sexta-feira, 29 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Como Eu me Diverti"

COMO EU ME DIVERTI

Conto Comédia

Personagens

Jorge, empregado no comércio. 
O Comendador Andrade, negociante, sócio principal da firma Andrade, Gomes & Companhia.
Um Médico
Dona Maria, excelente senhora de meia idade, estabelecida com casa de alugar cômodos a moços solteiros.
A ação passa-se no Rio de Janeiro, em quarta feira de cinzas. Atualidade.

ATO ÚNICO
A cena representa a sala e a alcova que Jorge ocupa em casa de Dona
Maria. Atirado sobre um velho canapé um hábito de frade encardido de suor e sujo
de lama. No chão, um par de luvas, igualmente sujas, e um nariz de papelão quase
a desfazer-se, preso a uns grandes bigodes e a um par de óculos.

Cena Primeira

Dona Maria, O Médico

O Médico — Que tem ele?

Dona Maria  — Não sei, doutor, não sei. O senhor Jorge tem muito bom coração, mas tem muito má cabeça: é doido pelo Carnaval.

O Médico — Gabo-lhe o gosto.

Dona Maria  — Ontem vestiu-se de frade, pôs aquele nariz postiço e andou, num carro todo enfeitado de flores, ao lado de uma sujeita que mora no Hotel Ravot, acompanhando um préstito. Só o vestuário da pelintra lhe custou perto de  oitocentos mil réis!

O Médico — Quem lhe disse?
  
Dona Maria — Os meus hóspedes não têm segredo para mim.

O Médico — Adiante.

Dona Maria  — Para se não constipar, o pobre moço levou consigo, por baixo do hábito, uma garrafa de conhaque e de vez em quando atiçava-lhe que era um gosto! Quando o préstito passou pela primeira vez na rua do Ouvidor (eu estava lá...) já ia o frade que não se podia lamber! Depois na rua da Constituição — isto sei eu por um amigo dele, que tudo viu — outro moço, também fantasiado, bifou-lhe a pelintra, e isso deu lugar...

O Médico — ... a um rolo! Pudera!...

Dona Maria — Racharam-lhe a cabeça!

O Médico — Naturalmente.

Dona Maria  — E o demônio do rapaz andou toda a noite, de cabeça rachada, à procura da tal mulher, dos Fenianos para os tenentes e dos Tenentes para os Democráticos, bebendo sempre, até cair na rua do Fogo, às três horas da madrugada!...

O Médico —  Com efeito!

Dona Maria — A polícia levou-o para a estação da travessa do Rosário, e pela manhã uns amigos que tinham sido avisados, trouxeram-no para casa.

O Médico — Onde está ele?

Dona Maria — Naquela alcova. Há cinco horas que ali está deitado, sem dar  acordo de si. Por isso, mandei chamá-lo, doutor.

O Médico — Fez bem. Vamos vê-lo.
(Entram na alcova)

Cena dois

Jorge, O Médico, Dona Maria
(Na alcova, Jorge está de cama, com a cabeça amarrada, os olhos fechados, os braços caídos. O médico, ao ver o enfermo tem um movimento que escapa à Dona Maria.)

O Médico (tomando o pulso do doente) — Não tem febre. (Depois e examinar-lhe a cabeça.) O ferimento nada vale... Já lhe puseram uns pontos falsos; é quanto basta... O seu hóspede tem apenas o que os estudantes chamam “uma ressaca”; precisa de descanso e mais nada. Quando voltar a si, se quiser tomar alguma coisa, dê-lhe uma canja, dois dedos de vinho do Porto misturado com água de Vichi, um pouco de marmelada, e disse. Se amanhã continuar incomodado, que tome um laxante.

Cena três

O Médico, Dona Maria
(Na sala.)

O Médico (Tomando o chapéu) — A senhora não imagina como estimei por ter sido chamado para ver este senhor Jorge. Foi uma providência.

Dona Maria —  Por que, doutor?

O Médico —  Conheço-o, mas não sabia que se tratava dele. É o namorado, quase noivo de minha afilhada, filha do meu amigo Raposo. A menina gosta dele, e o pai já estava meio inclinado a consentir no casamento; tinham-lhe dado boas informações sobre este pândego. Agora, porém, vou prevenir o compadre, e dissuadir minha afilhada, que é muito dócil e me ouve acatamento.

Dona Maria — Valha-me Deus! e sou eu a culpada de tudo isto!

O Médico — Culpada, por que?

Dona Maria — Por ter mandado chamar o padrinho! Pobre rapaz!...

O Médico  — A senhora deve estar, pelo contrário, satisfeita, por ter  indiretamente contribuído para este resultado. (Voltando-se para a alcova) Que grande patife! namorar uma menina pura como uma flor, e andar de carro, publicamente embriagado, em companhia de uma prostituta. Dona Maria — No carnaval tudo se desculpa.

O Médico — Nada! — eu sou o padrinho, o segundo pai daquele anjo!

Cena quatro

Dona Maria, tomando O Médico pelo braço

Dona Maria — Doutor, doutor, não vá assim zangado com o senhor Jorge... não  diga nada à família da menina... Ah! se eu soubesse... Mas que quer?... Vejo que este hóspede tem segredos para mim... (O doutor tenta safar-se). Ouça doutor... ele tem um bom emprego... é muito estimado pelos patrões...

O Médico — E a minha afilhada tem um dote de cento e cinqüenta contos.

Dona Maria (aterrada, largando o braço do médico) — Cento e cinqüenta contos!

O Médico       (saindo) — Fora o que lhe há de caber por morte do pai! (Chegando à
porta, para, volta-se e diz) Canja... vinho do Porto... água de Vichi... marmelada...  e disse!

Cena cinco

Dona Maria, depois Andrade

Dona Maria fica perplexa, de olhos baixos, na atitude de Fedra, quando diz:
Juste ciel! qu’ ai je faite aujourd’hui? É despertada bruscamente pelo comendador Andrade, que entra com espalhafato.

O Comendador (gritando) — Onde está o senhor Jorge?

Dona Maria (consigo) — Um homem zangado! É ele, é o pai da menina!

O Comendador — Senhora, pergunto-lhe pelo senhor Jorge!

Dona Maria — Está doente... naquela alcova... dorme...

O Comendador — Já me contaram as façanhas que ele praticou esta noite! (Apanhando o nariz postiço) Cá está uma prova!
Atira-o longe.

Dona Maria — Desculpe-me essa rapaziada, e não lhe negue a mão da menina.

O Comendador — A mão da menina! Que menina?

Dona Maria — Sua filha.

O Comendador — Minha filha? Qual delas? Pois este mariola ainda por cima se atreve a erguer os olhos para uma das filhas do seu patrão!

Dona Maria — Do seu patrão? Ah! então não é o senhor Raposo?

O Comendador  — Que Raposo, nem meio Raposo! Eu sou o comendador Andrade, sócio principal da firma Andrade, Gomes & Companhia! — O senhor Jorge
está dormindo, disse a senhora.

Dona Maria — Sim, senhor.

O Comendador — Pois bem; quando acordar, diga-lhe que eu aqui estive, e o ponho no olho da rua! Que apareça para fazermos as contas!

Dona Maria — Atenda, senhor comendador!
  
O Comendador —  A nada atendo! A casa Andrade, Gomes & Companhia não pode  er empregados que se embriagam e passam a noite no xadrez! Era o que faltava!
Sai arrebatadamente.

Cena seis

Jorge, Dona Maria

Na alcova, Dona Maria sai.

Jorge (Abre um olho, depois o outro, olha em volta de si, certifica-se que está em sua casa, dirige à Dona Maria um sorriso de agradecimento, solta um longo suspiro, e exclama com voz rouca e sumida) — Como eu me diverti!

Cai o pano


---
Nota:
Texto-fonte: Artur de Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901

Nenhum comentário:

Postar um comentário