sexta-feira, 29 de março de 2013

Artur de Azevedo: "O Velho Lima"


O VELHO LIMA
A Fricinal Vassico

O velho Lima, que era empregado — empregado antigo — numa da nossas repartições públicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de 1889, isto é, na véspera da proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil.

O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis médico: bastaram-lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias.

O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais, e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se transformara em República.

No dia 23, restabelecido e pronto para outra comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras:

— Bom dia, cidadão.

O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a responder!

— Bom dia, comendador.

— Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores!

— Ora essa! Então por que?

— A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se!...

O velho Lima encarou o comendador, e calou-se, receoso de não ter compreendido a pilhéria.

Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro:

— Como vai você com o Aristides?

— Que Aristides?

— O Silveira Lobo.

— Eu?... onde?... como?...
  
— Que diabo! pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado de uma repartição do Ministério do Interior?

Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de que o comendador houvesse enlouquecido.

— Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? perguntou Vidal, passados alguns momentos. Sonetos, naturalmente, que é o do que mais se ocupava aquele tipo!

— Ora vejam, refletiu o velho Lima, ora vejam o que é perder a razão: este homem quando estava nos eu juízo era tão monarquista, tão amigo do imperador.

Entretanto, o velho Lima indignou-se, vendo que o subdelegado de sua freguesia, sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do comendador.

— Uma autoridade policial! murmurou o velho Lima.

E o comendador acrescentou:

— Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve chegar lá no princípio do mês.

O velho Lima comovia-se:

— Não diz coisa com coisa, coitado!

— E a bandeira? Que diz você da bandeira?

— Ah, sim... a bandeira... sim... repetiu o velho Lima para o não contrariar.

— Como a prefere: com ou sem lema?

— Sem lema. respondeu o bom homem num tom de profundo pesar; sem lema.

— Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro.

Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho Lima
voltou-se para o subdelegado, e disse-lhe:

— Parece que vamos ficar aqui! está cada vez pior o serviço da Pedro II!

— Qual Pedro II! bradou o comendador. Isto já não é de Pedro II! Ele que se contente com os cinco mil contos!

— E vá para a casa do diabo! acrescentou o subdelegado.

O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se.

Chegado à praça da Aclamação. entrou num bonde e foi até a sua secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara.

Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado a arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do parque da Aclamação...

Ao entrar na secretaria, um servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer:

— Cidadão! 

— Deram hoje para me chamar de cidadão! pensou o velho Lima.

Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data.

— Oh! você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado!...

O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente.

— Querem ver que já é alguém! refletiu o velho Lima.

— Amanhã parto para a Paraíba, disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe as pontas dos dedos; como sabe, vou exercer o cargo de chefe da polícia. Lá estou ao seu dispor.

E saiu.

— Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo!...

Ao entrar na sua seção, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros.

— Muito bem! disse consigo; foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa.

Sentou-se, e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando D. Pedro de Alcântara. Como na ocasião passasse um contínuo, perguntou-lhe:

— Por que tiraram da parede o retrato de sua majestade?

O contínuo respondeu num tom lentamente desdenhoso:

— Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana?

— Pedro Banana! repetiu raivoso o velho Lima.

E, sentando-se, pensou com tristeza:

— Não dou três anos para que isto seja república.


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Nota:
Texto-fonte: Artur de Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901

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