domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "In Extremis"


IN EXTREMIS


O Major Brígido era viúvo e tinha uma filha de vinte anos. lindíssima, que fazia muita cabeça andar à roda; entretanto, o coração da rapariga, quando "falou" (assim se dizia antes), falou mal.  Quero   dizer   que   Gilberta   -   era   este   o   seu   nome   -   se   enfeitiçou   justamente   pelo   mais insignificante de quantos a requestavam - pelo Teobaldo Nogueira, sujeito que vivia, pode-se dizer, de expedientes, sem retida certa que lhe desse o direito de constituir família, mendigando aqui e acolá, no comércio, pequenas comissões, corretagens, e lambugens adventícias.

O Major Brígido, cheio de senso prático, vendo com maus olhos essa inclinação desacertada da filha, abriu-se com o seu melhor amigo, o Viegas que, apesar de ter uns dez anos menos que ele, era o seu consultor, o seu conselheiro, o oráculo reservado para as grandes emergências da vida.

- Deixe-a! opinou o Viegas. Se você a contraria, aquilo fica de pedra e cal! O melhor era fazer ver a Gilberta por meios indiretos, que a sua escolha poderia ser melhor... Não ataque de frente a questão!... Não bata com o pé... não invoque a sua autoridade de pai...

O Major Brígido aceitou o conselho, e, uma tarde, achando-se à janela com sua filha, viu passar na rua o Teobaldo Nogueira, que os cumprimentou.

O pai correspondeu com muita frieza, a filha com muita afabilidade. Pareceu ao major que o momento não podia ser mais propício para uma explicação; tratou de aproveitá-lo.

- Minha filha, disse ele, tenho notado que aquele homem passa amiudadas vezes por nossa casa, e não creio que seja pelos meus bonitos olhos...

Gilberta corou e sorriu.

- Não quero nem de leve contrariar as tuas inclinações, casar-te-ás com o homem, seja quem lar, que escolheres para marido. O teu coração pertence-te: dispõe dele à vontade. Entretanto, o meu dever de pai e amigo é abrir-te os olhos para não dares um passo de que mais tarde te arrependas   amargamente.   Não   me   parece   que   este   homem   te  convenha,   não   tem  posição social definida, não ganha bastante para tomar sabre os ombros quaisquer encargos de família,  e - deixa que teu pai seja franco - não é lá muito bem visto no comercio... Não és uma criança nem uma tala, que te deixes levar pelos bigodes retorcidos nem pelas bonitas roupas de um homem! Não és rica, mas, bonita, inteligente, boa como és, não te faltarão pretendentes que te mereçam mais que o tal Teobaldo Nogueira.

Gilberta fez-se ainda mais rubra, mordeu os lábios e não disse palavra.

De nada valeram os conselhos paternos.

Daí por diante, redobrou o seu entusiasmo pelo moço, e, um mês depois, quando o pai se preparava   para   impingir-lhe   novo   sermão,   ela   atalhou-o   declarando   peremptoriamente   que amava aquele homem, com todos os seus defeitos, com toda a sua pobreza e que jamais seria mulher de outro!

Consultado o oráculo Viegas, este aconselhou uma estação de águas que distraísse a moça. O Major Erigido sacrificou-se em pura perda.

Gilberta voltou de Lambari mais apaixonada que nunca.

Um belo dia, Teobaldo Nogueira apresentou-se ao pai e pediu-a em casamento depois de fazer uma exposição deslumbrante dos seus recursos. Havia meses em que ganhava para cima de três   contos   de   réis.   Já   tinha   posto   alguma   coisa   de   parte   e   contava   mais   dia   menos   dia, estabelecer-se   definitivamente.   Se   fosse   um   especulador,   um   aventureiro   mal   intencionado, procuraria casamento vantajoso. Sabia que Gilberta era pobre, casava-se por amor.

O casamento ficou assentado.

* * *

O   Major   Erigido   sofreu   com   isto   um   grande   desgasto,   agravado   em   seguida   pela   súbita enfermidade do Viegas, o seu melhor amigo, o seu oráculo, que caiu de cama e em menos de uma semana ficou às portas da morte.

Dois médicos desenganaram-no. Jamais a tuberculose aniquilara com tanta rapidez um homem de quarenta anos. As hemoptises eram freqüentes, esperava-se que de um momento para outro o enfermo sucumbisse afogado em sangue.

Nesta situação extrema o Viegas chamou para junto do seu leito o Major Erigido, e disse-lhe:

- Meu velho, eu vou morrer...

- Deixa-te de asneiras!

- Tenho poucos dias... poucas horas de vida... conheço o meu estado. No momento de deixar este mundo, de quem mais me posso lembrar senão de ti e de tua filha? Bem sabes que não tenho ninguém... Meu irmão, que não vejo há vinte anos, é um patife, um bandido, que está, dizem, milionário, e que, sabendo do  meu estado, não me vem visitar... Minha irmã, que reside em Paris, é uma mulher perdida, uma desgraçada, que sempre me envergonhou...

- Não se lembre agora disso!

- Não fui um dissipado, guardei o que era meu, e tenho alguma coisa que por minha morte irá para   as  mãos  dessas   duas  criatura...  Lembrei-me de fazer testamento,  mas  um  testamento poderia dar lugar a uma demanda... Lembrei-me de coisa melhor: caso-me com Gilberta e doto-a com 100 contos de réis, isto é, o quanto possuo, mas com as devidas cautelas jurídicas para que este dote fique bem seguro, seja inalienável... tu bem me entendes... Ela tem um noivo, mas este   não   se  oporá,  talvez,   a   uma   fortuna   da   qual   participará   mais   tarde.   A   situação   desse homem será modificada num ponto, apenas: em vez de se casar com uma maça solteira, casar-se-á com uma senhora viuva...

E acrescentou:

- Viúva e virgem.

O   Major  Erigido   recalcitrou;   que   haviam   de   dizer?   seriam   capazes   de   inventar   até   que   ele abusara de um agonizante!  mas o Viegas insistiu, apresentando, com extraordinária lucidez, todos os argumentos imagináveis, inclusive aquele de que a última vontade de um moribundo é sagrada.

Gilberta protestou energicamente quando o pai lhe comunicou a proposta do Viegas, e disse logo que não se prestava a esta comédia fúnebre, mas o Teobaldo Nogueira, pelo contrário, instou com ela para que aceitasse, e defendeu calorosamente a piedosa idéia do tuberculoso.

A moça ressentiu-se dessa falta de escrúpulos, mas disfarçou o seu sentimento e disse:

- Meu pai, faça o que entender!

* * *

Alguns  dias depois havia em casa do Viegas um vaivém de pretores, padres,  testemunhas, escrivães,   tabeliães,  sacristães,   etc.;   mas   todo   esse  movimento,   longe   de  fazer   com  que   o enfermo piorasse, ajudou-o a voltar à vida.

As hemoptises tinham cessado.

Depois de casado com Gilberta, o Viegas sentiu-se tão bem que desconfiou dos seus médicos e mandou chamar um dos nossos príncipes da Ciência, para examiná-lo.

Riu-se o famoso doutor quando lhe dissera o diagnóstico dos colegas.

- Tuberculose? Qual tuberculose! O senhor é tão tuberculoso como eu! Aquele sangue era do estômago... Trate do seu estômago que este desvio é grave.

- Mas as hemoptises...

- Que hemoptises, que nada. Hematêmeses, isso sim!

Pouco   depois   o   Viegas,   completamente   restabelecido,   empreendeu   uma   grande   viagem   à Europa com sua mulher. Era preciso pôr uma barreira entre ela e o Teobaldo, - e que barreira melhor que o Atlântico?

* * *

A viagem  durou dois anos. O Viegas e Gilberta trouxeram consigo uma filhinha,  nascida na Itália.

Ele fizera com muita diplomacia amorosa e muita dignidade conjugal a conquista da sua mulher, e ela foi sempre o modelo das esposas.

Ao regressar do Velho Mundo, o Viegas pediu ao Major Brígido notícias do Teobaldo Nogueira.

- Está na cadeia, respondeu-lhe o sogro. Calculo o que estava reservado para minha filha, se não fosse a sua generosidade!

- Quando nos casamos, já ela não gostava dele pelo empenho interesseiro em que o viu de que ela se casasse com um cadáver que valia cem contos...

Gilberta que, sem ser pressentida, ouvira a conversa, aproximou-se do marido e disse-lhe:

- E creia Viegas, que se você houvesse morrido, a minha viuvez seria eterna.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: “Contos Cariocas”,  de 1928

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