COMO EU ME DIVERTI
Conto Comédia
Personagens
Jorge, empregado no comércio.
O Comendador Andrade, negociante, sócio principal da firma
Andrade, Gomes & Companhia.
Um Médico
Dona Maria, excelente senhora de meia idade, estabelecida
com casa de alugar cômodos a moços solteiros.
A ação passa-se no Rio de Janeiro, em quarta feira de
cinzas. Atualidade.
ATO ÚNICO
A cena representa a sala e a alcova que Jorge ocupa em
casa de Dona
Maria. Atirado sobre um velho canapé um hábito de frade
encardido de suor e sujo
de lama. No chão, um par de luvas, igualmente sujas, e um
nariz de papelão quase
a desfazer-se, preso a uns grandes bigodes e a um par de
óculos.
Cena Primeira
Dona Maria, O Médico
O Médico — Que tem ele?
Dona Maria —
Não sei, doutor, não sei. O senhor Jorge tem muito bom coração, mas tem muito
má cabeça: é doido pelo Carnaval.
O Médico — Gabo-lhe o gosto.
Dona Maria —
Ontem vestiu-se de frade, pôs aquele nariz postiço e andou, num carro todo
enfeitado de flores, ao lado de uma sujeita que mora no Hotel Ravot, acompanhando
um préstito. Só o vestuário da pelintra lhe custou perto de oitocentos mil réis!
O Médico — Quem lhe disse?
Dona Maria — Os meus hóspedes não têm
segredo para mim.
O Médico — Adiante.
Dona Maria —
Para se não constipar, o pobre moço levou consigo, por baixo do hábito, uma
garrafa de conhaque e de vez em quando atiçava-lhe que era um gosto! Quando o
préstito passou pela primeira vez na rua do Ouvidor (eu estava lá...) já ia o frade
que não se podia lamber! Depois na rua da Constituição — isto sei eu por um amigo
dele, que tudo viu — outro moço, também fantasiado, bifou-lhe a pelintra, e isso
deu lugar...
O Médico — ... a um rolo! Pudera!...
Dona Maria — Racharam-lhe a cabeça!
O Médico — Naturalmente.
Dona Maria —
E o demônio do rapaz andou toda a noite, de cabeça rachada, à procura da tal
mulher, dos Fenianos para os tenentes e dos Tenentes para os Democráticos,
bebendo sempre, até cair na rua do Fogo, às três horas da madrugada!...
O Médico —
Com efeito!
Dona Maria — A polícia levou-o para a estação
da travessa do Rosário, e pela manhã uns amigos que tinham sido avisados,
trouxeram-no para casa.
O Médico — Onde está ele?
Dona Maria — Naquela alcova. Há cinco horas
que ali está deitado, sem dar acordo de
si. Por isso, mandei chamá-lo, doutor.
O Médico — Fez bem. Vamos vê-lo.
(Entram na alcova)
Cena dois
Jorge, O Médico, Dona Maria
(Na alcova, Jorge está de cama, com a cabeça amarrada, os
olhos fechados, os braços caídos. O médico, ao ver o enfermo tem um movimento
que escapa à Dona Maria.)
O Médico (tomando o pulso do doente) — Não
tem febre. (Depois e examinar-lhe a cabeça.) O ferimento nada vale... Já lhe
puseram uns pontos falsos; é quanto basta... O seu hóspede tem apenas o que os
estudantes chamam “uma ressaca”; precisa de descanso e mais nada. Quando voltar
a si, se quiser tomar alguma coisa, dê-lhe uma canja, dois dedos de vinho do
Porto misturado com água de Vichi, um pouco de marmelada, e disse. Se amanhã
continuar incomodado, que tome um laxante.
Cena três
O Médico, Dona Maria
(Na sala.)
O Médico (Tomando o chapéu) — A senhora não
imagina como estimei por ter sido chamado para ver este senhor Jorge. Foi uma
providência.
Dona Maria —
Por que, doutor?
O Médico —
Conheço-o, mas não sabia que se tratava dele. É o namorado, quase noivo
de minha afilhada, filha do meu amigo Raposo. A menina gosta dele, e o pai já estava
meio inclinado a consentir no casamento; tinham-lhe dado boas informações sobre
este pândego. Agora, porém, vou prevenir o compadre, e dissuadir minha afilhada,
que é muito dócil e me ouve acatamento.
Dona Maria — Valha-me Deus! e sou eu a
culpada de tudo isto!
O Médico — Culpada, por que?
Dona Maria — Por ter mandado chamar o
padrinho! Pobre rapaz!...
O Médico —
A senhora deve estar, pelo contrário, satisfeita, por ter indiretamente contribuído para este resultado.
(Voltando-se para a alcova) Que grande patife! namorar uma menina pura como uma
flor, e andar de carro, publicamente embriagado, em companhia de uma
prostituta. Dona Maria — No carnaval tudo se desculpa.
O Médico — Nada! — eu sou o padrinho, o
segundo pai daquele anjo!
Cena quatro
Dona Maria, tomando O Médico pelo braço
Dona Maria — Doutor, doutor, não vá assim
zangado com o senhor Jorge... não diga
nada à família da menina... Ah! se eu soubesse... Mas que quer?... Vejo que este
hóspede tem segredos para mim... (O doutor tenta safar-se). Ouça doutor... ele tem
um bom emprego... é muito estimado pelos patrões...
O Médico — E a minha afilhada tem um dote
de cento e cinqüenta contos.
Dona Maria (aterrada, largando o braço do
médico) — Cento e cinqüenta contos!
O Médico (saindo) — Fora o que lhe há de caber por morte do pai!
(Chegando à
porta, para, volta-se e diz) Canja... vinho do Porto...
água de Vichi... marmelada... e disse!
Cena cinco
Dona Maria, depois Andrade
Dona Maria fica perplexa, de olhos baixos, na
atitude de Fedra, quando diz:
Juste ciel! qu’ ai je faite aujourd’hui? É despertada
bruscamente pelo comendador Andrade, que entra com espalhafato.
O Comendador (gritando) — Onde está o senhor
Jorge?
Dona Maria (consigo) — Um homem zangado! É
ele, é o pai da menina!
O Comendador — Senhora, pergunto-lhe pelo senhor
Jorge!
Dona Maria — Está doente... naquela alcova...
dorme...
O Comendador — Já me contaram as façanhas que
ele praticou esta noite! (Apanhando o nariz postiço) Cá está uma prova!
Atira-o longe.
Dona Maria — Desculpe-me essa rapaziada, e
não lhe negue a mão da menina.
O Comendador — A mão da menina! Que menina?
Dona Maria — Sua filha.
O Comendador — Minha filha? Qual delas? Pois
este mariola ainda por cima se atreve a erguer os olhos para uma das filhas do
seu patrão!
Dona Maria — Do seu patrão? Ah! então não é
o senhor Raposo?
O Comendador — Que Raposo, nem meio Raposo! Eu sou o comendador Andrade,
sócio principal da firma Andrade, Gomes & Companhia! — O senhor Jorge
está dormindo, disse a senhora.
Dona Maria — Sim, senhor.
O Comendador — Pois bem; quando acordar,
diga-lhe que eu aqui estive, e o ponho no olho da rua! Que apareça para
fazermos as contas!
Dona Maria — Atenda, senhor comendador!
O Comendador —
A nada atendo! A casa Andrade, Gomes & Companhia não pode er empregados que se embriagam e passam a
noite no xadrez! Era o que faltava!
Sai arrebatadamente.
Cena seis
Jorge, Dona Maria
Na alcova, Dona Maria sai.
Jorge (Abre um olho, depois o outro,
olha em volta de si, certifica-se que está em sua casa, dirige à Dona Maria um sorriso
de agradecimento, solta um longo suspiro, e exclama com voz rouca e sumida) —
Como eu me diverti!
Cai o pano
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Nota:
Texto-fonte:
Artur de Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901
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