
O VIÚVO
Na véspera de partir para a Europa,
o doutor Claudino, sem prever o fúnebre espetáculo de que ia ser testemunha,
foi despedir-se do seu velho camarada Tertuliano.
Ao aproximar-se da casa, ouviu
berreiro de crianças e mulheres, e a voz de Tertuliano, que dominava de vez em
quando o alarido geral, soltando, num tom estrídulo e angustioso, esta palavra:
“Xandoca.”
O doutor Claudino apressou o passo,
e entrou muito aflito em casa do amigo. Havia, efetivamente, motivo para toda
aquela manifestação de desespero. Tertuliano acabava de enviuvar. Havia meia
hora que dona Xandoca, vítima de uma febre puerperal, fechara os olhos para
nunca mais abri-los.
O corpo, vestido de seda preta, as
mãos cruzadas sobre o peito, estavam colocado num canapé, na sala de visitas. À
cabeceira, sobre uma pequena mesa coberta por uma toalha de rendas, duas velas de
cera substituíam, aos dois lados de um crucifixo, o bom e o mau ladrão.
Tertuliano, abraçado ao cadáver,
soluçava convulsivamente, e todo o seu corpo tremia como tocado por uma pilha
elétrica. Os filhos, quatro crianças, a mais velha das quais teria oito anos,
rodeavam-no aos gritos.
Na sala havia um contínuo fluxo e
refluxo de gente que entrava e saía, pessoas da vizinhança, chorando muito, e
indivíduos que, passando na rua, ouviam gritar e entravam por mera curiosidade.
O doutor Claudino estava impressionadíssimo.
Caíra de sopetão no meio daquele espetáculo comovedor, e contemplava atônito o
cadáver da pobre senhora que, havia quatro dias, encontrara na rua da Carioca,
muito alegre, levando um filho pela mão e outro no ventre, arrastando vaidosa a
sua maternidade feliz.
Tertuliano, mal que o viu,
atirou-se-lhe nos braços, inundando-lhe de lágrimas a gola do casaco; o doutor
Claudino estava atordoado, cego, com os vidros do pince-nez embaciados pelo
pranto, que tardou, mas veio discreta, reservadamente, como um pranto que não
era da família.
— Isto foi uma surpresa... uma
dolorosa surpresa para mim, conseguiu dizer com a voz embargada pela comoção.
Parto amanhã para a Europa, no Niger... vinha despedir-me de ti... e dela... de
dona Xandoca e... vejo que... que... que...
E o doutor Claudino fez uma careta
medonha para não soluçar.
— Dispõe de mim, meu velho; estou
às tuas ordens, bem sabes.
— Obrigado, disse Tertuliano numa
dessas intermitências que se notam nos maiores desabafos; o Rodrigo, aquele meu
primo empregado no foro, já foi tratar do enterro, que é amanhã às dez horas.
Fazendo grandes esforços para
reprimir a explosão das lágrimas, o viúvo contou ao doutor Claudino todos os
incidentes da rápida moléstia e da morte de dona Xandoca.
— Uma coisa inexplicável! Nunca a
pobre criatura teve um parto tão feliz... A parteira não esperou cinco
minutos... Uma criança gorda, bonita... Está lá em cima, no sótão... hás de
vê-la. De repente, uma pontinha de febre que foi aumentando, aumentando... até
vir o delírio... Mandei chamar o médico... Quando o médico chegou já ela
agoniza... a... va!...
E Tertuliano, prorrompendo em
soluços, abraçou-se de novo ao doutor Claudino.
No dia seguinte, a cena foi
dolorosíssima. Antes de se fechar o caixão, Tertuliano quis que os filhos
beijassem o cadáver, medonhamente intumescido e decomposto. Ninguém
reconheceria dona Xandoca, tão simpática, tão graciosa, naquele montão informe
de carne pútrida.
Fecharam o caixão, mas Tertuliano
agarrou-se a ele e não o queria deixar sair, gritando: — Não consinto! não
quero que a levem daqui! — Foi preciso arrancá-lo à força e empurrá-lo para
longe. Ele caiu e começou a escabujar no chão, soltando grandes gritos
nervosos. Três senhoras caíram também com espetaculosos. ataques. As crianças
berravam. Choravam todos.
De volta do enterro, o Doutor
Claudino, conquanto muito atarefado com a viagem, não quis deixar de fazer uma
última visita a Tertuliano.
Encontrou-o num estado lastimoso,
sentado numa cadeira da sala de jantar, sem dar acordo de si, rodeado pelos
filhos, o olhar fixo no mísero recém nascido, que a um canto da casa mamava
sofregamente numa preta gorda.
— Tertuliano, adeus. Daqui a meia
hora devo estar embarcado. Crê que, se pudesse, adiava a viagem para fazer-te
companhia... Adeus!
O viúvo lançou-lhe um olhar vago,
um olhar que nada exprimia; sacudiu molemente a mão, e murmurou:
— Adeus!
Às sete horas da noite o doutor
Claudino, sentado na coberta do Niger, contemplando
as ondas esplendidamente iluminadas pelo luar, pensava naquele olhar vago de
Tertuliano, naquele adeus terrível, e pedia aos céus que o seu velho camarada
não houvesse enlouquecido.
Meses depois, a exposição de Paris
atordoava-o; mas de vez em quando, lá mesmo, na Galeria das Máquinas, no
Palácio das Artes, ou na Torre Eiffel, voltava-lhe ao espírito a lembrança
daquela cena desoladora do viúvo rodeado pelos orfãozinhos, e repercutia-lhe
dentro d’alma o som daquele adeus pungente e indefinível.
Interessava-se muito por
Tertuliano. Escreveu-lhe um dia, mas não obteve resposta. Pobre rapaz! viveria
ainda? a sua razão teria resistido àquele embate violento?
Depois de um ano e quatro meses de
ausência, o doutor Claudino voltou da Europa, e sua primeira visita foi para
Tertuliano, que morava ainda na mesma casa.
Mandaram-no entrar para a sala de
jantar. Tertuliano estava sentado numa cadeira, sem dar acordo de si, rodeado
pelos filhos, o olhar fixo no mais pequenito, que estava muito esperto,
brincando no colo da preta gorda.
— Tertuliano? balbuciou o doutor
Claudino.
O viúvo lançou-lhe um olhar vago,
um olhar que nada exprimia; sacudiu molemente a mão, e murmurou:
— Adeus.
Depois, dir-se-ia que se fizera
subitamente a luz no seu espírito embrutecido. Ele ergueu-se de um salto,
gritando:
— Claudino —, e atirou-se nos
braços do velho camarada, exclamando entre lágrimas:
— Ah! meu amigo! perdi minha
mulher!...
— Sim, já sei, mas já tinhas tempo
de estar mais consolado... Que diabo! Sê homem! Já lá se vão quatorze meses!...
— Como quatorze meses? seis dias...
— Ora essa! pois não te lembras que
acompanhei o enterro de dona Xandoca?
— Ah! tu falas da Xandoca... mas há
três meses casei-me com outra... a filha do Major Seabra, há seis dias estou
viú... ú... vo!
E Tertuliano, prorrompendo em
soluços, abraçou de novo ao doutor Claudino.
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Nota:
Texto-fonte: Artur Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901
Texto-fonte: Artur Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901
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