
CONVERSÃO DE UM AVARO
Os vícios equilibram-se muita vez;
outras vezes neutralizam-se ou vence um a outro... Há pecados que derrubam
pecados, ou, pelo menos, quebram-lhes as pernas.
Gil Gomes tinha uma casa de colchões
em uma das ruas do bairro dos Cajueiros. Era um homem de cinqüenta e dois anos,
cheio de corpo, vermelho e avaro.
Ganhara um bom pecúlio a vender
colchões e a não usar nenhum. Note-se que não era homem sórdido, pessoalmente
desasseado; não. Usava camisa lavada, calça e rodaque lavados. Mas era a sua
maior despesa. A cama era um velho sofá de
palhinha; a mobília eram duas cadeiras, uma delas quebrada, uma mesa de pinho e
um baú. A loja não era grande nem pequena, mas regular, cheia de mercadoria.
Tinha dois operários.
Era mercador de colchões esse homem,
desde 1827. Esta história passa-se em 1849. Nesse ano adoeceu Gil Gomes e um
amigo, que morava no Engenho Velho, levou-o para casa, pelo motivo ou pretexto
de que na cidade não poderia curar-se bem.
— Nada, meu amigo, disse ele a
primeira vez que o outro lhe falou nisso, nada. Isto não é nada.
— É sim; pode ser, ao menos.
— Qual! Uma febrícula; vou tomar um
chá.
O caso não era de chá; mas Gil Gomes
evitava o médico e a botica até a última. O amigo deu-lhe a entender que não
pensasse nessas despesas, e Gil Gomes, sem compreender logo que o amigo por
força pensaria em alguma compensação, admirou
esse rasgo de fraternidade. Não disse sim, nem não; levantou os ombros, olhou para o ar, enquanto o outro
repetia:
— Vamos, vamos!
— Vá lá, disse ele. Talvez o melhor
remédio seja a companhia de um bom amigo.
— Decerto!
— Porque a moléstia é nada; é uma febrícula...
— Das febrículas nascem os febrões,
disse sentenciosamente o amigo de Gil Gomes.
Esse amigo chamava-se Borges; era um
resto de sucessivos naufrágios. Tinha sido várias coisas, e ultimamente
preparava-se a ser milionário. Contudo estava longe; tinha apenas dois escravos
boçais comprados entre os últimos chegados por contrabando. Era, por ora, toda
a riqueza, não podendo incluir-se nela a esposa que era um tigre de ferocidade,
nem a filha, que parecia ter o juízo a
juros. Mas este Borges vivia das melhores
esperanças. Ganhava alguma coisa em não sei que agências particulares; e nos
intervalos cuidava de um invento, que ele dizia destinado a revolucionar o
mundo industrial. Ninguém sabia o que fosse, nem que destino tivera; mas ele
afirmava que era grande coisa, utilíssima, nova e surpreendente.
juros. Mas este Borges vivia das melhores
esperanças. Ganhava alguma coisa em não sei que agências particulares; e nos
intervalos cuidava de um invento, que ele dizia destinado a revolucionar o
mundo industrial. Ninguém sabia o que fosse, nem que destino tivera; mas ele
afirmava que era grande coisa, utilíssima, nova e surpreendente.
Gil Gomes e José Borges chegaram à
casa deste, onde ao primeiro foi dado um quarto de antemão arranjado. Gomes
achou-se bem no aposento, posto lhe inspirasse ele o maior desprezo ao amigo.
— Que desperdício! quanta coisa
inútil! Nunca há de ser nada o pateta! dizia ele entre dentes.
A doença de Gomes, atalhada a tempo,
curou-se em poucos dias. A mulher e a filha de Borges tratavam dele com o
carinho que permitia o gênio feroz de uma e a leviandade de outra. A Sra. D.
Ana acordava às cinco horas da manhã e berrava até às dez da noite. Poupou ao
hóspede esse costume durante a doença; mas, a palavra contida manifestava-se em
repelões à filha, ao marido e às escravas. A filha chamava-se Mafalda; era uma
moça pequena, vulgar, supersticiosa, que só se penteava às duas horas da tarde
e andava sem meias toda a manhã.
Gil Gomes deu-se bem com a família.
O amigo não cogitava de outra coisa
mais que de o fazer feliz, e lançou mão de bons cobres para tratá-lo como faria
a um irmão, a um pai, a um filho.
— Dás-te bem? dizia-lhe no fim de
quatro dias.
— Não me dou mal.
— Pior! isso é fugir à pergunta.
— Dou-me perfeitamente; e
naturalmente incomodo-te...
— Oh! não...
— Decerto; um doente é sempre um peso
de mais.
José Borges protestou com toda a
energia contra essa suposição gratuita do amigo e acabou proferindo um discurso
acerca dos deveres da amizade, que Gil Gomes ouviu enfastiado e penalizado.
Na véspera de voltar para a sua loja
de colchões, Gil Gomes travou conhecimento com uma nova pessoa da família: a
viúva Soares. A viúva Soares era prima de José Borges. Tinha vinte e sete anos,
e era, na frase do primo, um pedaço de mulher.
Efetivamente era vistosa, forte, de ombros largos, braços grossos e redondos.
Viúva desde os vinte e dois, conservava um resto de luto, antes como um realce
que outra coisa. Gostava de véu porque um poetastro lhe dissera em versos de todos os tamanhos que seus olhos,
velados, eram como estrelas através de nuvens finas, idéia que a Sra. D. Rufina
Soares achou engenhosa e novíssima. O poeta recebeu em paga um olhar.
Na verdade, os olhos eram bonitos,
grandes, pretos, misteriosos. Gil Gomes, quando os viu ficou embasbacado; foi talvez o
remédio que melhor o curou.
— Essa tua prima, na verdade...
— Um pedaço de mulher!
— Pedaço! é uma inteira, são duas
mulheres, são trinta e cinco mulheres!

— Que entusiasmo! observou José
Borges.
— Eu gosto do que é belo, respondeu
Gil Gomes sentenciosamente.
A viúva ia jantar. Era uma boa
perspectiva de tarde e noite de palestra e conversação. Gil Gomes já agradecia
ao céu a doença, que lhe dera ocasião de encontrar tamanhas perfeições.
Rufina era muito agradável na
conversa e pareceu simpatizar desde logo com o convalescente, fato em que as
outras pessoas não pareceram reparar.
— Mas já está bom de todo? dizia ela
ao colchoeiro.
— Estava quase bom; agora estou
perfeito, respondeu ele com certo trejeito de olhos, que a viúva fingiu não
ver.
— Meu primo é um bom amigo, disse
ela.
— Oh! é uma pérola! Minha moléstia
era pouca coisa; mas ele lá foi à casa, pediu, instou, fez tudo para que eu viesse tratar-me
em casa dele, dizendo que eram precisos cuidados de família. Vim; em boa hora
vim; estou são e re-são.
Desta vez foi Rufina quem fez um
trejeito com os olhos. Gil Gomes, que não esperava por ele, sentiu cair-lhe a
baba.
O jantar foi uma delícia, a noite
outra delícia. Gil Gomes sentia-se transportado a todos os céus possíveis e
impossíveis. Ele prolongou quanto pôde a noite, propôs uma bisca de quatro e
teve meio de fazer com que Rufina fosse sua parceira só pelo gosto de lhe
piscar o olho, quando tinha na mão o sete ou o ás.
Foi adiante.
Num lance difícil, em que a parceira
hesitava se pegaria na vaza com a bisca de trunfo, Gil Gomes, vendo que ela não levantava
os olhos, e conseguintemente não podendo fazer-lhe o sinal de costume,
tocou-lhe no pé com o pé.
Rufina não recuou o pé; compreendeu,
atirou a bisca na mesa. E os dois pés ficaram juntos alguns segundos.
Repentinamente, a viúva, parecendo que só então dera pelo atrevimento ou
liberdade do parceiro, recuou o pé e ficou muito séria.
Gil Gomes olhou vexado para ela; mas
a viúva não lhe recebeu o olhar. No fim, sim; ao despedir-se daí a uma hora é
que Rufina fez as pazes com o colchoeiro apertando-lhe muito a mão, o que o fez
estremecer todo.
A noite foi cruel para o colchoeiro,
ou antes deliciosa e cruel, ao mesmo tempo, porque sonhou com a viúva de princípio até o
fim. O primeiro sonho foi bom: imaginava-se que passeava com ela e mais a
família toda em um jardim e que a viúva
lhe dera flores, sorrisos e beliscões. Mas o segundo sonho foi mau: sonhou que
ela lhe enterrava um punhal. Desse pesadelo passou a melhores fantasias, e a
noite correu toda entre imaginações diversas. A última, porém, sendo a melhor, foi
a pior de todas: sonhou que estava casado com Rufina, e de tão belo sonho caiu
na realidade do celibato.
O celibato! Gil Gomes começou a
pensar seriamente nesse estado que já lhe durava muitos anos, e perguntou aos
céus e à terra, se tinha direito de não casar. Esta pergunta foi respondida
antes do almoço.
— Não! disse ele consigo; não devo
casar nunca... Aquilo foi uma fantasia de uma
hora. Leve o diabo a viúva e o resto. Ajuntar
uns cobres menos maus para os dar a uma senhora que os desfará em pouco
tempo... Nada! nada!
hora. Leve o diabo a viúva e o resto. Ajuntar
uns cobres menos maus para os dar a uma senhora que os desfará em pouco
tempo... Nada! nada!
Almoçou tranqüilo; e despediu-se dos
donos da casa com muitas manifestações de agradecimento.
— Agora não esqueça o número de nossa
casa, já que se pilhou curado, disse a filha de José Borges.
O pai corou até os olhos, enquanto a
mãe punia a indiscrição da filha com um beliscão que lhe fez ver as estrelas.
— Salta lá para dentro! disse a boa
senhora.
Gil Gomes fingiu não ouvir nem ver
nada. Apertou a mão dos amigos, prometeu-lhes uma eterna gratidão e saiu.
Seria faltar à verdade o dizer que
Gil Gomes não pensou mais na viúva Rufina. Pensou; mas procurou vencer-se.
Durou a luta uma semana. Ao fim desse tempo teve ímpeto de ir passar-lhe pela
porta, mas receou, envergonhou-se.
— Nada! é preciso esquecer aquilo!
Quinze dias depois do encontro da
viúva, Gil Gomes parecia ter efetivamente esquecido a viúva. Para isso contribuíram
alguns acidentes. O mais importante deles foi o caso de um sobrinho que passava
a vida a trabalhar quanto podia e numa bela noite foi recrutado em plena Rua
dos Ciganos. Gil Gomes não amava ninguém neste mundo, nem no outro; mas devia
certas obrigações ao finado pai do sobrinho; e, ao menos por decoro, não pôde
recusar ir vê-lo, quando recebeu a notícia do desastre do rapaz. Pede a justiça
que se diga que ele procurou durante dois dias retirar o sobrinho do exército
que o esperava. Não lhe foi possível. Restava dar-lhe um substituto, e o
recruta, quando viu perdidas todas as esperanças, insinuou esse recurso derradeiro.
O olhar com que Gil Gomes respondeu à
insinuação gelou todo o sangue que havia nas veias do moço. Esse olhar parecia
dizer-lhe: — Um substituto! dinheiro! sou algum pródigo? Não é mais do que
abrir os cordões à bolsa e deixar cair o que se custou a ganhar? Alma perversa,
que espírito mau te meteu na cabeça esse pensamento de dissolução?
Outro incidente foi haver-lhe morrido
insolvável o único devedor que ele tinha — um devedor de seiscentos mil-réis,
com juros. Esta notícia poupou a Gil Gomes um jantar, tal foi a mágoa que o
acometeu. Ele perguntava a si mesmo se era lícito aos devedores morrer sem
liquidar as contas, e se os céus tinham tanta crueldade que levassem um pecador
deixando uma dívida. Esta dor foi tão grande como a primeira, posto devesse ser
maior; porquanto, Gil Gomes, em vários negócios que tinha tido com o devedor
finado, havia-lhe colhido aos poucos a importância da dívida extinta pela
morte; idéia que de algum modo o consolou e lhe fez mais tolerável a ceia.
Estava, portanto, D. Rufina, se não
esquecida, ao menos adormecida na memória do colchoeiro, quando este uma noite
recebeu um bilhetinho da mulher de José Borges. Pedia-lhe a megera que ele
fosse lá jantar no próximo sábado, aniversário natalício da filha do casal.
Este bilhete foi levado pelo próprio pai da moça.
— Podemos contar contigo? disse este,
logo que o viu acabar de ler o bilhete.
— Eu sei! talvez...
— Não há talvez, nem meio talvez. É
festa íntima, só parentes, dois amigos, um
dos quais és tu... Senhoras, há só as de casa,
a comadre Miquelina, madrinha de Mafalda, e a prima Rufina... Não sei se a
conheces?
dos quais és tu... Senhoras, há só as de casa,
a comadre Miquelina, madrinha de Mafalda, e a prima Rufina... Não sei se a
conheces?
— Tua prima?... Conheço! acudiu o
colchoeiro expelindo faíscas dos olhos. Não te lembras que ela passou a última
noite que estive em tua casa? Até jogamos a bisca...
— É verdade! Não me lembrava!
— Boa senhora...
— Oh! é uma pérola! Ora, espera...
agora me lembro que ela, ainda há poucos dias, esteve lá e falou em ti. Perguntou-me
como estavas... É uma senhora de truz!...
— Pareceu-me...
— Vamos ao que importa, podemos
contar contigo?
Gil Gomes interiormente tinha
capitulado; queria declará-lo, mas por modo que não parecesse esquisito. Fez um
gesto com as sobrancelhas, apertou a ponta do nariz, olhando para a carta e murmurou:
— Pois... sim... talvez...
— Talvez, não quero! Há de ser por
força.
— És um diabo! Pois bem, vou.
José Borges apertou-lhe muito a mão,
sentou-se, contou-lhe duas anedotas; e o colchoeiro, tocado subitamente da
suspeita de que o primo da viúva quisesse pedir-lhe dinheiro, entrou a cochilar. José
Borges saiu e foi levar à casa a notícia de que Gil Gomes compareceria à festa.
Chegou como a Providência, fazendo suspender de cima da cabeça da filha uma
chuva de ralhos com que a mãe castigava uma das infinitas indiscrições da pequena.
A Sra. D. Ana não se alegrou logo, mas abrandou, ouviu a notícia, expectorou
ainda seis ou sete adjetivos cruéis, por fim calou-se. José Borges, que, por
medida de prudência, estava sempre do lado da mulher, disse solenemente à filha
que se retirasse, o que era servir ao mesmo tempo à filha e à mãe.
— Então ele vem? disse D. Ana quando
o temporal começou a amainar.
— Vem, e o resto...
— Parece-te?
— Eu creio...
No dia aprazado compareceu em casa de
José Borges a gente convidada, os parentes, a comadre e os dois amigos. Entre
os parentes havia um primo, pálido, esguio e magro, que nutria em relação a
Mafalda uma paixão, correspondida pelo pai. Esse primo tinha três prédios.
Mafalda dizia gostar muito dele; e se, na verdade, os olhos fossem sempre o
espelho do coração, o coração da moça derretia-se pelo primo, porque os olhos
eram dois globos de neve tocados pelo sol. O que a moça dizia no coração era
que o primo não passava de uma figura de presepe; não obstante, autorizava-o a
pedi-la nesse dia ao Sr. José Borges.
Por esse motivo entrou o jovem Inácio
duas horas mais cedo que os outros; mas entrou somente. Falou, é verdade, mas
falou só de coisas gerais. Três vezes investiu com o pai da namorada para
pedir-lha, três vezes a palavra morreu-lhe
nos lábios. Inácio era tímido; a figura
circunspecta de José Borges, os olhos terríveis da Sra. D. Ana e até os modos
ríspidos da namorada, tudo lhe metia medo e fazia perder a última gota de
sangue. Os convidados entraram sem que ele houvesse exposto ao tio suas
pretensões. Custou-lhe o silêncio um repelão da namorada; repelão curto, a que
sucedeu um sorriso animador, porque a moça compreendia facilmente que um noivo, ainda que
seja Inácio, não se pesca sem alguma paciência. Vingar-se-ia depois do casamento.
nos lábios. Inácio era tímido; a figura
circunspecta de José Borges, os olhos terríveis da Sra. D. Ana e até os modos
ríspidos da namorada, tudo lhe metia medo e fazia perder a última gota de
sangue. Os convidados entraram sem que ele houvesse exposto ao tio suas
pretensões. Custou-lhe o silêncio um repelão da namorada; repelão curto, a que
sucedeu um sorriso animador, porque a moça compreendia facilmente que um noivo, ainda que
seja Inácio, não se pesca sem alguma paciência. Vingar-se-ia depois do casamento.
Pelas quatro horas e meia entrou o
Sr. Gil Gomes. Quando ele apareceu à porta, José Borges esfregou os olhos como
para certificar-se que não era sonho, e que efetivamente o colchoeiro ali lhe entrava pela
sala. Pois quê! Onde, quando, de que modo, em que circunstâncias Gil Gomes
calçara nunca luvas? Trazia um par de luvas — é verdade que de lã grossa —, mas
enfim luvas, que na opinião dele eram inutilidades. Foi a única despesa séria
que fez; mas fê-la. José Borges, durante um quarto de hora, ainda nutria a
esperança de que o colchoeiro lhe trouxesse
um presente para
a filha. Um dia de anos! Mas a esperança morreu depressa:
o colchoeiro era oposto à tradição dos presentes de anos; era um revolucionário.
A viúva Soares fez a sua entrada na
sala (já estava na casa desde as duas horas), poucos minutos depois de ali chegar Gil Gomes.
Este sentiu no corredor um farfalhar de
vestido e um pisar grosso, que lhe contundiu o coração. Era ela, não podia ser
outra. Rufina entrou majestosa; fosse acaso ou propósito, os primeiros olhos
que fitou foram os dele.
— Nunca mais o vi desde aquela noite,
disse ela baixinho ao colchoeiro daí a cinco minutos.
— É verdade, concordou Gil Gomes sem
saber que respondesse.
Rufina reclinou-se na cadeira
agitando o leque, meio voltada para ele, que respondia trêmulo.
Não tardou que a dona da casa
convidasse a toda a gente a passar à sala de jantar. Gil Gomes levantou-se com
idéia de dar o braço à viúva; José Borges facilitou-lhe a execução.
— Então, que é isso? Dê o braço à
prima. Inácio, dá o braço a Mafalda. Eu levo a comadre... valeu? Você,
Aninha...
— Eu vou com o Sr. Pantaleão.
O Sr. Pantaleão era um dos dois
amigos convidados por José Borges, além dos parentes. Não vale a pena falar
dele; basta dizer que era um homem silencioso; não tinha outro traço característico.
Na mesa, Gil Gomes foi sentado ao pé
de Rufina. Ele estava aturdido, satisfeito, desvairado. Um gênio invisível
atirava-lhe faíscas aos olhos; e entornava-lhe pelas veias abaixo um fluido,
que ele supunha ser celestial. A viúva parecia, na verdade, mais bela do que
nunca; fresca, repousada, ostentosa. Ele sentia-lhe o vestido a roçar-lhe as
calças; via-lhe os olhos embeberem-se nos seus. Era um jantar aquilo ou um
sonho? Gil Gomes não podia decidir.
José Borges alegrou a mesa como podia
e sabia, sendo acompanhado pelos parentes e pela comadre. Dos dois estranhos, o
colchoeiro pertencia à viúva e o silencioso era todo do seu estômago. José
Borges tinha um leitão e um peru, eram as duas peças melhores do jantar, dizia
ele, que já as anunciava desde o princípio. Começaram as saúdes; fez-se a de Mafalda, a de
D. Ana e de José Borges, a da comadre, a da viúva. Esta saúde foi proposta com
muito entusiasmo por José Borges e não menos entusiasticamente correspondida. Entre
Rufina e Gil
Gomes foi trocado um brinde particular, de
copo batido.
Gomes foi trocado um brinde particular, de
copo batido.
Gil Gomes, apesar da resolução
amorosa que se operava nele, comeu à farta. Um bom jantar era coisa para ele
fortuita ou problemática. Só assim, de ano em ano. Por isso não deixou passar a ocasião. O
jantar, o vinho, a palestra, a alegria geral, os olhos da viúva, talvez a
pontinha de seu pé, tudo contribuiu para desatar os últimos nós à língua do
colchoeiro. Ele ria, falava, dizia graças, fazia cumprimentos à dona, arriava todas as
bandeiras. À sobremesa, quis por força que ela comesse uma pêra, descascada por
ele; e a viúva, para lhe pagar a fineza, exigiu que ele comesse metade.
— Aceito! exclamou o colchoeiro fora
de si.
A pêra foi descascada. Partiu-a a
viúva, e os dois comeram a fruta, de parceria, com os olhos modestamente no prato. José
Borges, que não perdeu a cena de vista,
parecia satisfeito com a harmonia dos dois. Ergueu-se para fazer uma saúde ao
estado conjugal. Gil Gomes correspondeu ruidosamente; Rufina nem tocou no copo.
— Não correspondeu ao brinde do seu
primo? perguntou Gil Gomes.
— Não.
— Por quê?
— Porque não posso, suspirou a viúva.
— Ah!
Um silêncio.
— Mas... por que... isto é... que
calor!
Estas palavras incoerentes,
proferidas pelo colchoeiro, não pareceu que as ouvisse a viúva. Ela olhava para
a borda da mesa, séria e fixamente, como quem encara o passado ou o futuro.
Gil Gomes achou-se um pouco acanhado.
Não compreendia muito o motivo do silêncio de Rufina e perguntava a si próprio
se ele havia dito alguma tolice. De repente, levantaram-se todos. A viúva
tomou-lhe o braço.
Gil Gomes sentiu o braço de Rufina e
estremeceu da cabeça até os pés.
— Por que motivo ficou triste ainda
agora? perguntou ele.
— Eu?
— Sim.
— Fiquei triste?
— E muito.
— Não me lembro.
— Talvez fosse zangada.
— Por quê?
— Não sei; pode ser que eu a
ofendesse.

— O senhor?
— Eu sim.
Rufina negou com os olhos, mas uns
olhos que o colchoeiro antes quisera fossem duas espadas, porque atravessariam
tão cruelmente o coração, por mais morto que o deixassem.
— Por quê?
Rufina apertou muito os olhos.
— Não me pergunte, disse ela
afastando-se dele rapidamente.
O colchoeiro viu-a afastar-se e
levar-lhe o coração na barra do vestido. Seu espírito sentiu pela primeira vez
a vertigem conjugal. Ele, que deixara de fumar por economia, aceitou um charuto
de José Borges para distrair-se, e fumou-o todo sem poder arrancar de si a
imagem da viúva. Rufina, entretanto, parecia evitá-lo. Três vezes quis ele entabular
conversação sem conseguir detê-la.
— Que é isso? perguntou o colchoeiro
consigo.
Aquele procedimento deixou-o ainda
mais perplexo. Ficou triste, amuado, não sentiu correr as horas. Eram onze
quando deu acordo de si. Onze horas! E ele que quisera assistir ao fechar a
porta! A casa entregue ao caixeiro tão longo tempo, era um perigo; pelo menos, uma novidade que
podia ter graves conseqüências. Circunstância
que ainda mais lhe ensombrou o espírito. Irritado consigo mesmo, fugiu à
companhia dos outros e foi sentar-se em uma saleta, deu corda a uma caixa de
música que ali achou e sentou-se a ouvi-la.
De repente, foi interrompido pelo
passo forte da viúva, que fora buscar o xale para sair.
— Vai embora? perguntou ele.
— Vou.
— Tão cedo!
Rufina não respondeu.
— Parece que a senhora ficou mal
comigo.
— Pode ser.
— Por quê?
Rufina suspirou; e depois de um
silêncio:
— Não me fale mais, não procure
ver-me, adeus!...
Saiu.
Gil Gomes, atordoado com a primeira
impressão, não pôde dar um passo. Mas, enfim,
dominou-se e saiu em procura da viúva. Achou-a na sala a abraçar a prima. Quis
falar-lhe, chegou a dizer-lhe algumas palavras; mas Rufina não pareceu ouvir.
Apertou a mão a todos. Quando chegou a vez do colchoeiro, foi um aperto, um só,
mas um aperto que valia por todos os apertos do mundo, não que fizesse forte,
mas porque era significativo.
Gil Gomes saiu dali meia hora depois,
num estado de agitação como nunca estivera em todos os longos dias de sua
existência. Não foi logo para casa; era-lhe impossível dormir, e andar na rua
sempre era economizar a vela. Andou cerca de duas horas, a ruminar umas idéias,
a correr atrás de umas visões, a evaporar-se em fantasias de toda a espécie.
No dia seguinte, à hora do costume,
estava na loja sem saber o que fazia. Custava-lhe a reconhecer os seus
colchões. O dia, a agitação dos negócios, o almoço puseram alguma surdina às
vozes do coração. O importuno calou-se modestamente
ou, antes, velhacamente, para criar mais forças. Era tarde. Rufina tinha cravado
no peito do colchoeiro a seta da dominação.
Era preciso vê-la.
Mas como?
Gil Gomes pensou nos meios de
satisfazer essa necessidade imperiosa. A figura esbelta, forte, rechonchuda da
prima de José Borges parecia estar diante dele a dizer-lhe com os olhos: Vai
ver-me! vai ter comigo! vai dizer-me o que sentes!
Por fortuna de Gil Gomes a viúva
fazia anos dali a três semanas. Ele foi um dos convidados. Correu ao convite da
dama de seus pensamentos. A vizinhança, que conhecia os hábitos tradicionalmente caseiros
de Gil Gomes, entrou a comentar as suas saídas freqüentes e a conjecturar mil
coisas, com a fertilidade da gente curiosa
e vadia. O fato, sobretudo, de o ver sair com uma sobrecasaca nova, por ocasião
dos anos da viúva, pôs a rua em alvoroço. Uma sobrecasaca nova! era o fim do
mundo. Que querem? A viúva valia a pena de um sacrifício por maior que ele
fosse e aquele foi imenso. Três vezes recuou o colchoeiro estando à porta do alfaiate,
mas três vezes insistiu. Ir-se embora, se fosse possível varrer-se-lhe da memória
a figura da dama. Mas se ele a trazia presente! Se ela estava aí diante dele, a
fitá-lo, a sorrir-lhe, a moer-lhe a alma, a despedaçar-lhe o coração! Veio a sobrecasaca;
ele vestiu-a; achou-se elegante. Não chorou o dinheiro, porque só o dominava a idéia de ser contemplado pela
viúva.
Esse novo encontro de Gil Gomes e
Rufina foi a ocasião de se entenderem. Tantas atenções com ele! Tantos olhares
para ela! Um e outro caminhavam rapidamente até esbarrarem no céu azul, como dois astros
errantes e simpáticos. O colchoeiro estava prostrado. A viúva parecia vencida.
José Borges favoreceu essa situação, descobrindo-a a ambos.
— Vocês estão meditando alguma coisa,
disse ele, achando-se uma vez a olhar um para o outro.
— Nós? murmurou Rufina.
Este nós penetrou a alma
do colchoeiro.
O colchoeiro fez duas ou três visitas
à viúva, em ocasião que lá ia a família desta. Uma vez apresentou-se, sem que a
família lá estivesse. Rufina mandou dizer que não estava em casa.
— Seriamente? perguntou ele à preta.
Tua senhora não está em casa?
— Ela mandou dizer que não, senhor,
acudiu a boçal escrava.
Gil Gomes quis insistir; mas podia
ser inútil; saiu com a morte em si. Aquela esquivança era um aguilhão, que
ainda mais o irritou. A noite foi cruel. No dia seguinte apareceu-lhe José
Borges.

— Podes falar comigo em particular?
disse este.
— Posso.
Foram para os fundos da loja.
Sentaram-se em duas cadeiras de pau. José Borges tossiu, meditou um instante.
Custava-lhe ou parecia custar-lhe a entabular a conversa. Enfim, rompeu o
silêncio:
— Tu foste ontem à casa de minha
prima?
— Fui.
— Disseram-te que ela não estava em
casa...
— Sim, a preta...
— A preta disse mais: deu a entender
que minha prima estava, mas dera ordem de te dizer que não.
— Era falso?
— Era verdade.
— Mas então?...
— Eu te explico. Rufina sabe que tu
gostas dela; tu deves saber que ela gosta de ti; todo o mundo sabe que vocês
gostam um do outro. Ora, se lá fores quando nós estamos, bem...
Gil Gomes tinha-se levantado e dera
quatro ou seis passos na salinha, sem ouvir o resto do discurso de José Borges,
que teve em si o seu único auditório.
No fim de alguns minutos, o
colchoeiro sentou-se outra vez e inquiriu o amigo:
— Dizes então que eu gosto de tua
prima?
— É visível.
— E que ela gosta de mim?
— Só um cego o não verá.
— Ela supõe isso?
— Vê e sente-o!
— Sente-o?
O colchoeiro esfregou as mãos.
— Gosta de mim? repetiu ele.
— E tu gostas dela.
— Sim, confesso que... Parece-te
ridículo?
— Ridículo! Essa agora! Pois um homem
como tu, dotado de verdadeiras e boasqualidades, há de parecer ridículo por
gostar de uma senhora como Rufina?...
— Sim, creio que não.
— De nenhum modo. O que te digo é que
toda a circunspecção é pouca, até o dia do casamento.
Ouvindo esta palavra, Gil Gomes
sentiu um calafrio e perdeu momentaneamente todas as forças. A idéia talvez lhe
passasse alguma vez pelo espírito, mas vaga e obscura, sem se fixar nem
clarear. José Borges proferia a palavra em toda a sua realidade. O colchoeiro
não pôde resistir ao abalo. Ele vivia em uma agitação que o punha fora da
realidade e sem efeitos. A palavra formal, na boca de um parente, quando já
ninguém ignorava a natureza de seus sentimentos, era um golpe quase inesperado e de efeito certo.
José Borges fingiu não reparar na
impressão do amigo, e continuou a falar do casamento, como de uma coisa
indeclinável. Teceu os maiores elogios à viúva, à sua beleza, aos seus
pretendentes, às suas virtudes. A maior destas era a economia; pelo menos, foi
o que ele mais louvou. Quanto aos pretendentes eram muitos, mas ultimamente estavam reduzidos a
cinco ou seis. Um deles era desembargador. No fim de uma hora, José Borges
saiu.
A situação do colchoeiro
complicava-se; sem o pensar achava-se às portas de um casamento, isto é, de uma grande despesa que
viria abalar muito o edifício laborioso de suas economias.
Passou-se uma semana depois daquele
diálogo, e a situação de Gil Gomes não melhorou nada. Pelo contrário,
agravou-se. No fim desse tempo, tornou a ver a viúva. Nunca lhe pareceu mais
bela. Trazia um vestido simples, nenhum ornato, salvo uma flor ao seio, que ela
em ocasião oportuna tirou e ofereceu ao colchoeiro. A paixão de Gil Comes
foi-se convertendo numa embriaguez; ele já não podia viver sem ela. Era preciso vê-la, e
quando a via, tinha ânsia de lhe cair ao pés. Rufina suspirava, falava;
quebrava os olhos, trazia arrastado o pobre Gil Gomes.
Veio mais uma semana, depois outra e
mais outra. O amor trouxe algumas despesas nunca usadas. Gil Gomes sentiu que a
avareza afrouxava um pouco as rédeas; ou, por outra, não sentiu nada, porque
nada podia sentir; foi alongando os cordões à bolsa.
A idéia do casamento aferrou-se-lhe
deveras. Era grave, era um abismo que ele abriu diante de si. Às vezes assustava-se;
outras vezes fechava os olhos disposto a
mergulhar nas trevas.
Um
dia, Rufina ouviu ao
colchoeiro o pedido em regra, ainda que timidamente formulado.
Ouviu-o, fechou a cabeça nas mãos e recusou.
— Recusa-me? clamou o infeliz
aturdido.
— Recuso, disse firmemente a viúva.
Gil Gomes não contava com a resposta;
insistiu, rogou, mas a viúva não parecia ceder.
— Mas por que recusa? perguntou. Não
gosta de mim?
— Oh! interrompeu ela apertando-lhe
as mãos.
— Não é livre?
— Sou.
— Não compreendo, explique-se.
A viúva não respondeu logo; foi dali
a um sofá e meteu a cabeça nas mãos, durante cinco minutos. Vista assim era
talvez mais bela. Estava meio reclinada, ofegante, com alguma desordem nos
cabelos.
— Que é? que tem? perguntou Gil Gomes
com uma ternura que ninguém era capaz de supor-lhe. Vamos lá; confie-me tudo,
se alguma coisa há, porque eu não compreendo...
— Amo-o muito, disse Rufina erguendo
para ele um par de olhos belos como duas estrelas; amo-o muito e muito. Mas
vacilo em casar.
— Disseram-lhe de mim alguma coisa?
— Não, mas tremo do casamento.
— Por quê? Foi infeliz com o
primeiro?
— Fui muito feliz, e por isso mesmo
receio que seja infeliz agora. Parece-me que o céu me castigará se eu casar segunda vez,
porque nenhuma mulher foi ainda tão amada como eu fui. Oh! se soubesse que amor
me teve meu marido! Que paixão! que delírio! Vivia para fazer-me feliz.
Perdi-o; casar com outro é esquecê-lo...
Tornou a cobrir o rosto com as mãos,
enquanto o colchoeiro, ferido por aquele novo dardo, jurava a seus deuses que havia de
casar com ela ou o mundo viria abaixo.
A luta durou três dias, três longos e
estirados dias. Gil Gomes não cuidou de outra
coisa durante o combate; não abriu os livros da casa; talvez chegou a não afagar
um freguês. Pior que tudo: chegou a oferecer um camarote de teatro à viúva. Um camarote! Que decadência!
Não podia ir longe a luta e não foi.
No quarto dia recebeu ele uma resposta decisiva, um sim escrito em papel
bordado. Respirou; beijou o papel; correu à casa de Rufina. Ela esperava-o
ansiosa. Suas mãos tocaram-se; um ósculo confirmou o escrito.
Desde aquele dia até o do casamento
foi um turbilhão em que o pobre colchoeiro viveu. Não via nada; quase não sabia
contar; estava cego e tonto. De quando em quando um movimento instintivo parecia fazê-lo
mudar de caminho, mas era rápido. Assim, a idéia dele era que o casamento não
tivesse aparato; mas José Borges combateu essa idéia como indigna dos noivos:
— Demais é bom que todos o invejem.
— Que tem isso?
— Quando virem passar o préstito
todos dirão: Que maganão! Que casamento! Rico e feliz!
— Rico... isto é... interrompeu Gil
Gomes, cedendo ao costume antigo.
José Borges bateu-lhe no ombro,
sorriu e não admitiu réplica. Ainda assim, ele não teria vencido, se não fosse
o voto da prima. A viúva declarou preferível um casamento aparatoso; o
colchoeiro não tinha outra vontade.
— Vá lá, disse ele; coupés, não é?
— Justamente; cavalos brancos,
arreios finos, cocheiros de libré, coisa bonita.
— Mais bonita do que você, é
impossível, acudiu o colchoeiro com um ar terno e galante.
Outro ósculo que o fez ver estrelas
ao meio-dia. Estava decidido que o casamento teria o maior aparato. Gil Gomes
reconhecia que a despesa era enorme, e intimamente pensava que era inútil; mas
desde que ela queria, toda a discussão estava acabada. Mandou preparar a roupa
dele; teve até de sortir-se, porque nada possuía em casa; aposentou os dois
velhos rodaques, as três calças de quatro
anos. Pôs casa. A viúva guiou-o nessa tarefa difícil; indicou o que ele devia comprar;
escolheu ela mesma a mobília, os tapetes, os vasos, as cortinas, os cristais,
as porcelanas. As contas chegavam às mãos do colchoeiro rotundas e pavorosas; mas ele pagava, quase sem sentir.
Na véspera do casamento, tinha ele
deixado de pertencer a este mundo, tão alheado andava dos homens. José Borges
aproveitou esse estado de sonambulismo amoroso para lhe pedir duzentos mil-réis
emprestados. Coisa miraculosa! Gil Gomes emprestou-os. Era verdadeiramente o
fim do mundo. Emprestou os duzentos
mil-réis, sem fiança, nem obrigação escrita. Isto e a derrota do primeiro
Napoleão são os dois fatos mais estrondosos do século.
Casou no dia seguinte. A vizinhança
toda sabia já do casamento, mas não podia crer, supunha que era boato, apesar
das mil provas que os noveleiros espalhavam de loja em loja... Casou; quem o
viu entrar no coupé, ainda hoje duvida se estava sonhando naquele dia.
Uma vez casado, estava passado o
Rubicão. A ex-viúva encheu a vida do colchoeiro; ocupou em seu coração o lugar
que até então pertencera à libra esterlina. Gil Gomes estava mudado; fora uma
larva; passava a borboleta. E que borboleta! A vida solitária da loja dos
colchões era agora o seu remorso; ele mesmo ria de si. A mulher, só a mulher,
nada mais que a mulher, eis o sonho da vida do colchoeiro; era o modelo dos
maridos.
Rufina amava o luxo, a vida
estrondosa, os teatros, os jantares, os brilhantes. Gil Gomes, que vivera a
detestar tudo aquilo, mudou de sentimento e acompanhou as tendências da esposa.
De longe em longe tinha uma estremeção na alma. “Gil! Exclamava ele, aonde
vais? Que destino te leva à prodigalidade?” Mas um sorriso, um afago de Rufina dissipava as
nuvens e atirava o colchoeiro à carreira em que ia.
Um ano depois de casado sabia jogar o
voltarete e tinha assinatura no teatro. Comprou carro; dava jantares às
sextas-feiras; emprestava dinheiro a José Borges de trimestre em trimestre.
Circunstância particular: José Borges não lhe pagava nunca.
Vieram os anos, e cada ano novo
achava-o mais namorado da mulher. Gil Gomes era uma espécie de cachorrinho de regaço. Com
ela, ao pé dela, defronte dela, a olhar para ela; não tinha outro lugar nem
outra atitude. A bolsa emagreceu; ele engordou. Nos últimos anos, tinha vendido
o carro, suspendido os jantares e os teatros,
diminuído os empréstimos a José Borges, jogava a bisca a tentos. Quando a miséria chegou, Rufina retirou-se
deste mundo. O colchoeiro que já não tinha
colchões, acabou a vida servindo de agente em um cartório de escrivão.
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Nota:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, junho, 1878.
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