domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Um Desastre"


UM DESASTRE 


Meteu-se em cabeça do pobre Raposo que havia de ser o marido da senhorita Ernestina Soares, e verdade, verdade, ele tinha por si os pais da moça, que o sabiam   possuidor   de   um   bom   número   de   prédios   e   apólices   e   viam   na   sua pessoa o ideal dos genros.

A senhorita não era da mesma opinião, em primeiro lugar porque gostava muito do primo Enéias, que não tinha apólices nem prédios, mas era um bonito rapaz e um mimoso poeta e, em segundo lugar, porque o Raposo, coitado!, pesava nada menos   de   cento   e   vinte   quilogramas,   isto   é,   tinha   uma   pança   que   o incompatibilizava absolutamente com um ideal de moça.

O Soares - honra lhe seja!  - não era homem que obrigasse a filha a casar-se contra   a   vontade;   entretanto,   procurou   convencê-la   de   que   a   corpulência   do Raposo não era um pecado nem um delito, nem uma vergonha, e melhor vida teria ela em companhia dele que na do primo Enéias, um troca-tintas que não valia dois caracóis.

- Não, papai! mil vezes não! Exija de mim tudo quanto quiser, menos que eu me case com uma barriga daquelas!

O   Soares,   que   tinha   as   suas   leituras,   apontou   à   filha   o   exemplo   de   muitos homens ilustres que foram grande barrigudos, mas tudo em vão: decididamente a pequena estava enrabichada pelo primo Enéias.

O mais que o velho obteve foi fazer com que a filha recebesse, em companhia dos pais, a visita do Raposo.

- Tu não o conheces! Olha que é um homem de espírito e um cavalheiro de fina educação!   Isso  de  mais   barriga   ou  menos  barriga  não  quer  dizer  nada!  Vou convidá-lo para vir tomar uma noite dessas uma xícara de chá em nossa casa. Durante a sua visita examiná-lo-ás de perto. Quem sabe? Talvez se modifiquem as   tuas   impressões.   Se   não   se   modificarem,   paciência   -   casa-te   com   quem quiseres e sê pobre à tua vontade!

Na  noite  aprazada  o  landau  do Raposo  conduziu-lhe  a pança até à casa  do Soares, e o capitalista foi recebido com muita amabilidade por toda a família.

Ele sentou-se em uma delicada cadeira de braços em que parecia não caber, e durante uma hora falou da sua vida, das suas viagens, das suas aventuras por esse mundo a fora com tanta loquacidade, com tanta graça, com tanta  verve, que efetivamente a senhorita esqueceu-se de que ele era gordo e começou a achá-lo simpático.

No  fim  daquela  hora  o primo  Enéias  estava quase  esquecido;  mas vejam  os leitores de que depende, às vezes, o destino de um homem: quando, convidado a passar à sala de jantar, onde estava servido o chá, Raposo se ergueu, ergueu consigo a cadeira que ficou apertada entre os seus quadris, extraordinariamente dilatados por um largo repouso.

O   desgraçado   forcejou   para   arrancar   a   cadeira   e   não   conseguiu.   O   Soares aproximou-se dele e começou a puxá-la com toda a força, enquanto o Raposo, curvado, agarrava-se ao umbral de uma porta como a um ponto de apoio.

Também o Soares não conseguiu tirar o pobre Raposo daquela prisão.

- Não puxe! não puxe mais! - gritou ele. - Olhe que quebra!...

E, agachado, esgueirou-se pela escada abaixo, sem se despedir de ninguém, levando consigo a cadeira.

A  porta  esperava-o  o landau   onde  ele   entrou,   calculem   com  que  dificuldade, gritando   ao   cocheiro   que   o   levasse   à   casa,   enquanto   alguns   transeuntes, espantados, riam às gargalhadas vendo aquele barrigudo, no carro, de gatinhas, com os largos quadris comprimidos entre os braços de uma cadeira.

A senhorita, desde que o Raposo se ergueu até que o viu entrar no landau, riu tanto, tanto, que foi preciso desapertar-lhe o colete.

Uma hora depois um criado restituía ao Soares a maldita cadeira.

Naquela casa nunca mais se falou no Raposo.

A   senhorita   continua   a   namorar   o   primo   Enéias,   que   está   à   espera   de   um emprego no Povoamento do Solo para se poder casar.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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