ANTES A ROCHA TARPÉIA
Como é que me achei ali em cima? Era
um pedaço de telhado, inclinado, velho, estreitinho, com cinco palmos de muro
por trás. Não sei se fui ali buscar alguma coisa; parece que sim, mas qualquer
que ela fosse, tinha caído ou voado, já não estava comigo. Eu é que fiquei ali no alto, sozinho,
sem nenhum meio de voltar abaixo.
Começara a entender que era pesadelo.
Já lá vão alguns anos. A rua ou estrada em que se achava aquela construção era deserta.
Eu, do alto, olhava para todos os lados sem
descobrir sombra de homem. Nada que me salvasse; pau nem corda. Ia aflito de um para outro lado, vagaroso, cauteloso,
porque as telhas eram antigas, e também porque o menor descuido far-me-ia
escorregar e ir ao chão. Continuava a olhar ao longe, a ver se aparecia um
salvador; olhava também para baixo, mas a idéia de dar um pulo era impossível;
a altura era grande, a morte certa. De repente, sem saber de onde tinham vindo,
vi em baixo algumas pessoas, em pequeno
número, andando, umas da direita, outras da esquerda. Bradei de cima à que passava
mais perto:
— Ó senhor! acuda-me!
Mas o sujeito não ouviu nada, e foi
andando. Bradei a outro e outro; todos iam passando sem ouvir a minha voz. Eu, parado,
cosido ao muro, gritava mais alto, como um trovão. O temor ia crescendo, a vertigem
começava; e eu gritava que me acudissem,
que me salvassem a vida, pela escada, corda, um pau, pedia um lençol, ao menos,
que me apanhasse na queda. Tudo era vão. Das pessoas que passavam só restavam três, depois duas, depois uma. Bradei
a essa última com todas as forças que me restavam:
— Acuda! acuda!
Era um rapaz, vestido de novo, que ia
andando e mirando as botas e as calças. Não me ouviu, continuou a andar, e
desapareceu.
Ficando só, nem por isso cessei de
gritar. Não via ninguém, mas via o perigo. A aflição era já insuportável, o terror chegara ao
paroxismo... Olhava para baixo, olhava para longe, bradava que me acudissem, e
tinha a cabeça tonta e os cabelos em pé... Não sei se cheguei a cair; de
repente, achei-me na cama acordado.
Respirei à larga, com o sentimento da
pessoa que sai de um pesadelo. Mas aqui deu-se um fenômeno particular; livre de
perigo, entrei a saboreá-lo. Em verdade, tivera alguns minutos ou segundos de
sensações extraordinárias; vivi de puro terror, vertigem e desespero, entre a
vida e a morte, como uma peteca entre as mãos destes dois mistérios. A certeza, porém, de que tinha
sido sonho dava agora outro aspecto ao perigo,
e trazia à alma o desejo vago de achar-me nele outra vez. Que tinha, se era sonho?
Ia assim pensando, com os olhos
fechados, meio adormecido; não esquecera as circunstâncias do pesadelo, e a
certeza de que não chegaria a cair acendeu de todo o desejo de achar-me outra vez no alto do muro,
desamparado e aterrado. Então apertei muito
os olhos para não despertar de todo, e para que a imaginação não tivesse tempo de passar a outra ordem de visões.
Dormi logo. Os sonhos vieram vindo,
aos pedaços, aqui uma voz, ali um perfil, grupos de gente, de casas, um morro, gás, sol, trinta
mil coisas confusas, que se cosiam e descosiam.
De repente vi um telhado, lembrei-me do outro, e como dormira com a esperança de reatar o pesadelo, tive uma
sensação misturada de gosto e pavor. Era o telhado de uma casa; a casa tinha uma janela;
à janela estava um homem; este homem
cumprimentou-me risonho, abriu a porta, fez-me entrar, fechou a porta outra vez
e meteu a chave no bolso.
— Que é isto? perguntei-lhe.
— É para que nos não incomodem,
acudiu ele risonho.
Contou-me depois que trazia um livro
entre mãos, tinha uma demanda e era candidato a um lugar de deputado: três matérias
infinitas. Falou-me do livro, trezentas páginas, com citações, notas, apêndices; referiu-me a
doutrina, o método, o estilo, leu-me três capítulos. Gabei-os, leu-me mais quatro.
Depois, enrolando o manuscrito, disse-me que previa as críticas e objeções;
declarou quais eram e refutou-as uma por uma. Eu, sentado, afiava o ouvido, a
ver se aparecia alguém; pedia a Deus um salteador ou a justiça, que arrombasse a porta. Ele, se
falou em justiça, foi para contar-me a demanda,
que era uma ladroeira do adversário, mas havia de vencê-lo a todo custo. Não me ocultou nada; ouvi o motivo, e todos os
trâmites da causa, com anedotas pelo meio,
uma do escrivão que estava vendido ao adversário, outra de um procurador, as conversações com os juízes, três acórdãos e os
respectivos fundamentos. À força de pleitear,
o homem conhecia muito texto, decretos, leis, ordenações, citava os livros e os parágrafos, salpicava tudo de perdigotos
latinos. Às vezes, falava andando, para descrever o terreno, — era uma questão
de terras, — aqui o rio, descendo por ali, pegando com o outro mais abaixo;
deste lado as terras de Fulano, daquele as de Sicrano... Uma ladroeira clara; que me
parecia?
— Que sim.
Enxugou a testa, e passou à
candidatura. Era legítima; não negava que pudesse haver outras aceitáveis; mas
a dele era a mais legítima. Tinha serviços ao partido, não era aí qualquer coisa, não vinha pedir esmola de
votos. E contava os serviços prestados em vinte anos de lutas eleitorais, luta de
imprensa, apoio aos amigos, obediência aos chefes. E isso não se premiava?
Devia ceder o seu lugar a filhos? Leu a circular, tinha três páginas apenas; com os comentários
verbais, sete. E era a um homem destes que queriam deter o passo? Podiam intrigá-lo; ele
sabia que o estavam intrigando, choviam cartas anônimas... Que chovessem!
Podiam vasculhar no passado dele, não achariam nada, nada mais que uma vida pura, e, modéstia
à parte, um modelo de excelentes qualidades.
Começou pobre, muito pobre; se tinha alguma coisa era graças ao rabalho e à economia, — as duas alavancas do
progresso.
Uma só dessas velhas alavancas que
ali estivesse bastava para deitar a porta abaixo; mas nem uma nem outra, era só
ele, que prosseguia, dizendo-me tudo o que era, o que não era, o que seria, e o que teria sido e
o que viria a ser, — um Hércules, que limparia a estrebaria de Augias, — um
varão forte, que não pedia mais que tempo e justiça. Fizessem-lhe justiça,
dando-lhe votos, e ele se incumbiria do resto. E o resto foi ainda muito mais
do que pensei... Eu, abatido, olhava para a porta, e a porta calada,
impenetrável, não me dava a menor esperança. Lasciati ogni speranza...
Não, cá está mais que a esperança; a
realidade deu outra vez comigo acordado, na cama. Era ainda noite alta; mas nem
por isso tentei, como da primeira vez, conciliar o sono. Fui ler para não
dormir. Por quê? Um homem, um livro, uma demanda, uma candidatura, por que é
que temi reavê-los, se ia antes, de cara alegre, meter-me outra vez no telhado em que...?
Leitor, a razão é simples. Cuido que
há na vida em perigo um sabor particular e atrativo; mas na paciência em perigo
não há nada. A gente recorda-se de um abismo com prazer; não se pode recordar
de um maçante sem pavor. Antes a rocha Tarpéia que um autor de má nota.
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis, Vol. III
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em Almanaque da
Gazeta de Notícias, 1887.
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