sábado, 23 de março de 2013

Eça de Queirós: "A Perfeição"


A PERFEIÇÃO


Sentado numa rocha, na ilha de Ogígia, com a barba enterrada entre as  mãos, donde desaparecera a aspereza calosa e tisnada das armas e dos   remos, Ulisses, o mais subtil dos homens, considerava, numa escura e pesada tristeza, o mar muito azul que, mansa e harmoniosamente, rolava   sobre a areia muito branca. Uma túnica bordada de flores escarlates   cobria, em pregas moles, o seu corpo poderoso, que engordara. Nas correias   das sandálias, que lhe calçavam os pés amaciados e perfumados de   essências, reluziam esmeraldas do Egipto. E o seu bastão era um   maravilhoso galho de coral, rematado em pinha de pérolas, como os que usam  os deuses marinhos.

A divina ilha, com os seus rochedos de alabastro, os bosques de cedros e   tuias odoríferas, as messes eternas dourando os vales, a frescura das   roseiras revestindo os outeiros suaves, resplandecia, adormecida na moleza   da sesta, toda envolta em mar resplandecente. Nem um sopro dos Zéfiros   curiosos, que brincam e correm por sobre o arquipélago, desmanchava a   serenidade do luminoso ar, mais doce que o vinho mais doce, todo repassado  pelo fino aroma dos prados de violetas. No silêncio, embebido de calor   afável, eram de uma harmonia mais embaladora os murmúrios de arroios e   fontes, o arrulhar das pombas voando dos ciprestes aos plátanos, e o lento   rolar e quebrar da onda mansa sobre a areia macia. E nesta inefável paz e   beleza imortal, o subtil Ulisses, com os olhos perdidos nas águas   lustrosas, amargamente gemia, revolvendo o queixume do seu coração...

Sete anos, sete imensos anos, iam passados desde que o raio fulgente de   Júpiter fendera a sua nave de alta proa vermelha, e ele, agarrado ao   mastro e à carena, trambolhara na braveza mugidora das espumas sombrias,   durante nove dias, durante nove noites, até que boiara em águas mais   calmas, e tocara as areias daquela ilha onde Calipso, a deusa radiosa, o   recolhera e o amara! E durante esses imensos anos, como se arrastara a sua   vida, a sua grande e forte vida, que, depois da partida para os muros   fatais de Tróia, abandonando entre lágrimas inúmeráveis a sua Penélope de   olhos claros, o seu pequenino Telémaco enfaixado no colo da ama, andara  sempre tão agitada por perigos, e guerras, e astúcias, e tormentas, e   rumos perdidos?... Ah! ditosos os Reis mortos, com formosas feridas no   branco peito, diante das portas de Tróia! Felizes os seus companheiros  tragados pela onda amarga! Feliz ele se as lanças troianas o trespassassem  nessa tarde de grande vento e poeira, quando, junto à Faia, defendia dos   ultrajes, com a espada sonora, o corpo morto de Aquiles! Mas não! Vivera!

- E agora, cada manhã, ao sair sem alegria do trabalhoso leito de Calipso,   as ninfas, servas da deusa, o banhavam numa água muito pura, o perfumavam  de lânguidas essências, o cobriam com uma túnica sempre nova, ora bordada   a sedas finas, ora bordada de ouro pálido! No entanto, sobre a mesa   lustrosa, erguida à porta da gruta, na sombra das ramadas, junto ao   sussurro dormente de um arroio diamantino, os açafates e as travessas   lavradas transbordavam de bolos, de frutos, de tenras carnes fumegando, de  peixes cintilando como tramas de prata. A intendenta venerável gelava os  vinhos doces nas crateras de bronze, coroadas de rosas. E ele, sentado num  escabelo, estendia as mãos para as iguarias perfeitas, enquanto, ao lado,   sobre um trono de marfim, Calipso, espargindo através da túnica nevada a  claridade e o aroma do seu corpo imortal, sublimemente serena, com um  sorriso taciturno, sem tocar nas comidas humanas, debicava a ambrósia,   bebia goles delgados o néctar transparente e rubro. Depois, tomando aquele  bastão de príncipe de povos com que Calipso o presenteara, repercorria sem  curiosidade os sabidos caminhos da Ilha, tão lisos e tratados que nunca as   suas sandálias reluzentes se maculavam de pó, tão penetrados pela  imortalidade da deusa que jamais neles encontrara folha seca, nem flor   menos fresca pendendo na haste. Sobre uma rocha se sentava então,  contemplando aquele mar que também banhava Ítaca, lá tão bravio, aqui tão   sereno, e pensava, e gemia, até que as águas e os caminhos se cobriam de   sombra, e ele recolhia à gruta para dormir, sem desejo, com a deusa que o   desejava!... E durante estes imensos anos, que destino envolvera a sua   Ítaca, a áspera ilha de sombrias matas? Viviam eles ainda, os seres  amados? Sobre a forte colina, dominando a enseada de Reitros e os   pinheirais de Neus, ainda se erguia o seu palácio, com os belos pórticos   pintados de vermelho e roxo? Ao cabo de tão lentos e vazios anos, sem  novas, apagada toda a esperança como uma lâmpada, despira a sua Penélope a   túnica passageira da viuvez, e passara para os braços fortes de outro   esposo forte que, agora, manejava as suas lanças e vindimava as suas   vinhas? E o doce filho Telémaco? Reinaria ele em Ítaca, sentado, com o   branco ceptro, sobre o mármore alto da ágora? Ocioso e rondando pelos  pátios, baixaria os olhos sob o império duro de um padrasto? Erraria por   cidades alheias, mendigando um salário?... Ah! se a sua existência, assim  para sempre arrancada da mulher, do filho, tão doces ao seu coração,   andasse ao menos empregada em façanhas ilustres! Dez anos antes, também  desconhecia a sorte de Ítaca, e dos seres preciosos que lá deixara em  solidão e fragilidade; mas uma empresa heróica o agitava; e cada manhã a   sua fama crescia, como uma árvore num promontório, que enche o céu e todos  os homens contemplam. Então era a planície de Tróia - e as brancas tendas  dos Gregos ao longo do mar sonoro! Sem cessar, meditava as astúcias de  guerra; com soberba facúndia discursava na Assembleia dos Reis; rijamente   jungia os cavalos empinados ao timão dos carros; de lança alta corria,  entre a grita e a pressa, contra os Troianos de altos elmos, que surdiam,  em roldão ressoante, das Portas Skaias!... Oh! E quando ele, príncipe de   povos, encolhido sob farrapos de mendigo, com os braços maculados de   chagas postiças, coxeando e gemendo, penetrara nos muros da orgulhosa   Tróia, pelo lado da Faia, para de noite, com incomparável ardil e bravura,   roubar o palácio tutelar da cidade! E quando, dentro do ventre do cavalo   de Pau, na escuridão, no aperto de todos aqueles guerreiros hirtos e   cobertos de ferro, acalmava a impaciência dos que sufocavam, e tapava com  a mão a boca de Anticlos bravejando furioso, ao escutar fora na planície  os ultrajes e os escárnios troianos, e a todos murmurava - Cala, cala! que   a noite desce e Tróia é nossa... E depois as prodigiosas viagens! O   pavoroso Polifemo, ludibriado com uma astúcia que para sempre maravilhará   as gerações! As manobras sublimes entre Cila e Caríbdis! As sereias,  vogando e cantando em torno do mastro, de onde ele, amarrado, as rechaçava   com o mudo dardejar dos olhos mais agudos que dardos! A descida aos   Infernos, jamais concedida a um mortal!... E agora homem de tão rutilantes   feitos jazia numa ilha mole, eternamente preso, sem amor, pelo amor de uma   deusa! Como poderia ele fugir, rodeado de mar indomável, sem nave, nem  companheiros para mover os remos longos? Os deuses ditosos certamente   esqueciam quem tanto por eles combatera e sempre piedosamente lhes votara   as reses devidas, mesmo através do fragor e fumaraça das cidadelas   derrubadas, mesmo quando a sua proa encalhava em terra agreste!... E ao   herói, que recebera dos reis da Grécia as armas de Aquiles, cabia por   destino amargo engordar na ociosidade de uma ilha mais lânguida que uma   cesta de rosas, e estender as mãos amolecidas para as iguarias abundantes,   e, quando águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo com uma   deusa que, sem cessar, o desejava.

Assim gemia o magnânimo Ulisses, à beira do mar lustroso... E eis que, de   repente, um sulco de desusado brilho, mais rutilantemente branco que o de   uma estrela caindo, riscou a rutilância do céu, desde as alturas até à  cheirosa mata de tuias e cedros, que assombrava um golfo sereno, a oriente  da ilha. Com alvoroço bateu o coração do herói. Rasto tão refulgente, na   refulgência do dia, só um deus o podia traçar através do largo Urano. Um  deus, pois, descera à ilha?

  
II

Um deus descera, um grande deus... Era o mensageiro dos deuses, o leve,   eloquente Mercúrio. Calçado com aquelas sandálias que têm duas asas   brancas, os cabelos cor de vinho cobertos pelo casco onde batem também   duas claras asas, erguendo na mão o caduceu, ele fendera o éter, roçara a   lisura do mar sossegado, pisara a areia da ilha, onde as suas pegadas ficavam rebrilhando como palmilhas de ouro novo. Apesar de percorrer toda   a Terra, com os recados inumeráveis dos deuses, o luminoso mensageiro não   conhecia aquela ilha de Ogígia - e admirou, sorrindo, a beleza dos prados   de violetas tão doces para o correr de brincar de ninfas, e o harmonioso   faiscar dos regatos por entre os altos e lânguidos lírios. Uma vinha, sobre esteios de jaspe, carregada de cachos maduros, conduzia, como fresco   pórtico salpicado de sol, até à entrada da gruta, toda de rochas polidas,  donde pendiam jasmineiros e madressilvas, envoltas no sussurrar das   abelhas. E logo avistou Calipso, a deusa ditosa, sentada num trono, fiando   em roca de ouro, com fuso de ouro, a lã formosa de púrpura marinha. Um aro   de esmeraldas prendia os seus cabelos muito anelados e ardentemente   louros. Sob a túnica diáfana a mocidade imortal do seu corpo rebrilhava  como a neve, quando a aurora a tinge de rosas nas colinas eternas povoadas  de deuses. E enquanto torcia o fuso, cantava um trinado e fino canto, como  trémulo fio de cristal vibrando da Terra ao Céu. Mercúrio pensou: "Linda   ilha, e linda ninfa!"

De um lume claro de cedro e tuia, subia, muito direito, um fumo delgado   que perfumava toda a ilha. Em roda, sentadas em esteiras, sobre o chão de   ágata, as ninfas, servas da deusa, dobavam as lãs, bordavam na seda as   flores ligeiras, teciam as puras teias em teares de prata. Todas coraram,  com o seio a arfar, sentindo a presença do deus. E sem deter o fuso  faiscante, Calipso reconhecera logo o mensageiro - pois que todos os   imortais sabem, uns dos outros, os nomes, os feitos. e os rostos  soberanos, mesmo quando habitam retiros remotos que o éter e o mar separam.  Mercúrio parara, risonho, na sua nudez divina, exalando o perfume do   Olimpo. Então a deusa ergueu para ele, com composta serenidade, o   esplendor largo dos seus olhos verdes:

- Oh! Mercúrio! porque desceste à minha ilha humilde, tu, venerável e   querido, que eu nunca vi pisar a terra? Diz o que de mim esperas. Já o meu   aberto coração me ordena que te contente, se o teu desejo couber dentro do   meu poder e do fado... Mas entra, repousa, e que eu te sirva, como doce  irmã, à mesa da hospitalidade.

Tirou da cintura a roca, arredou os anéis soltos do cabelo radiante - e   com as suas nacaradas mãos colocou sobre a mesa, que as ninfas acercaram  do lume aromático, o prato transbordante de ambrósia, e as infusas de   cristal onde cintilava o néctar.

Mercúrio murmurou: "Doce é a tua hospitalidade, ó deusa!" Pendurou o   caduceu no fresco ramo de um plátano, estendeu os dedos reluzentes para a   travessa de ouro, risonhamente louvou a excelência daquele néctar da ilha.  E contentada a alma, encostando a cabeça ao tronco liso do plátano que se   cobriu de claridade, começou, com palavras perfeitas e aladas:

- Perguntaste porque descia um deus à tua morada, oh! deusa! E certamente   nenhum imortal percorreria sem motivo, desde o Olimpo até Ogígia, esta   deserta imensidade do mar salgado em que se não encontram cidades de  homens, nem templos cercados de bosques, nem sequer um pequenino santuário   de onde suba o aroma do incenso, ou o cheiro das carnes votivas, ou o   murmúrio gostoso das preces... Mas foi nosso Pai Júpiter, o tempestuoso,   que me mandou neste recado. Tu recolheste, e reténs pela força   incomensurável da tua doçura, o mais subtil e desgraçado de todos os   príncipes que combateram durante dez anos a alta Tróia, e depois  embarcaram nas naves fundas para voltar à terra da pátria. Muitos desses   conseguiram reentrar nos seus ricos lares, carregados de fama, de   despojos, e de histórias excelentes para contar. Ventos inimigos, porém, e  um fado mais inexorável, arremessaram a esta tua ilha, enrolado nas sujas   espumas, o facundo e astuto Ulisses... Ora o destino deste herói não é   ficar na ociosidade imortal do teu leito, longe daqueles que o choram, e   que carecem da sua força e manhas divinas. Por isso Júpiter, regulador da   ordem, te ordena, oh deusa, que soltes o magnânimo Ulisses dos teus braços   claros, e o restituas, com os presentes docemente devidos, à sua Ítaca  amada, e à sua Penélope, que tece e desfaz a teia ardilosa, cercada dos   pretendentes arrogantes, devoradores dos seus gordos bois, sorvedores dos   seus frescos vinhos!

A divina Calipso mordeu levemente o beiço; e sobre a sua face luminosa   desceu a sombra das densas pestanas cor de jacinto. Depois, com um  harmonioso suspiro, em que ondulou todo o seu peito rebrilhante:

- Ah deuses grandes, deuses ditosos, como sois asperamente ciumentos das  deusas, que, sem se estenderem pela espessura dos bosques ou nas pregas escuras dos montes, amam os homens eloquentes e fortes!... Este, que me  invejais, rolou às areias da minha ilha, nu, pisado, faminto, preso a uma   quilha partida, perseguido por todas as iras, e todas as rajadas, e todos  os raios dardejantes de que dispõe o Olimpo. Eu o recolhi, o lavei, o   nutri, o amei, o guardei, para que ficasse eternamente ao abrigo das  tormentas, da dor e da velhice. E agora Júpiter trovejador, ao cabo de   oito anos em que a minha doce vida se enroscou em torno desta afeição como  a vide ao olmo, determina que eu me separe do companheiro que escolhera   para a minha imortalidade! Realmente sois cruéis, oh deuses, que constantemente aumentais a raça turbulenta dos semideuses dormindo com as   mulheres mortais! E como queres que eu mande Ulisses à sua pátria, se não   possuo naves, nem remadores, nem piloto sabedor que o guie através das   ilhas? Mas quem pode resistir a Júpiter, que ajunta as nuvens? Seja! E que   o Olimpo ria, obedecido. Eu ensinarei o intrépido Ulisses a construir uma   jangada segura, com que de novo fenda o dorso verde do mar...

Imediatamente, o mensageiro Mercúrio se levantou do escabelo pregado com  pregos de ouro, retomou o seu caduceu, e bebendo uma derradeira taça do   néctar excelente da ilha, lourou a obediência da deusa:

- Bem farás, oh Calipso! Assim evitas a cólera do Pai trovejante. Quem lhe   resistirá? A sua omnisciência dirige a sua omnipotência. E ele sustenta,   como ceptro, uma árvore que tem por flor a ordem... as suas decisões,   clementes ou cruéis, resultam sempre em harmonia. Por isso o seu braço se  torna terrífico aos peitos rebeldes. Pela sua pronta submissão serás filha   estimada, e gozarás uma imortalidade repassada de sossego, sem intrigas e   sem surpresas...

Já as asas impacientes das suas sandálias palpitavam, e o seu corpo, com  sublime graça, se balançava por sobre as relvas e flores que alcatifavam a   entrada da gruta.

- De resto - acrescentou - a tua ilha, oh deusa, fica no caminho das naves   ousadas que cortam as ondas. Em breve talvez outro herói robusto, tendo   ofendido os imortais, aportará à tua doce praia, abraçado a uma quilha...   Acende um facho claro, de noite, nas rochas altas!

E, rindo, o mensageiro divino serenamente se elevou, riscando no éter um    sulco de elegante fulgor que as ninfas, esquecida a tarefa, seguiam, com os frescos lábios entreabertos e o seio levantado, no desejo daquele  imortal formoso.

Então Calipso, pensativa, lançando sobre os seus cabelos anelados um véu   da cor do açafrão, caminhou para a orla do mar, através dos prados, numa   pressa que lhe enrodilhava a túnica, à maneira de uma espuma leve, em  torno das pernas redondas e róseas. Tão levemente pisou a areia que o  magnânimo Ulisses não a sentiu deslizar, perdido na contemplação das águas  lustrosas, com a negra barba entre as mãos, aliviando em gemidos o peso do   seu cão. A deusa sorriu, com fugitiva e soberana amargura. Depois,  pousando no vasto ombro heróis os seus dedos tão claros como os de Eos,   mãe do dia:

- Não te lamentes mais, desgraçado, nem te consumas, olhando o mar! Os   deuses, que me são superiores pela inteligência e pela vontade, determinam  que tu partas, afrontes a inconstância dos ventos, e calques de novo a  terra da pátria...

Bruscamente, como o condor fendendo sobre a presa, o divino Ulisses, com a   face assombrada, saltou da rocha musgosa:

- Oh deusa, tu dizes!...,

Ela continuou sossegadamente, com os formosos braços pendidos,  enrodilhados no véu cor de açafrão, enquanto a vaga rolava, mais doce e   cantante, no amoroso respeito da sua presença divina.

- Bem sabes que não tenho naves de alta proa, nem remadores de rijo peito,   nem piloto amigo das estrelas, que me conduzam... Mas certamente te   confiarei o machado de bronze que foi meu pai, para tu abateres as árvores  que eu te marcar, e construíres uma jangada em que embarques... Depois eu   a provirei de odres de vinho, de comidas perfeitas, e a impelirei com um  sopro amigo para o mar indomado...

O cauteloso Ulisses recuara lentamente, cravando na deusa um duro olhar   que a desconfiança enegrecia. E erguendo a mão, que tremia toda, com a   ansiedade do seu coração:

- Oh deusa, tu abrigas um pensamento terrível, pois que assim me convidas   a afrontar numa jangada as ondas difíceis, onde mal se mantêm fundas  naves! Não, deusa perigosa, não! Eu combati na grande guerra onde os  deuses também combateram, e conheço a malícia infinita que contém o   coração dos imortais! Se resisti às sereias irresistíveis, e me safei com  sublimes manobras de entre Cila e Caríbdis, e venci Polifemo com um ardil   que eternamente me tornará ilustre entre os homens, não foi decerto, oh   deusa, para que, agora na ilha de Ogígia, como passarinho de pouca   penugem, no seu primeiro voo do ninho, caia em armadilha ligeira arranjada   com dizeres de mel! Não, deusa, não! Só embarcarei na tua extraordinária  jangada se tu jurares, pelo juramento terrífico dos deuses, que não   preparas, com esses quietos olhos, a minha perda irreparável!

Assim bradava, à beira das ondas, com o peito a arfar, Ulisses, o herói   prudente... Então a deusa clemente riu, com um cantado e refulgente riso.   E caminhando para o herói, correndo os dedos celestes pelos seus espessos cabelos mais negros que o pez:

- Oh maravilhoso Ulisses - disse -, tu és, bem na verdade, o mais   refalsado e manhoso dos homens, pois que nem concebes que exista espírito   sem manha e sem falsidade! Meu pai ilustre não me gerou com um coração de   ferro! Apesar de imortal, compreendo as desventuras mortais. Só te    aconselhei o que eu, deusa, empreenderia, se o fado me obrigasse a sair de   Ogígia através do mar incerto!...

O divino Ulisses retirou lenta e sombriamente a cabeça da rosada carícia   dos dedos divinos:

- Mas jura... Oh deusa, jura, para que ao meu peito desça, como onda de  leite, a saborosa confiança!

Ela ergueu o claro braço ao azul onde os deuses moram:

- Por Gaia e pelo Céu superior, e pelas águas subterrâneas do Estígio, que  é a maior invocação que podem lançar os imortais, juro, oh homem, príncipe   dos homens, que não preparo tua perda nem misérias maiores...

O valente Ulisses respirou largamente. E arregaçando logo as mangas da  túnica, esfregando as palmas das mãos robustas.

- Onde está o machado de teu pai magnífico? Mostra as árvores, oh   deusa!... O dia baixa e o trabalho é longo!

- Sossega, oh homem sôfrego de males humanos! Os deuses superiores em  sapiência já determinaram o teu destino... Recolhe comigo à doce gruta, a   reforçar a tua força... Quando Éos vermelha aparecer, amanhã, eu te  conduzirei à floresta.

  
III

Era, com efeito, a hora em que homens mortais e deuses imortais se acercam  das mesas cobertas de baixelas, onde os espera a abundância, o repouso, o   esquecimento dos cuidados, e as amoráveis conversas que contentam a alma.   Em breve Ulisses se sentou no escabelo de marfim, que ainda conservava o   aroma do corpo de Mercúrio, e diante dele as ninfas, servas da deusa,   colocaram os bolos, os frutos, as tenras carnes fumegando, os peixes  rebrilhantes como tramas de prata. Pousada num trono de ouro puro, a deusa   recebeu da intendenta venerável o prato de ambrósia e a taça de néctar.   Ambos estenderam as mãos para as comidas perfeitas da Terra e do Céu. E  logo que deram a oferenda abundante à Fome e à Sede, a ilustre Calipso,   encostando a face aos dedos róseos, e considerando pensativamente o herói,   soltou estas palavras aladas:

- Oh! Ulisses muito subtil, tu queres voltar à tua morada mortal e à terra  da pátria... Ah!, se conhecesses, como eu quantos duros males tens de  sofrer antes de avistar as rochas de Ítaca, ficarias entre os meus braços,    amimado, banhado, bem nutrido, revestido de linhos finos, sem nunca perder   a querida força, nem a agudeza do entendimento, nem o calor da facúndia,   pois que eu te comunicaria a minha imortalidade!... Mas desejas voltar à   esposa mortal, que habita na ilha áspera onde as matas são tenebrosas. E   todavia eu não lhe sou inferior, nem pela beleza, nem pela inteligência,   porque as mortais brilham ante as imortais como lâmpadas fumarentas diante   de estrelas puras...

O facundo Ulisses acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como   costumava na Assembleia dos Reis, à sombra das altas popas, diante dos   muros de Tróia, disse:

- Oh deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope  te está muito inferior em formosura, sapiência e majestade. Tu serás  eternamente bela e moça, enquanto os deuses durarem: e ela, em poucos   anos, conhecerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores de   decrepitude, e dos passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu   espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte   luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas oh deusa, justamente pelo que   ela tem de incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, e   apeteço a sua companhia congénere! Considera como é penoso que, nesta  mesa, cada dia, eu coma vorazmente o anho das pastagens e a fruta dos  vergéis, enquanto tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua   natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a ambrósia divinal Em  oito anos, oh deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos   teus verdes olhos rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada   impaciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio... E   assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua   divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou   mesmo te esfregue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera   ainda que a tua inteligência de deusa possui todo o saber, atinge sempre a   verdade; e, durante o longo tempo que contigo dormi, nunca gozei a   felicidade de te emendar, de te contradizer, e de sentir, ante a fraqueza   do teu, a força do meu entendimento! Oh deusa, tu és aquele ser terrífico   que tem sempre razão! Considera ainda que, como deusa, conheces todo o   passado e todo o futuro dos homens: e eu não pude saborear a incomparável   delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres  façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh deusa, tu és impecável: e quando  eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia de sandália,   não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais: 

"Foi culpa tua, mulher!", erguendo, em frente à lareira, uma alarido   cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os  deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que   eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e   humilhe, e deslumbre, e por isso ame de um amor que constantemente se   alimenta destes modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos  contrários!

Assim o facundo Ulisses desabafava, ante a taça de ouro vazia e  serenamente a deusa escutava, com um sorriso taciturno, e as mãos imóveis  sobre o regaço, enrodilhadas na ponta do véu.

No entanto, Febo Apolo descia para Ocidente; e já das ancas dos seus  quatro cavalos sua dos subia e se espalhava por sobre o mar um vapor   rúbido e dourado. Em breve os caminho: da ilha se cobriram de sombras. E   sobre os velos preciosos do leito, ao fundo da gruta, Ulisses sem o   desejo, e a deusa, que o desejava, gozaram o doce amor, e depois o doce  sono.

Cedo, apenas Éos entreabria as portas do largo Urano, a divina Calipso, que revestira um túnica mais branca que a neve do Pindo, e pregara nos    cabelos um véu transparente e azul como éter ligeiro, saiu da gruta,   trazendo ao magnânimo Ulisses, já sentado à porta, sob ramada, diante de   uma taça de vinho claro, o machado poderoso de seu pai ilustre, todo de   bronze, com dois fios, e um rijo cabo de oliveira cortado nas faldas do   Olimpo.

Limpando rapidamente a dura barba com as costas da mão, o herói arrebatou   o machado venerável:

- Oh deusa, há quantos anos não palpo uma arma ou uma ferramenta, eu,   devastador de cidadelas e construtor de naves!

A deusa sorriu. E, iluminada a lisa face, em palavras aladas:

- Oh Ulisses, vencedor de homens, se tu ficasses nesta ilha, eu   encomendaria para ti, a Vulcano e às suas forjas do Etna, armas   maravilhosas...

- Que valem armas sem combates, ou homens que as admirem? De resto, oh   deusa, já muito batalhei, e a minha glória entre as gerações está   soberbamente segura. Só aspiro ao macio repouso, vigiando os meus gados,  concebendo sábias leis para os meus povos... Sê benévola, Oh deusa, e   mostra as árvores fortes que me convém cortar!

Em silêncio ela caminhou por um atalho, florido de altas e radiosas   açucenas, que conduzia à ponta da ilha mais cerrada de matas, do lado do   Oriente; e atrás seguia o intrépido Ulisses, com o luzidio machado ao   ombro. As pombas deixavam os ramos dos cedros, ou as concavidades das  rochas onde bebiam, para esvoaçarem em torno da deusa num tumulto amoroso.   Um aroma mais delicado, quando ela passava, subia das flores abertas, como  de incensadores. As relvas que a orla da sua túnica roçava reverdejavam  num viço mais fresco. E Ulisses, indiferente aos prestígios da deusa,   impaciente com a serenidade divina do seu andar harmonioso, meditava a  jangada, almejava pelo bosque.

Denso e escuro o avistou enfim, povoado de carvalhos, de velhíssimas   tecas, de pinheiros que ramalhavam no alto Éter. Da sua orla descia um  areal a que nem concha, nem galho quebrado de coral, nem pálida flor de  cardo marinho, desmanchava a doçura perfeita. E o mar refulgia com um  brilho safírico, na quietação da manhã branca e corada. Caminhando dos   carvalhos às tecas, a deusa marcou ao atento Ulisses os troncos secos,   robustecidos por sóis inumeráveis, que flutuariam, com ligeireza mais  segura, sobre as águas traidoras. Depois, acariciando o ombro do herói  como outra árvore robusta também votada às águas cruéis, recolheu à sua   gruta, onde tomou a roca de ouro, e todo o dia fiou, e todo o dia cantou...

Com alvoroçada e soberba alegria, Ulisses atirou o machado contra um vasto   carvalho, que gemeu. E em breve toda a ilha retumbava, no fragor da obra   sobre-humana. As gaivotas, adormecidas no silêncio eterno daquelas ribas,  bateram o voo em largos bandos, espantadas e gritando. As fluidas   divindades dos ribeiros indolentes, estremecendo num fulgente arrepio,  fugiam para entre os canaviais e as raízes dos amieiros. Nesse curto dia o   valente Ulisses abateu vinte árvores - robles, pinheiros, tecas e choupos  - e todas decotou, esquadrou e alinhou sobre a areia. O seu pescoço e   arcado peito fumegavam de suor, quando recolheu pesadamente à gruta, para   saciar a rude fome, e beber a cerveja gelada. E nunca ele parecera tão  belo à deusa imortal, que, sobre o leito de peles preciosas, apenas os   caminhos se cobriram de sombra, encontrou, incansada e pronta, a força   daqueles braços que tinham abatido vinte troncos. 

Assim, durante três dias, trabalhou o herói.

E, como arrebatada nessa actividade magnífica que abalava a ilha, a deusa   ajudava Ulisses, conduzindo da gruta para a praia, nas suas mãos  delicadas, as cordas e os pregos de bronze. As ninfas, por seu mandado,   abandonando as tarefas suaves, teciam uma tela forte, para a vela que   empurraria com amor os ventos amáveis. E a intendenta venerável já enchia   os odres de vinhos robustos, e preparava com generosidade os víveres   numerosos para a travessia incerta. No entanto a jangada crescia, com os  troncos bem ligados, e um banco erguido ao meio, donde se empinava o   mastro, desbastado num pinheiro, mais redondo e liso que uma vara de  marfim. Cada tarde a deusa, sentada numa rocha à sombra do bosque,  contemplava o calafate admirável martelando furiosamente, e cantando, com  rija alegria, um canto de remador. E ligeiras na ponta dos pés luzidios,   por entre o arvoredo, as ninfas, escapando à tarefa. acudiam a espreitar,   com desejosos olhos fulgurantes, aquela força solitária, que soberbamente,   no areal solitário, ia erguendo uma nave.


IV

Enfim no quarto dia, de manhã, Ulisses findou de esquadrar o leme, que  reforçou com grades de amieiro para melhor aparar o embate das ondas.   Depois ajuntou um lastro copioso, com a terra da ilha imortal e as suas   pedras polidas. Sem descanso, numa ânsia risonha, amarrou à verga alta a   vela cortada pelas ninfas. Sobre pesados rolos, manobrando a alavanca,   rolou a jangada imensa até à espuma da vaga, num esforço sublime, com  músculos tão retesos e veias tão inchadas que ele mesmo parecia feito de  troncos e cordas. Uma ponta da jangada arfou, levantada em cadência pela   onda harmoniosa. E o herói, erguendo os braços lustrosos de suor, louvou   os deuses imortais.

Então, como a obra findara e a tarde rebrilhava, propícia à partida, a   generosa Calipso trouxe Ulisses, através das violetas e das anémonas, à  fresca gruta. Pelas suas divinas mãos o banhou numa concha de nácar, e o   perfumou com essências sobrenaturais, e o vestiu com uma túnica formosa da  lã bordada, e lançou sobre os seus ombros um manto impenetrável às neblinas do mar, e lhe estendeu sobre a mesa, para ele saciar a fome rude,   as comidas mais sãs e mais finas da Terra. O herói aceitava os amorosos  cuidados, com paciente magnanimidade. A deusa, de gestos serenos, sorria   taciturnamente.

Depois ela tomou a mão cabeluda de Ulisses, palpando com gosto os calos  que lhe deixara o machado; e pela borda do mar o conduziu à praia, onde a   vaga mansamente lambia os troncos da jangada forte. Ambos descansaram  sobre uma rocha musgosa. Nunca a ilha resplandecera com uma beleza tão  serena, entre um mar tão azul, sob um céu tão macio. Nem a água fresca do   Pindo bebida em marcha abrasada, nem o vinho dourado que produzem as  colinas de Quios, eram mais doces de sorver do que aquele ar repassado de   aromas, composto pelos deuses para o respirar de uma deusa. A frescura   imorredoura das árvores entrava no coração, quase pedia a carícia dos   dedos. Todos os rumores, o dos regatos na relva, o das ondas no areal, o   das aves nas sombras frondosas, subiam, suave e finamente fundidos, como  as harmonias sagradas de um templo distante. O esplendor e a graça das flores retinham os raios pasmados do Sol. Tantos eram os frutos nos   vergéis, e as espigas nas messes, que a ilha parecia ceder, afundada no   mar, sob o peso da sua abundância.

Então a deusa, ao lado do herói, levemente suspirou, e murmurou num  sorriso alado:

- Oh, magnânimo Ulisses, tu certamente partes! O desejo te leva de rever a   mortal Penélope, e o teu doce Telémaco, que deixaste no colo da ama quando   a Europa correu a Ásia, e agora já sustenta na mão uma lança temida.   Sempre de um amor antigo, com raízes fundas, brotará mais tarde uma flor,   mesmo triste. Mas diz! Se em Ítaca não te esperasse a esposa tecendo e   destecendo a teia, e o filho ansioso que alonga os olhos para o mar,   deixarias tu, oh homem prudente, esta doçura, esta paz, esta abundância e   beleza imortal?

O herói, ao lado da deusa, estendeu o braço poderoso, como na Assembleia   dos Reis, diante dos muros de Tróia, quando plantava nas almas a verdade   persuasiva:

- Oh deusa, não te escandalizes! Mas ainda que não existisse, para me  levar, nem filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os  mares e a ira dos deuses! Porque, na verdade, oh deusa muito ilustre, o   meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza   imortal. Considera, oh deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas   árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregou de nuvens  escuras; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao   doce lume, enquanto a borrasca grossa batesse nos montes. Todas essas   flores que brilham nas hastes airosas são as mesmas, oh deusa, que admirei   e respirei na primeira manhã que me mostraste estes prados perpétuos - e   há lírios que odeio, com um ódio amargo, pela impassibilidade da sua   alvura eterna! Estas gaivotas repetem tão incessantemente, tão   implacavelmente, o seu voo harmonioso e branco, que eu escondo delas a   face, como outros a escondem das negras Harpias! E quantas vezes me  refugio no fundo da gruta, para não escutar o murmúrio sempre lânguido   destes arroios sempre transparentes! Considera, oh deusa, que na tua ilha   nunca encontrei um charco; um tronco apodrecido; a carcaça de um bicho   morto e coberto de moscas zumbidoras. Oh deusa, há oito anos, oito anos   terríveis, estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o  sofrimento... Oh deusa, não te escandalizes! Ando esfaimado por encontrar   um corpo arquejando sob um fardo; dois bois fumegantes puxando um arado;   homens que se injuriem na passagem de uma ponte; os braços suplicantes de  uma mãe que chora; um coxo, sobre a sua muleta, mendigando à porta das  vilas... Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura... Não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que   se deforma, e se suja, e se espedaça, e se corrompe... Oh deusa imortal,  eu morro com saudades da morte!

Imóvel, com as mãos imóveis no regaço, enrodilhadas nas pontas do véu   amarelo, a deusa escutara, com um sorriso serenamente divino, o furioso    queixume do herói cativo. No entanto, já pela colina as ninfas, servas da   deusa, desciam, trazendo à cabeça, e amparando-os com o braço redondo, os  jarros de vinho, os sacos de couro, que a intendenta venerável mandava   para abastecer a jangada. Silenciosamente, o herói lançou uma tábua desde   a areia até ao bordo de altos toros. E enquanto sobre ela as ninfas   passavam, ligeiras, com as manilhas de ouro tilintando nos pés luzidios,  Ulisses, atento, contando os sacos e os odres, gozava no seu nobre coração   a abundância generosa. Mas, amarrados com cordas às cavilhas aqueles  fardos excelentes, todas as ninfas, lentamente, se sentaram sobre o areal   em torno da deusa, para contemplarem a despedida, o embarque, as manobras   do herói sobre o dorso das águas... Então uma cólera lampejou nos largos   olhos de Ulisses. E, diante de Calipso, cruzando furiosamente os valentes   braços:

- Oh deusa, pensas tu na verdade que nada falte para que eu largue a vela   e navegue? Onde estão os ricos presente que me deves? Oito anos, oito   duros anos, fui o hóspede magnífico da tua ilha, da tua gruta, do teu   leito... Sempre os deuses imortais determinaram que aos hóspedes, no   momento amigo da partida, se ofertem consideráveis presentes! Onde estão  elas, oh deusa, essas riquezas abundantes que me deves por costume da   Terra e lei do Céu?

A deusa sorriu, com sublime paciência. E em palavras aladas, que fugiam na   aragem:

- Oh, Ulisses, tu és claramente o mais interesseiro dos homens! E também o   mais desconfiado, pois que supões que uma deusa negaria os presentes  devidos àquele que amou... Sossega, oh subtil herói... Os ricos presentes  não tardam, largos e rebrilhantes.

E, certamente, pela colina suave, outras ninfas desciam, ligeiras, com os  véus a ondular, trazendo nos braços alfaias lustrosas, que ao sol  rutilavam! O magnânimo Ulisses estendeu as mãos, os olhos devoradores... E   enquanto elas passavam sobre a tábua rangente, o herói astuto contava,   avaliava no seu nobre espírito os escabelos de marfim, os rolos de telas  bordados, os cântaros de bronze lavrado, os escudos cravejados de pedras... Tão rico e belo era o vaso de ouro que a derradeira ninfa sustentava no   ombro, que Ulisses deteve a ninfa, arrebatou o vaso, o sopesou, o mirou, e   gritou, com soberbo riso estridente:

- Na verdade, este ouro é bom!

Depois de arrumadas e ligadas sob o largo banco as alfaias preciosas, o   impaciente herói, arrebatando o machado, cortou a corda que prendia a   jangada ao tronco de um roble, e saltou para o alto bordo que a espuma  envolvia. Mas então recordou que nem beijara a generosa e ilustre Calipso!   Rápido, arremessando o manto, pulou através da espuma, correu pela areia,   e pousou um beijo sereno na fronte aureolada da deusa. Ela segurou de leve  o seu ombro robusto:

- Quantos males te esperam, oh desgraçado! Antes ficasses, para toda a   imortalidade, na minha ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos...

Ulisses recuou, com um brado magnífico:

- Oh deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!

E, através da vaga, fugiu, trepou sofregamente à jangada, soltou a vela,   fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as   misérias - para a delícia das coisas imperfeitas!


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Nota:
Texto-fonte: Conto de Eça de Queirós, obra póstuma publicada em 1902

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