A Raul Pompéia
— A que devo o prazer de uma visita a estas horas?
perguntou a viscondessa ao entrar na sala, onde havia quinze minutos, a
baronesa castigava o tapete com um pé pequenino e admiravelmente calçado.
Ergueu-se a formosa visitante, e suspirou, aliviada pela
presença da amiga íntima. Depois dos beijinhos consuetudinários, sentaram-se
ambas.
— O visconde ainda dorme?
— Ainda, e não acordará tão cedo: são apenas sete horas.
— Posso falar sem receio?
— Estamos completamente sós.
Houve uma pequena pausa.
— Temos então algum mistério? interrogou a dona da casa,
consertando as dobras da sua magnífica bata de rendas brancas. Histórias do
coração, aposto?
— Do coração? Não sei. Há quem diga que estas coisas nada
tem a ver com ele, mas com a cabeça... Em todo caso, fazem padecer.
— A quem o dizes!
— Não durmo há duas noites... há três dias não abro o
piano... Amor? - sei lá! Despeito, raiva, talvez...
— Conta-me tudo, disse a viscondessa, enxugando com os
lábios duas lágrimas que tremeluziam nos olhos da amiga; conta-me tudo. Os meus
trinta e nove outonos estão, como
sempre, às ordens das tuas vinte e cinco primaveras. Adivinho que se trata do
Bittencourt.
— Fale mais baixo.
— Não tenhas medo.
— Sim, venho ainda uma vez ao encontro dos seus
conselhos... Há oito meses a senhora ensinou-me a subjugá-los, a escravizá-lo
aos meus caprichos, aos meus ímpetos, ao meu amor; hoje, que ele se mostra
arredio, farto e insolente, só a senhora, com a sua experiência, a sua calma, o
seu bom senso e, sobre tudo, a sua amizade, me indicará os meios de
reconquistá-lo sem triunfo para ele nem humilhação para mim. A senhora teve
quatro amantes...
— Três, interrompeu serenamente a viscondessa; ao quarto
não se pode ainda aplicar o pretérito mais que perfeito: está no pleno gozo da
sua conquista.
— Pois bem, três, e nenhum deles a desprezou; no momento
oportuno a senhora desfez-se habilmente de todos três, sem deixar a nenhum o
direito de dizer, ao vê-la passar pelo braço do visconde: Fui eu que não quis
mais...
Houve outra pausa.
— Imagine, prosseguiu a baronesa, imagine que há mês e
meio só tenho estado com ele no Lírico, durante os espetáculos. Procura, para
cumprimentar-me, justamente as ocasiões que o meu marido está no camarote.
Escrevi-lhe duas cartas e um bilhete postal; não tive resposta!
— Que horror! murmurou a viscondessa, profundamente
impressionada.
— Vamos... diga-me... aconselhe-me! Que devo fazer?...
Estou irresoluta... a senhora bem sabe... é o meu primeiro amante...
— Deixa-me pensar, filhinha, deixa-me pensar. Estas coisas
não se decidem assim, num abrir e fechar de olhos!
E, depois de refletir alguns segundos, tamborilando com os
dedos nos braços da poltrona, a viscondessa inquiriu com a seriedade de um
velho advogado, comprometido a defender causa importante.
— Vejamos: o Bittencourt, segundo me consta, contraiu
ultimamente uma dívida de gratidão com teu marido...
— Sim, creio que sim... O barão, ao que parece, interveio
com muito empenho para que lhe dessem aquele belo emprego...
— Uma verdadeira sinecura.
— Mas... que tem isso?
— Tem tudo, filhinha; a moral fácil desses senhores
proíbe-lhes que sejam amantes da mulher, desde que devam favores ao marido.
— Quer isso dizer que tais favores são pagos à custa do
nosso amor próprio? — E do nosso próprio amor: o sacrifício é todo nosso! Podem
limpar a mão à parede com sua moral!
— Mas, por fim das contas, que devo fazer?
— Guerrear e vencer os escrúpulos tolos do teu amante!
Para isso é indispensável que ele te escreva. Verba volant, scripta moment.
— Não sei latim.
— Quero dizer que nenhum homem, por mais inteligente,
soube até hoje redigir uma epístola de amor sem se compromete. Na sua carta o
Bittencourt fatalmente renovará promessas, e o seu cavalheirismo — o seu
cavalheirismo pelo menos — o obrigará a cumpri-las. E quando o vires de novo
rendido a teus pés, manda-o passear; não nos convém esses amantes que fazem
pose da sua falsa dignidade.
— Mas por amor de Deus, viscondessa! Não lhe acabo de
dizer que as minhas cartas tem ficado sem resposta?
— A que lhes vai escrever agora não ficará sem ela. Tenho
um ardil que há tempos empreguei com ótimo resultado. Vem cá, acompanha-me.
A doutora levantou-se e dirigiu-se para um gabinete
contíguo. A baronesa acompanhou-a.
— Senta-te, e escreve o te vou ditar.
No dia seguinte o Bittencourt recebia este bilhete:
“Tenho-lhe escrito três cartas, e de nenhuma recebi
resposta. Não me queixo, perdôo: o senhor deve andar muito preocupado com o seu
novo emprego, e há momentos, parece, em que todo o homem honesto é obrigado a
sacrificar os seus afetos aos deveres e às responsabilidades da vida prática.
Paciência.
Entretanto, como o senhor agora já deve estar mais
folgado, tem por fim esta carta pedir-lhe a resposta das outras. — Sua quand
même, L.
“Post-scriptum — Há aqui no meu bairro grande dificuldade
de obter selos do Correio, e, para evitar suspeitas, não quero mandar buscá-los
à cidade. Peço-lhe que, com os cinco mil réis que inclusos encontrarás, compre
cinqüenta selos de tostão, e nos remeta dentro da sua carta quando me
responder. — Sua L.”
E ali está como o Bittencourt voltou, forçado por uma nota
de cinco mil réis!
---
---
Nota:
Texto-fonte:
Artur de Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901
Nenhum comentário:
Postar um comentário