sábado, 16 de março de 2013

Machado de Assis: "Antes a Rocha Tarpéia"

ANTES A ROCHA TARPÉIA


Como é que me achei ali em cima? Era um pedaço de telhado, inclinado, velho, estreitinho, com cinco palmos de muro por trás. Não sei se fui ali buscar alguma coisa; parece que sim, mas qualquer que ela fosse, tinha caído ou voado, já não estava  comigo. Eu é que fiquei ali no alto, sozinho, sem nenhum meio de voltar abaixo.

Começara a entender que era pesadelo. Já lá vão alguns anos. A rua ou estrada em  que se achava aquela construção era deserta. Eu, do alto, olhava para todos os lados  sem descobrir sombra de homem. Nada que me salvasse; pau nem corda. Ia aflito de  um para outro lado, vagaroso, cauteloso, porque as telhas eram antigas, e também porque o menor descuido far-me-ia escorregar e ir ao chão. Continuava a olhar ao longe, a ver se aparecia um salvador; olhava também para baixo, mas a idéia de dar um pulo era impossível; a altura era grande, a morte certa. De repente, sem saber de onde tinham vindo, vi em baixo algumas pessoas, em  pequeno número, andando, umas da direita, outras da esquerda. Bradei de cima à que passava mais perto:

— Ó senhor! acuda-me!

Mas o sujeito não ouviu nada, e foi andando. Bradei a outro e outro; todos iam  passando sem ouvir a minha voz. Eu, parado, cosido ao muro, gritava mais alto, como   um trovão. O temor ia crescendo, a vertigem começava; e eu gritava que me  acudissem, que me salvassem a vida, pela escada, corda, um pau, pedia um lençol, ao menos, que me apanhasse na queda. Tudo era vão. Das pessoas que passavam só  restavam três, depois duas, depois uma. Bradei a essa última com todas as forças que me restavam:
— Acuda! acuda!

Era um rapaz, vestido de novo, que ia andando e mirando as botas e as calças. Não me ouviu, continuou a andar, e desapareceu.

Ficando só, nem por isso cessei de gritar. Não via ninguém, mas via o perigo. A aflição  era já insuportável, o terror chegara ao paroxismo... Olhava para baixo, olhava para longe, bradava que me acudissem, e tinha a cabeça tonta e os cabelos em pé... Não sei se cheguei a cair; de repente, achei-me na cama acordado.

Respirei à larga, com o sentimento da pessoa que sai de um pesadelo. Mas aqui deu-se um fenômeno particular; livre de perigo, entrei a saboreá-lo. Em verdade, tivera alguns minutos ou segundos de sensações extraordinárias; vivi de puro terror, vertigem e desespero, entre a vida e a morte, como uma peteca entre as mãos destes  dois mistérios. A certeza, porém, de que tinha sido sonho dava agora outro aspecto ao  perigo, e trazia à alma o desejo vago de achar-me nele outra vez. Que tinha, se era  sonho?

Ia assim pensando, com os olhos fechados, meio adormecido; não esquecera as circunstâncias do pesadelo, e a certeza de que não chegaria a cair acendeu de todo o  desejo de achar-me outra vez no alto do muro, desamparado e aterrado. Então apertei  muito os olhos para não despertar de todo, e para que a imaginação não tivesse tempo  de passar a outra ordem de visões.

Dormi logo. Os sonhos vieram vindo, aos pedaços, aqui uma voz, ali um perfil, grupos  de gente, de casas, um morro, gás, sol, trinta mil coisas confusas, que se cosiam e  descosiam. De repente vi um telhado, lembrei-me do outro, e como dormira com a  esperança de reatar o pesadelo, tive uma sensação misturada de gosto e pavor. Era o  telhado de uma casa; a casa tinha uma janela; à janela estava um homem; este  homem cumprimentou-me risonho, abriu a porta, fez-me entrar, fechou a porta outra vez e meteu a chave no bolso.

— Que é isto? perguntei-lhe.

— É para que nos não incomodem, acudiu ele risonho.

Contou-me depois que trazia um livro entre mãos, tinha uma demanda e era candidato  a um lugar de deputado: três matérias infinitas. Falou-me do livro, trezentas páginas,  com citações, notas, apêndices; referiu-me a doutrina, o método, o estilo, leu-me três  capítulos. Gabei-os, leu-me mais quatro. Depois, enrolando o manuscrito, disse-me que previa as críticas e objeções; declarou quais eram e refutou-as uma por uma. Eu, sentado, afiava o ouvido, a ver se aparecia alguém; pedia a Deus um salteador ou  a justiça, que arrombasse a porta. Ele, se falou em justiça, foi para contar-me a  demanda, que era uma ladroeira do adversário, mas havia de vencê-lo a todo custo.  Não me ocultou nada; ouvi o motivo, e todos os trâmites da causa, com anedotas pelo  meio, uma do escrivão que estava vendido ao adversário, outra de um procurador, as  conversações com os juízes, três acórdãos e os respectivos fundamentos. À força de  pleitear, o homem conhecia muito texto, decretos, leis, ordenações, citava os livros e  os parágrafos, salpicava tudo de perdigotos latinos. Às vezes, falava andando, para descrever o terreno, — era uma questão de terras, — aqui o rio, descendo por ali, pegando com o outro mais abaixo; deste lado as terras de Fulano, daquele as de  Sicrano... Uma ladroeira clara; que me parecia?

— Que sim.

Enxugou a testa, e passou à candidatura. Era legítima; não negava que pudesse haver outras aceitáveis; mas a dele era a mais legítima. Tinha serviços ao partido, não era aí  qualquer coisa, não vinha pedir esmola de votos. E contava os serviços prestados em  vinte anos de lutas eleitorais, luta de imprensa, apoio aos amigos, obediência aos chefes. E isso não se premiava? Devia ceder o seu lugar a filhos? Leu a circular, tinha  três páginas apenas; com os comentários verbais, sete. E era a um homem destes que  queriam deter o passo? Podiam intrigá-lo; ele sabia que o estavam intrigando, choviam cartas anônimas... Que chovessem! Podiam vasculhar no passado dele, não achariam  nada, nada mais que uma vida pura, e, modéstia à parte, um modelo de excelentes  qualidades. Começou pobre, muito pobre; se tinha alguma coisa era graças ao  rabalho  e à economia, — as duas alavancas do progresso.

Uma só dessas velhas alavancas que ali estivesse bastava para deitar a porta abaixo; mas nem uma nem outra, era só ele, que prosseguia, dizendo-me tudo o que era, o  que não era, o que seria, e o que teria sido e o que viria a ser, — um Hércules, que limparia a estrebaria de Augias, — um varão forte, que não pedia mais que tempo e justiça. Fizessem-lhe justiça, dando-lhe votos, e ele se incumbiria do resto. E o resto foi ainda muito mais do que pensei... Eu, abatido, olhava para a porta, e a porta calada, impenetrável, não me dava a menor esperança.  Lasciati ogni speranza...

Não, cá está mais que a esperança; a realidade deu outra vez comigo acordado, na cama. Era ainda noite alta; mas nem por isso tentei, como da primeira vez, conciliar o sono. Fui ler para não dormir. Por quê? Um homem, um livro, uma demanda, uma candidatura, por que é que temi reavê-los, se ia antes, de cara alegre, meter-me outra  vez no telhado em que...?

Leitor, a razão é simples. Cuido que há na vida em perigo um sabor particular e atrativo; mas na paciência em perigo não há nada. A gente recorda-se de um abismo com prazer; não se pode recordar de um maçante sem pavor. Antes a rocha Tarpéia que um autor de má nota.


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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis, Vol. III Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em Almanaque da Gazeta de Notícias, 1887.

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