
CURTA HISTÓRIA
A leitora ainda há de lembrar-se do
Rossi, o ator Rossi, que aqui nos deu
tantas obras-primas do teatro inglês, francês e italiano. Era um homenzarrão, que uma noite era terrível como
Otelo, outra noite meigo como Romeu. Não havia duas opiniões, quaisquer que
fossem as restrições, assim pensava a
leitora, assim pensava uma D. Cecília, que está hoje casada e com filhos.
Naquele tempo esta Cecília tinha
dezoito anos e um namorado. A desproporção
era grande; mas explica-se pelo ardor com que ela amava aquele único namorado,
Juvêncio de Tal. Note-se que ele não era bonito, nem afável, era seco, andava
com as pernas muito juntas, e com a cara no chão, procurando alguma coisa. A
linguagem dele era tal qual a pessoa,
também seca, e também andando com os olhos no chão, uma linguagem que, para ser
de cozinheiro, só lhe faltava sal. Não
tinha idéias, não apanhava mesmo as dos outros; abria a boca, dizia isto ou
aquilo, tornava a fechá-la, para abrir e repetir a operação.
Muitas amigas de Cecília admiravam-se
da paixão que este Juvêncio lhe inspirava; todas contavam que era um
passatempo, e que o arcanjo que devia
vir buscá-la para levá-la ao paraíso, estava ainda pregando as asas; acabando
de as pregar, descia, tomava-a nos braços
e sumia-se pelo céu acima.
Apareceu Rossi, revolucionou toda a
cidade. O pai de Cecília prometeu à família que a levaria a ver o grande
trágico. Cecília lia sempre os anúncios,
e o resumo das peças que alguns jornais davam. Julieta e Romeu encantou-a, já pela notícia vaga que tinha da peça, já pelo resumo
que leu em uma folha, e que a deixou curiosa e ansiosa. Pediu ao pai que
comprasse bilhete, ele comprou-o e foram.
Juvêncio, que já tinha ido a uma
representação, e que a achou insuportável
(era Hamlet) iria a esta outra por causa de estar ao pé de Cecília, a quem
ele amava deveras; mas por desgraça apanhou uma constipação, e ficou em casa
para tomar um suadouro, disse ele. E aqui se vê a singeleza deste homem, que
podia dizer enfaticamente — um
sudorífico; — mas disse como a mãe lhe ensinou, como ele ouvia à gente de casa.
Não sendo coisa de cuidado, não entristeceu muito a moça; mas sempre lhe ficou
algum pesar de o não ver ao pé de si. Era melhor ouvir Romeu e olhar para
ele...
Cecília era romanesca, e consolou-se
depressa. Olhava para o pano, ansiosa de o ver erguer-se. Uma prima, que ia com
ela, chamava-lhe a atenção para as toilettes elegantes, ou para as pessoas que iam entrando; mas Cecília dava
a tudo isso um olhar distraído. Toda ela estava impaciente de ver subir o pano.
— Quando sobe o pano? perguntava ela
ao pai.
— Descansa, que não tarda.
Subiu afinal o pano, e começou a
peça. Cecília não sabia inglês nem italiano. Lera uma tradução da peça cinco
vezes, e, apesar disso, levou-a para o teatro. Assistiu às primeiras cenas
ansiosa. Entrou Romeu, elegante e belo,
e toda ela comoveu-se; viu depois entrar a divina Julieta, mas as cenas eram
diferentes, os dois não se falavam logo; ouviu-os, porém, falar no baile de
máscaras, adivinhou o que sabia, bebeu de longe as palavras eternamente belas,
que iam cair dos lábios de ambos.
Foi o segundo ato que as trouxe; foi
aquela cena imortal da janela que comoveu
até às entranhas a pessoa de Cecília. Ela ouvia as de Julieta, como se ela
própria as dissesse; ouvia as de Romeu, como se Romeu falasse a ela própria.
Era Romeu que a amava. Ela era Cecília ou Julieta, ou qualquer outro nome, que aqui
importava menos que na peça. "Que
importa um nome?" perguntava Julieta no drama; e Cecília com os olhos em Romeu parecia perguntar-lhe a
mesma coisa. "Que importa que eu não seja a tua Julieta? Sou a tua
Cecília; seria a tua Amélia, a tua Mariana; tu é que serias sempre e serás o
meu Romeu."
A comoção foi grande. No fim do ato,
a mãe notou-lhe que ela estivera muito
agitada durante algumas cenas.
— Mas os artistas são bons! explicava
ela.
— Isso é verdade, acudiu o pai, são
bons a valer. Eu, que não entendo nada, parece que estou entendendo tudo...
Toda a peça foi para Cecília um
sonho. Ela viveu, amou, morreu com os namorados de Verona. E a figura de Romeu
vinha com ela, viva e suspirando as mesmas palavras deliciosas. A prima, à
saída, cuidava só da saída. Olhava para os moços. Cecília não olhava para
ninguém, deixara os olhos no teatro, os
olhos e o coração...
No carro, em casa, ao despir-se para
dormir, era Romeu que estava com ela;
era Romeu que deixou a eternidade para vir encher-lhe os sonhos. Com efeito, ela sonhou as mais lindas
cenas do mundo, uma paisagem, uma baía, uma missa, um pedaço daqui, outro dali,
tudo com Romeu, nenhuma vez com Juvêncio.
Nenhuma vez pobre Juvêncio! Nenhuma
vez. A manhã veio com as suas cores
vivas; o prestígio da noite passara um pouco, mas a comoção ficara ainda, a
comoção da palavra divina. Nem se lembrou de mandar saber de Juvêncio; a mãe é
que mandou lá, como boa mãe, porque este Juvêncio tinha certo número de
apólices, que... Mandou saber; o rapaz
estava bom; lá iria logo.
E veio, veio à tarde, sem as palavras
de Romeu, sem as idéias, ao menos de
toda a gente, vulgar, casmurro, quase sem maneiras; veio, e Cecília, que
almoçara e jantara com Romeu, lera a peça ainda uma vez durante o dia, para saborear a música da
véspera. Cecília apertou-lhe a mão
comovida, tão-somente porque o amava. Isto quer dizer que todo amado vale um
Romeu. Casaram-se meses depois; têm agora dois filhos, parece que muito bonitos
e inteligentes. Saem a ela.
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, V. II, 1994. Publicado originalmente em A Estação, 31 de
maio de 1886.
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