Maurício casara-se muito cedo, aos dezenove anos, e era
feliz, porque ia completar os vinte e quatro sem ter o menor motivo de queixa
contra vida conjugal.
Justiça se lhe faça: era marido exemplaríssimo em terra
tão perigosa para os rapazes de sua idade. Tinha essa virtude burguesa, que as
mulheres amantes colocam acima dos sentimentos mais elevados: era caseiro. Ia
para a repartição às nove horas, e às quatro estava em casa, invariavelmente.
Só por exceção saía à noite, mas acompanhado por sua mulher. Adorava-a.
Adorava-a, mas um dia...
Não! não precipitemos o conto; procedamos com método:
Maurício exercia na Alfândega um modesto emprego de
escriturário, e, como residisse nas proximidades do Passeio Público, e era por
natureza comodista e ordenado, tomava sistematicamente, às nove horas, o
bondinho que contornava parte do morro do castelo, e ia despejá-lo no Carceler,
perto da repartição.
Habitou-se a atravessar todas as manhãs dos dias úteis a
praia de Santa Luzia, e, afinal, tanto se apaixonara por esse sítio, realmente
belo, que por coisa alguma renunciaria ao inocente prazer de contemplá-lo com
tão rigorosa pontualidade.
Num dia as montanhas da outra banda pareciam desfazerem-se
em nuvens tênues e azuladas,
confundindo-se com o horizonte longínquo; noutro, violentamente batidas pelo
sol, tinham contornos enérgicos e destacavam-se no fundo cerúleo da tela
maravilhosa. O outeiro da Glória, a fortaleza de Villegaignon, a ponte
pedregosa do Arsenal de Guerra, — tudo isso encantava o nosso Maurício pelos
seus diversos e sucessivos aspectos de coloração. Era ali e só ali que notava e
lhe comprazia a volubilidade característica da natureza fluminense — moça
faceira que cada dia inventa novos enfeites e arrebiques.
E o belo e opulento arvoredo defronte da Santa Casa? Como era
agradável atravessar a sombra daquelas árvores frondosas e venerandas, cuja
seiva parece alimentada por tantas vidas que se extinguem no hospital
fronteiro!
A praia de Santa Luzia de tal modo o extasiava, que, ao
passar pelo Necrotério, Maurício descobria-se,
mas desviava os olhos para que o espetáculo da morte não lhe desfizesse a boa e
consoladora impressão do espetáculo da vida.
Notava com desgosto que outros passageiros do bondinho
estendiam o pescoço, voltando-se para inspecionar a lúgubre capelinha. Pela
expressão de curiosidade satisfeita, ou de contrariedade, que ele claramente
lia no rosto desses passageiros, adivinhava se havia ou não cadáveres lá
dentro.
Um velhote, com quem se encontrava assiduamente no
bondinho, e já o cumprimentava, de uma feita o aborreceu bastante, dizendo-lhe,
depois de olhar para o Necrotério:
— Três hóspedes!
Foi morar para a rua de Santa Luzia, numa casinha baixa,
de porta e janela, certa família pobre, de que fazia parte uma lindíssima
rapariga dos seus dezoito anos, morena, desse moreno purpúreo, que deve ser a
cor dos anjos do céu.
Maurício via-a todas as manhãs, e não desviava os olhos,
como defronte do Necrotério; pelo contrário, incluiu-a na lista dos prodígios
naturais que o deslumbravam todos os dias. A morena ficou fazendo parte
integrante do panorama, em concorrência com a serra dos Órgãos, o outeiro da
Glória, o ilhote de Villegaignon e as árvores da Misericórdia.
Aquele olhar cronométrico, infalível, à mesma hora, no
mesmíssimo instante, acabou por impressionar a morena.
Pouco tardou para que entre o bondinho e a janela se
estabelecesse ligeira familiaridade. uma dia a moça teve um gesto de cabeça,
quase imperceptível, e Maurício instintivamente levou a mão ao chapéu. Daí por
diante nunca mais deixou de cumprimentá-la.
Quinze dia depois, ela acompanhou o cumprimento por um
sorriso enfeitado pelos mais belos dentes do mundo, e isso lhe revelou, a ele,
que a beleza de tão importante acessório do seu panorama também variava de
aspecto.
Maurício correspondeu ao sorriso, maquinalmente, com os
dois lábios curvados por uma simpatia irresistível, - e se os dois jovens já se
não viam sem se cumprimentar, de então em diante não se cumprimentavam sem
sorrir um para o outro.
Um dia o cumprimento mudou inesperadamente de forma; ela
disse adeus com a mãozinha, agitando os dedos, com muita sem cerimônia, como o
faria a algum amigo íntimo. Ele imitou-a, num movimento natural, espontâneo.
Quase inconsciente.
Estavam as coisas neste ponto — o fogo ao pé da pólvora —
quando um dia, depois do cumprimento e do sorriso habitual, um moleque saltou
levípede à plataforma do bondinho, e entregou uma carta à Maurício.
— Esta que Sinházinha mandou.
O moço, muito surpreso e um pouco vexado, pois percebeu
que o velhote, o tal da pilhéria dos três hóspedes, e dois estudantes de
medicina riam à socapa, guardou a carta no bolso, e só foi abri-la Alfândega.
“Me escreva e me diga como chama-se em que ano está e
cuando se forma, e quero saber se gostas de mim por passatempo ou se pedes a
minha mão a minha família, que é meu Pay, minha Mãy e um irmão. Desta que lhe
ama, - Adélia.”
Maurício caiu das nuvens, e só então reparou que cometera
uma monstruosidade. Nunca lhe passara pela cabeça idéias de namoro, amava muito
sua mulher, a mãe do seu filho, e era incapaz de traí-la, desencaminhando uma
pobre menina que o supunha solteiro e estudante, e era para ele apenas um
acessório do seu panorama.
Aquela carta surpreendera-o tanto, como se a própria
fortaleza de Villegaignon lhe perguntasse: — Quando te casas comigo? — ou a
ermida da Glória lhe dissesse: — Pede-me a papai!...
Nas ocasiões difíceis Maurício consultava o seu chefe de
seção, que o apreciava muito.
Expôs-lhe francamente o caso, e perguntou-lhe:
— Que devo fazer?
— Uma coisa muito simples: nunca mais passar pela praia de
Santa Luzia. Olhe que o menos que pode arranjar é uma tunda de pau!
— Mas o senhor não imagina o sacrifício que me aconselha!
A praia de Santa Luzia entrou de tal forma nos meus hábitos, que hoje até me
parece indispensável à existência; Por amor de Deus, não me prive da praia de
Santa Luzia.
— Nesse caso, diga-lhe francamente que é casado.
— Dizer-lhe... Mas como?
— Amanhã, quando passar, em vez de cumprimentá-la,
mostre-lhe o seu anel de casamento. Ela compreenderá.
Maurício cumpriu a recomendação à risca, e Adélia viu
perfeitamente a grossa aliança de ouro.
Mas no dia seguinte a moça esperou-o ainda mais satisfeita
e risonha que na véspera - e o moleque, trepando pela segunda vez à plataforma
do carro, entregou a Maurício outra cartinha.
— Que diabo! pensou ele, guardando a epístola. Ela sorria.
Vaidade feminina, não é outra coisa... Sorria para que eu não a supusesse
despeitada. As mulheres são assim. Faço idéia da descompostura que aqui está
escrita!
Enganava-se:
“Meu amor — Vejo que você já comprou sua Aliansa e eu
também ontem mesmo incomendei a minha, amanhã paça a pé e me diz cuando
formas-te e cuando pedes-me a meu Pay. Nem çei o teu nome. Tua até morrer,
Adélia.
Maurício tomou — pudera! — a heróica e sublime resolução
de se privar da praia de Santa Luzia.
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Nota:
Texto-fonte:
Artur de Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901
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