IN EXTREMIS
O Major Brígido era viúvo e tinha uma filha de vinte anos.
lindíssima, que fazia muita cabeça andar à roda; entretanto, o coração da
rapariga, quando "falou" (assim se dizia antes), falou mal. Quero
dizer que Gilberta
- era este
o seu nome
- se enfeitiçou
justamente pelo
mais insignificante de quantos a requestavam - pelo Teobaldo Nogueira,
sujeito que vivia, pode-se dizer, de expedientes, sem retida certa que lhe
desse o direito de constituir família, mendigando aqui e acolá, no comércio,
pequenas comissões, corretagens, e lambugens adventícias.
O Major Brígido, cheio de senso prático, vendo com maus olhos essa
inclinação desacertada da filha, abriu-se com o seu melhor amigo, o Viegas que,
apesar de ter uns dez anos menos que ele, era o seu consultor, o seu
conselheiro, o oráculo reservado para as grandes emergências da vida.
- Deixe-a! opinou o Viegas. Se você a contraria, aquilo fica de
pedra e cal! O melhor era fazer ver a Gilberta por meios indiretos, que a sua
escolha poderia ser melhor... Não ataque de frente a questão!... Não bata com o
pé... não invoque a sua autoridade de pai...
O Major Brígido aceitou o conselho, e, uma tarde, achando-se à
janela com sua filha, viu passar na rua o Teobaldo Nogueira, que os
cumprimentou.
O pai correspondeu com muita frieza, a filha com muita
afabilidade. Pareceu ao major que o momento não podia ser mais propício para
uma explicação; tratou de aproveitá-lo.
- Minha filha, disse ele, tenho notado que aquele homem passa
amiudadas vezes por nossa casa, e não creio que seja pelos meus bonitos
olhos...
Gilberta corou e sorriu.
- Não quero nem de leve contrariar as tuas inclinações,
casar-te-ás com o homem, seja quem lar, que escolheres para marido. O teu
coração pertence-te: dispõe dele à vontade. Entretanto, o meu dever de pai e
amigo é abrir-te os olhos para não dares um passo de que mais tarde te arrependas amargamente. Não
me parece que
este homem te
convenha, não tem
posição social definida, não ganha bastante para tomar sabre os ombros quaisquer
encargos de família, e - deixa que teu
pai seja franco - não é lá muito bem visto no comercio... Não és uma criança nem
uma tala, que te deixes levar pelos bigodes retorcidos nem pelas bonitas roupas
de um homem! Não és rica, mas, bonita, inteligente, boa como és, não te
faltarão pretendentes que te mereçam mais que o tal Teobaldo Nogueira.
Gilberta fez-se ainda mais rubra, mordeu os lábios e não disse
palavra.
De nada valeram os conselhos paternos.
Daí por diante, redobrou o seu entusiasmo pelo moço, e, um mês
depois, quando o pai se preparava
para impingir-lhe novo
sermão, ela atalhou-o
declarando peremptoriamente que amava aquele homem, com todos os seus
defeitos, com toda a sua pobreza e que jamais seria mulher de outro!
Consultado o oráculo Viegas, este aconselhou uma estação de águas
que distraísse a moça. O Major Erigido sacrificou-se em pura perda.
Gilberta voltou de Lambari mais apaixonada que nunca.
Um belo dia, Teobaldo Nogueira apresentou-se ao pai e pediu-a em casamento
depois de fazer uma exposição deslumbrante dos seus recursos. Havia meses em
que ganhava para cima de três
contos de réis.
Já tinha posto
alguma coisa de
parte e contava
mais dia menos
dia, estabelecer-se definitivamente. Se
fosse um especulador, um
aventureiro mal intencionado, procuraria casamento
vantajoso. Sabia que Gilberta era pobre, casava-se por amor.
O casamento ficou assentado.
* * *
O Major Erigido
sofreu com isto
um grande desgasto,
agravado em seguida
pela súbita enfermidade do
Viegas, o seu melhor amigo, o seu oráculo, que caiu de cama e em menos de uma
semana ficou às portas da morte.
Dois médicos desenganaram-no. Jamais a tuberculose aniquilara com
tanta rapidez um homem de quarenta anos. As hemoptises eram freqüentes,
esperava-se que de um momento para outro o enfermo sucumbisse afogado em
sangue.
Nesta situação extrema o Viegas chamou para junto do seu leito o
Major Erigido, e disse-lhe:
- Meu velho, eu vou morrer...
- Deixa-te de asneiras!
- Tenho poucos dias... poucas horas de vida... conheço o meu
estado. No momento de deixar este mundo, de quem mais me posso lembrar senão de
ti e de tua filha? Bem sabes que não tenho ninguém... Meu irmão, que não vejo
há vinte anos, é um patife, um bandido, que está, dizem, milionário, e que,
sabendo do meu estado, não me vem
visitar... Minha irmã, que reside em Paris, é uma mulher perdida, uma
desgraçada, que sempre me envergonhou...
- Não se lembre agora disso!
- Não fui um dissipado, guardei o que era meu, e tenho alguma
coisa que por minha morte irá para
as mãos dessas
duas criatura... Lembrei-me de fazer testamento, mas
um testamento poderia dar lugar a
uma demanda... Lembrei-me de coisa melhor: caso-me com Gilberta e doto-a com
100 contos de réis, isto é, o quanto possuo, mas com as devidas cautelas
jurídicas para que este dote fique bem seguro, seja inalienável... tu bem me
entendes... Ela tem um noivo, mas este
não se oporá,
talvez, a
uma fortuna da
qual participará mais
tarde. A situação
desse homem será modificada num ponto, apenas: em vez de se casar com
uma maça solteira, casar-se-á com uma senhora viuva...
E acrescentou:
- Viúva e virgem.
O Major Erigido
recalcitrou; que haviam
de dizer? seriam
capazes de inventar
até que ele abusara de um agonizante! mas o Viegas insistiu, apresentando, com
extraordinária lucidez, todos os argumentos imagináveis, inclusive aquele de
que a última vontade de um moribundo é sagrada.
Gilberta protestou energicamente quando o pai lhe comunicou a
proposta do Viegas, e disse logo que não se prestava a esta comédia fúnebre,
mas o Teobaldo Nogueira, pelo contrário, instou com ela para que aceitasse, e defendeu
calorosamente a piedosa idéia do tuberculoso.
A moça ressentiu-se dessa falta de escrúpulos, mas disfarçou o seu
sentimento e disse:
- Meu pai, faça o que entender!
* * *
Alguns dias depois havia em
casa do Viegas um vaivém de pretores, padres,
testemunhas, escrivães,
tabeliães, sacristães, etc.;
mas todo esse
movimento, longe de
fazer com que o
enfermo piorasse, ajudou-o a voltar à vida.
As hemoptises tinham cessado.
Depois de casado com Gilberta, o Viegas sentiu-se tão bem que
desconfiou dos seus médicos e mandou chamar um dos nossos príncipes da Ciência,
para examiná-lo.
Riu-se o famoso doutor quando lhe dissera o diagnóstico dos
colegas.
- Tuberculose? Qual tuberculose! O senhor é tão tuberculoso como
eu! Aquele sangue era do estômago... Trate do seu estômago que este desvio é
grave.
- Mas as hemoptises...
- Que hemoptises, que nada. Hematêmeses, isso sim!
Pouco depois o
Viegas, completamente restabelecido, empreendeu
uma grande viagem
à Europa com sua mulher. Era preciso pôr uma barreira entre ela e o
Teobaldo, - e que barreira melhor que o Atlântico?
* * *
A viagem durou dois anos. O
Viegas e Gilberta trouxeram consigo uma filhinha, nascida na Itália.
Ele fizera com muita diplomacia amorosa e muita dignidade conjugal
a conquista da sua mulher, e ela foi sempre o modelo das esposas.
Ao regressar do Velho Mundo, o Viegas pediu ao Major Brígido
notícias do Teobaldo Nogueira.
- Está na cadeia, respondeu-lhe o sogro. Calculo o que estava
reservado para minha filha, se não fosse a sua generosidade!
- Quando nos casamos, já ela não gostava dele pelo empenho
interesseiro em que o viu de que ela se casasse com um cadáver que valia cem
contos...
Gilberta que, sem ser pressentida, ouvira a conversa, aproximou-se
do marido e disse-lhe:
- E creia Viegas, que se você houvesse morrido, a minha viuvez
seria eterna.
---
Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: “Contos Cariocas”, de 1928
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: “Contos Cariocas”, de 1928
Nenhum comentário:
Postar um comentário