando, até que entrou e falou ao caixeiro.
uma casa de espelhos e gravuras, na Rua do
Ouvidor. O dono hesitou, adiou, tergiversou, mas afinal aceitou o quadro, com a
condição de não durar a exposição mais de três dias. João Maria, em troca,
impôs outra: que ao quadro fosse apenso um rótulo, com o nome dele e a
circunstância de não saber nada. A primeira noite, depois da aceitação do
quadro, foi como uma véspera de bodas. De manhã, logo que almoçou, correu para
a Rua do Ouvidor, a ver se havia muita gente a admirar o quadro. Não havia
então ninguém; ele foi para baixo, voltou para cima, rondando a porta,
espiando, até que entrou e falou ao caixeiro.
— Tem vindo muita gente?
— Tem vindo algumas pessoas.
— E olham? Dizem alguma coisa?
— Olhar, olham; agora se dizem alguma
coisa, não tenho reparado, mas olham.
— Olham com atenção?
— Com atenção.
João Maria inclinou-se para o rótulo,
e disse ao caixeiro que as letras deviam ter sido maiores; ninguém as lia da
rua. E saiu à rua, para ver se se podiam ler; concluiu
que não; deviam ter sido maiores as letras. Assim como a luz não lhe parecia
boa. O quadro devia ficar mais perto da porta; mas aqui o caixeiro acudiu,
dizendo que não podia alterar a ordem do patrão. Estavam nisto, quando entrou
alguém, um homem velho, que foi direito ao quadro. O coração de João Maria
batia que arrebentava o peito. Deteve-se o visitante alguns momentos, viu o
quadro, leu o rótulo, tornou a ver o quadro, e saiu. João Maria não pôde
ler-lhe nada no rosto. Veio outro, vieram mais outros, uns por diverso motivo,
que apenas davam ao quadro um olhar de passagem, outros atraídos por ele;
alguns recuavam logo como embaçados. E o pobre-diabo não lia nada, coisa
nenhuma nas caras impassíveis.
Foi essa Virgem o assunto a que ele
voltou mais vezes. A tela que está agora acabando, é a sexta ou sétima. As
outras deu-as logo, e chegou a expor algumas, sem melhor resultado, porque os
jornais não diziam palavra. João Maria não podia entender semelhante silêncio,
a não ser intriga de um antigo namorado da moça, com quem estava para casar.
Nada, nem uma linha, uma palavra que fosse. A própria casa da Rua do Ouvidor
onde os expôs recusou-lhe a continuação do obséquio; recorreu a outra da Rua do
Hospício, depois a uma da Rua da Imperatriz, a outra do Rocio Pequeno;
finalmente não expôs mais nada.
Assim que, o círculo das ambições de
João Maria foi-se estreitando, estreitando, estreitando, até ficar reduzido aos parentes e
conhecidos. No dia do casamento forrou a parede da sala com as suas obras,
ligando assim os dois grandes objetos que mais o preocupavam na vida. Com
efeito, a opinião dos convidados é que ele era “um moço muito habilidoso”. Mas
esse mesmo horizonte foi-se estreitando mais;
o tempo arrebatou-lhe alguns parentes e amigos, uns pela morte, outros pela
própria vida, e a arte de João Maria continuou a mergulhar na sombra.
Lá está agora diante da eterna
Virgem; retoca-lhe os anjinhos e o manto. A tela fica ao pé da porta. A mulher
de João Maria veio agora de dentro, com o filho; vai levá-lo a um consultório homeopático, onde lhe
dão remédios de graça para o filho, que tem umas feridas na cabeça.
Ela faz algumas recomendações ao
marido, enquanto este dá uma pincelada no painel.
— Você escutou, João Maria?
— Que é, disse ele distraidamente,
recuando a cabeça para ver o efeito de um rasgo.
— A panela fica no fogo; você daqui a
pouco vá ver.
João Maria respondeu que sim; mas
provavelmente não prestou atenção.
A mulher, enquanto o filho conversa
com os quatro meninos da vizinhança, que estão à porta, olhando para o quadro,
ajusta o lenço ao pescoço. A fisionomia mostra a unhada do trabalho e da
miséria; a figura é magra e cansada. Traz o seu vestido de sarja preta, o de
sair, não tem outro, já amarelado nas mangas e roído na barra. O sapato de
duraque tem a beirada da sola comida das pedras. Ajusta o lenço, dá a mão ao
filho, e lá vai para o consultório. João Maria fica pintando; os meninos olham
embasbacados.
Olhemos bem para ele. O sol enche
agora o beco; o ar é puro e a luz magnífica. A mãe de um dos pequenos, que mora pouco adiante,
brada-lhe da janela que vá para casa, que não esteja apanhando sol.
— Já vou, mamãe! Estou vendo uma
coisa!
E fica a mirar a obra e o autor.
Senta-se na soleira, os outros sentam-se também, e ficam todos a olhar
boquiabertos. De quando em quando dizem alguma coisa ao ouvido um do outro, um
reparo, uma pergunta, qual dos anjinhos é o Menino Jesus, ou o que quer dizer a
lua debaixo dos pés de Nossa Senhora, ou então um simples aplauso ingênuo; mas tudo isso
apenas cochichado, para não turvar a inspiração do artista. Também falam dele,
mas falam menos, porque o autor de coisas tão bonitas e novas infunde-lhes uma
admiração mesclada de adoração, não sei se diga de medo — em suma, um grande
sentimento de inferioridade.
Ele, o eterno João Maria, não volta o
rosto para os pequenos, finge que os não vê, mas sente-os ali, percebe e
saboreia a admiração. Uma ou outra palavra que lhe chega aos ouvidos faz-lhe
bem, muito bem. Não larga a palheta. Quando não passeia o pincel na tela, pára,
recua a cabeça, dá um jeito à esquerda, outro à direita, fixa a vista com
mistério, diante dos meninos embasbacados; depois, unta a ponta do pincel na
tinta, retifica uma feição ou aviva o colorido.
Não lhe lembra a panela ao fogo, nem
o filho que lá vai doente com a mãe. Todo ele está ali. Não tendo mais que avivar nem
que retificar, aviva e retifica outra vez, amontoa as tintas, decompõe e
recompõe, encurva mais este ombro, estica os raios àquela estrela. Interrompe-se para
recuar, fita o quadro, cabeça à direita, cabeça à esquerda, multiplica as
visagens, prolonga-as, e a platéia vai ficando a mais e mais pasmada. Que este
é o último e derradeiro horizonte das suas ambições: um beco e quatro meninos.
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente em Gazeta de
Notícias, de 06/9/1885.
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