
TEMPO DE CRISE
Queres tu saber, meu rico irmão, a notícia que achei no Rio de Janeiro, apenas pus pé em terra? Uma crise ministerial. Não imaginas o que é uma crise ministerial na cidade fluminense. Lá na província chegam as notícias amortecidas pela distância, e além disso completas; quando sabemos de um ministério defunto, sabemos logo de um ministério recém-nato. Aqui a coisa é diversa, assiste-se à morte do agonizante, depois ao enterro, depois ao nascimento do outro, o qual muitas vezes, graças às dificuldades políticas, só vem à luz depois de uma operação cesariana.
Quando desembarquei
estava o C. à minha espera na Praia dos Mineiros, e as suas primeiras palavras foram estas:
— Caiu o
ministério!
Tu sabes
que eu tinha razões para não gostar do gabinete, depois da questão de meu
cunhado, de cuja demissão ainda ignoro a causa. Todavia, senti que o gabinete
morresse tão cedo, antes de dar todos os seus frutos, principalmente quando o
negócio do meu cunhado era justamente o que me trazia cá. Perguntei ao C. quem
eram os novos ministros.
— Não sei,
respondeu; nem te posso afirmar se os outros caíram; mas desde manhã não corre
outra coisa. Vamos saber notícias. Queres comer?
— Sem
dúvida, respondi; vou residir no Hotel da Europa, se houver lugar.
— Há de
haver.
Seguimos
para o Hotel da Europa que é na Rua do Ouvidor; lá me deram um aposento e um
almoço. Acendemos charutos e saímos.
À porta
perguntei-lhe eu:
— Onde
saberemos notícias?
— Aqui
mesmo na Rua do Ouvidor.
— Pois
então na Rua do Ouvidor é que?
— Sim; a
Rua do Ouvidor é o lugar mais seguro para saber notícias. A casa do Moutinho ou
do Bernardo, a casa do Desmarais ou do Garnier, são verdadeiras estações
telegráficas. Ganha-se mais em estar aí comodamente sentado do que em andar
pela casa dos homens da situação.
Ouvi
silenciosamente as explicações do C. e segui com ele até um pasmatório político,
onde apenas encontramos um sujeito fumando, e conversando com o caixeiro.

— A que
horas esteve ela aqui? perguntava o sujeito.
— Às dez.
Ouvimos
estas palavras entrando. O sujeito calou-se imediatamente e sentou-se numa cadeira por trás de um mostrador, batendo
com a bengala na ponta do botim.
— Trata-se
de algum namoro, não? perguntei eu baixinho ao C.
— Curioso!
respondeu-me ele; naturalmente é algum namoro, tens razão; alguma rosa de Citera.
— Qual!
disse eu.
— Por quê?
— Os
jardins de Citera são francos; ninguém espreita as rosas por fora...
—
Provinciano! disse o C. com um daqueles sorrisos que só ele tem; tu não sabes que,
estando as rosas em moda, há certa honra para o jardineiro... Anda sentar-te.
— Não;
fiquemos um pouco à porta; quero conhecer esta rua de que tanto se fala.
— Com
razão, respondeu o C. Dizem de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele
só poderia compô-la, pois que não deixou intacta uma fibra sequer do coração
humano. Aplico el cuento. A Rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia,
pode a fúria celeste destruir a cidade; se conservar a Rua do Ouvidor, conserva
Noé, a família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto
da cidade fluminense é esta rua, rosto eloqüente que exprime todos os
sentimentos e todas as idéias...
—
Continua, meu Virgílio.
— Pois vai
ouvindo, meu Dante. Queres ver a elegância fluminense. Aqui acharás a flor da
sociedade, — as senhoras que vêm escolher jóias ao Valais ou sedas a Notre
Dame, — os rapazes que vêm conversar de teatros, de salões, de modas e de
mulheres. Queres saber da política? Aqui saberás das notícias mais frescas, as evoluções próximas, dos acontecimentos
prováveis; aqui verás o deputado atual com o deputado que foi, o ministro
defunto e às vezes o ministro vivo. Vês aquele sujeito? É um homem de letras.
Deste lado, vem um dos primeiros negociantes da praça. Queres saber do estado
do câmbio? Vai ali ao Jornal do Commercio, que é o Times de cá. Muita vez
encontrarás um coupé à porta de uma loja de modas: é uma Ninon fluminense. Vês um
sujeito ao pé dela, dentro da loja, dizendo um galanteio? Pode ser um diplomata. Dirás que eu
só menciono a sociedade mais ou menos
elegante? Não; o operário pára aqui também para ter o prazer de contemplar
durante minutos uma destas vidraças rutilante de riqueza, — porquanto, meu caro
amigo, a riqueza tem isto de bom consigo, — é que a simples vista consola.
Saiu-me o
C. tamanho filósofo que me espantou. Ao mesmo tempo agradeci ao céu tão
precioso encontro. Para um provinciano, que não conhece bem a capital, é uma
felicidade encontrar um cicerone inteligente.
O sujeito
que estava dentro chegou à porta, demorou-se alguns instantes, e saiu acompanhado
por outro, que então passava.
— Cansou
de esperar, disse eu.

—
Sentemo-nos.
Sentamo-nos.
— Fala-se
então de tudo aqui?
— De tudo.
— Bem e
mal?
— Como na
vida. É a sociedade humana em ponto pequeno. Mas por enquanto o que nos importa
é a crise; deixemos de moralizar...
Interessava-me
tanto a conversa, que pedi ao C. a continuação das suas lições, tão necessárias
a quem não conhecia a cidade.
— Não
te iludas, disse
ele, a melhor
lição deste mundo
não vale um
mês de experiência e de observação. Abre um moralista;
encontrarás excelentes análises do coração humano; mas se não fizeres a
experiência por ti mesmo pouco te valerá o teres lido. La Rochefoucauld aos
vinte anos faz dormir; aos quarenta é um livro predileto...
Estas
últimas palavras revelaram no C. um desses indivíduos doentes que andam a ver
tudo cor de morte e do sangue. Eu que vinha para divertir-me, não queria estar
a braços com um segundo volume de nosso Padre Tomé, espécie de Timon cristão, a
quem darás a ler esta carta, acompanhada de muitas lembranças minhas.
— Sabes
que mais? disse eu ao meu cicerone, vim para divertir-me, e por isso acho-te
razão; tratemos da crise. Mas por enquanto nada sabemos, e...
— Aqui vem
o nosso Abreu, que há de saber alguma coisa.
O Dr.
Abreu que entrou nesse momento, era um homem alto e magro, longo bigode,
colarinho em pé, paletó e calças azuis. Fomos apresentados um ao outro. O C.
perguntou-lhe o que sabia da crise.
— Nada,
respondeu misteriosamente o Dr. Abreu; apenas ouvi ontem de noite que os homens
não se entendiam...
— Mas eu
já hoje ouvi dizer na praça que havia crise formal, disse o C.
— É
possível, disse o outro. Saí agora mesmo de casa, e vim logo para aqui... Houve
Câmara?
— Não.
— Bem;
isso é um indício. Estou capaz de ir à Câmara...
— Para quê?
Aqui mesmo saberemos.
O Dr.
Abreu tirou um charuto de uma charuteira de marroquim encarnado, e fitando
muito os olhos no chão, como quem está seguindo um pensamento, acendeu quase
maquinalmente o charuto.
Soube
depois que era um meio inventado por ele para não oferecer charutos aos circunstantes.
— Mas que
lhe parece? perguntou-lhe o C. passando algum tempo.

—
Parece-me que os homens caem. Nem podia deixar de ser assim. Há mais de um mês
que andam brigados.
— Mas por
quê? perguntei eu.
— Por
várias coisas; e a principal é justamente a presidência da sua província...
— Ah!
— O
Ministro do Império quer o Valadares, e o da fazenda insiste pelo Robim. Ontem
houve conselho de ministros, e o do Império apresentou definitivamente a nomeação
do Valadares... Que faz o colega?
— Ora,
vivam! Então já sabem da crise?
Esta
pergunta era feita por um sujeito que entrou pela loja mais rápido que um foguete.
Trazia na cara uns ares de gazeta noticiosa.
— Crise
formal? perguntamos todos.
—
Completa. Os homens brigaram ontem de noite; e foram hoje de manhã a S. Cristóvão...
— É o que
dizia, observou o Dr. Abreu.
— Qual o
verdadeiro motivo da crise? perguntou o C.
— O
verdadeiro motivo foi uma questão da guerra.
— Não
creia nisso!
O Dr.
Abreu disse estas palavras com um ar de tão altiva convicção, que o recém- chegado
replicou um pouco enfiado:
— Sabe
então o verdadeiro motivo mais do que eu que estive com o cunhado do Ministro
da Guerra?
A réplica
pareceu decisiva; o Dr. Abreu limitou-se a fazer aquele gesto com que a gente
costuma dizer: Pode ser...
— Seja
qual for o motivo, disse o C., a verdade é que temos crise ministerial; mas será
aceita a demissão?
— Eu creio
que é, disse o Sr. Ferreira (era o nome do recém-chegado).
— Quem
sabe?
Ferreira
tomou a palavra:
— A crise
era prevista; eu há mais de quinze dias anunciei ali em casa do Bernardo, que a crise não podia deixar de
estar iminente. A situação não podia prolongar-se; se os ministros não
concordassem a Câmara os obrigaria a sair. Já a deputação da Bahia tinha
mostrado os dentes, e até sei (posso dizê-lo agora) sei que um deputado do
Ceará estava para apresentar uma moção de desconfiança...
Ferreira
disse estas palavras em voz baixa, com o ar misterioso que convém a certas
revelações. Nessa ocasião ouvimos um carro. Corremos à porta; era efetivamente
um ministro.
— Mas
então não estão todos em S. Cristóvão? observou o C.

— Este vai
naturalmente para lá.
Ficamos à
porta; e o grupo foi-se pouco a pouco aumentando; antes de um quarto de hora éramos oito. Todos falavam na crise;
uns sabiam a coisa de fonte certa; outros por ouvir dizer. O Ferreira saiu
pouco depois dizendo que ia à Câmara saber
o que havia de novo. Nessa ocasião apareceu um desembargador e indagou se era
exato o que se dizia relativamente à crise ministerial.
Afirmamos
que sim.
— Qual
seria a causa? perguntou ele.
O Abreu,
que dera antes como causa a presidência lá da província, declarou agora ao
desembargador que uma questão da guerra produzira o desacordo entre os ministros.
— Está
certo disso? perguntou o desembargador.
—
Certíssimo; soube-o hoje mesmo do cunhado do Ministro da Guerra.
Nunca vi
maior facilidade em mudar de opinião, nem maior descaro em colher as afirmações
alheias. Interroguei depois o C. que me respondeu:
— Não te
espantes; em tempo de crise é sempre bom mostrar que se anda bem informado.
Dos
presentes eram quase todos oposicionistas, ou pelo menos faziam coro com o Abreu,
que fazia diante do cadáver ministerial o papel de Bruto diante do cadáver de
César. Alguns defendiam a vítima, mas como se defende uma vítima política, sem
grande calor nem excessiva paixão.
Cada
personagem novo trazia uma confirmação ao trato; já não era trato; evidentemente
havia crise. Grupos de políticos e politicões estavam parados às portas das
lojas, conversando animadamente. De quando em quando surgia ao longe um
deputado. Era logo cercado e interrogado; e só se colhia a mesma coisa.
Vimos ao
longe um homem de 35 anos, meão na altura, suíças, luneta pênsil, olhar profundo,
acompanhando uma influência política.
— Graças a
Deus! agora vamos ter notícias frescas, disse o C.
Ali vem o
Mendonça; há de saber alguma coisa.
A
influência política não pôde passar de outro grupo; o Mendonça veio ao nosso.
— Venha
cá; você que lambe os vidros por dentro há de saber o que há?
— O que
há?
— Sim.
— Há
crise.
— Bem; mas
os homens saem ou ficam?
Mendonça
sorriu, depois ficou sério, corrigiu o laço da gravata, e murmurou um: não sei; assaz parecido com um: sei demais.
Olhei
atentamente para aquele homem que parecia estar senhor dos segredos do
Estado, e admirei a discrição com que os
ocultava de nós.
Estado, e admirei a discrição com que os
ocultava de nós.
— Diga o
que sabe, Sr. Mendonça, disse o desembargador.
— Eu já
disse a V. Excia. o que há, interrompeu o Abreu; pelo menos tenho razão para
afirmá-lo. Não sei o que sabe lá o Sr. Mendonça, mas creio que não estará comigo...
Mendonça
fez um gesto de quem ia falar. Foi cercado por todos. Ninguém ouviu com mais atenção o oráculo de Delfos.
— Sabem
que há crise; a causa é muito secundária, mas a situação não podia prolongar-se.
— Qual é a
causa?
— A
nomeação de um juiz de direito.
— Só!
— Só.
— Já sei o
que é, disse Abreu sorrindo. Era negócio pendente há muitas semanas.
— Foi
isso. Os homens lá foram ao paço.
— Será
aceita a demissão? perguntei eu.
Mendonça
abaixou a voz.
— Creio
que é.
Depois
apertou a mão ao desembargador, ao C. e ao Abreu e retirou-se com a mesma
satisfação de um homem que acaba de salvar o Estado.
— Pois,
senhores, eu creio que esta versão é a verdadeira. O Mendonça anda informado.
Passa
defronte um sujeito.
— Anda cá,
Lima, gritou Abreu.
O Lima
aproximou-se.
— Estás
convidado para o ministério?
— Estou;
você quer alguma pasta?
Não penses
que este Lima era alguma coisa; o dito de Abreu era um gracejo que se renova em
todas as crises.
A única
preocupação do Lima eram umas senhoras que passavam. Ouvi dizer que eram as
Valadares, — a família do indigitado presidente. Pararam à porta da loja, conversaram
alguma coisa com o C. e o Lima, e seguiram viagem.
— São
lindas estas moças, disse um dos circunstantes.
— Eu era
capaz de as nomear para o ministério.
— Sendo eu
presidente do conselho.

— Também
eu.
— A mais
gorda devia ser Ministro da Marinha.
— Por quê?
— Porque
parece mesmo uma fragata.
Ligeiro
sorriso acolheu este diálogo entre o desembargador e o Abreu. Viu-se ao longe
um carro.
— Quem
será? Algum ministro?
— Vejamos.
— Não; é a
A...
— Como vai
bonita!
— Pudera!
— Ela já
tem carro?
— Há muito
tempo.
— Olhem,
ali vem o Mendonça.
— Vem com
outro. Quem é?
— É um
deputado.
Passaram
os dois juntos de nós. O Mendonça não nos cumprimentou; ia conversando baixinho
com o deputado.
Houve
outra trégua na conversa política. E não te admires. Nada mais natural do que
entremear aqui uma discussão sobre crise política com as sedas de uma dama do
tom.
Finalmente
surgiu de longe o já citado Ferreira.
— Que há?
perguntamos quando ele chegou.
— Foi
aceita a demissão.
— Quem é o
chamado?
— Não se
sabe.
— Por quê?
— Dizem
que os homens ficam com as pastas até segunda-feira.
Dizendo
estas palavras, o Ferreira entrou, e foi sentar-se. Outros o imitaram; alguns
se foram embora.
— Mas
donde sabe isso? disse o desembargador.
— Soube na
Câmara.

— Não me
parece natural.
— Por quê?
— Que força
moral deve ter um ministério já demitido e ocupando as pastas?
—
Realmente, a coisa é singular; mas eu ouvi ao primo do Ministro da Fazenda.
Ferreira
tinha a particularidade de andar informado pelos parentes dos ministros; pelo
menos, assim o dizia.
— Quem
será chamado?
—
Naturalmente o N.
— Ou o P.
— Já hoje
de manhã se dizia que era o K.
Entrou o
Mendonça; o caixeiro deu-lhe uma cadeira, e ele sentou-se ao lado do Lima, que
nesse momento descalçava as luvas, ao mesmo tempo que o desembargador oferecia
rapé aos circunstantes.
— Então,
Sr. Mendonça, quem é o chamado? perguntou o desembargador.
— O B.
— Com
certeza?
— É o que
se diz.
— Eu ouvi
que só na segunda-feira se organizará ministério novo.
— Qual!
insistiu Mendonça; afirmo-lhe que o B. foi ao paço.
— Viu-o?
— Não, mas
disseram-mo.
— Pois
acredite que até segunda-feira...
A conversa
ia-me interessando; eu já tinha esquecido o interesse que ligava à mudança dos
ministros, para atender simplesmente ao que se passava diante de mim. Não
imaginas o que é formar um ministério na rua antes que ele esteja formado no
paço.
Cada qual
expôs a sua conjetura; vários nomes foram lembrados para o poder. Às vezes
aparecia um nome contra o qual se apresentavam objeções; então replicava o
autor da combinação:
— Está
enganado; pode o F. ficar com a pasta da Justiça, o M. com a da Guerra, K.
Marinha, T. Obras Públicas, V. Fazenda, X. Império, e C. Estrangeiros.
— Não é
possível; o V. é que deve ficar com a pasta de Estrangeiros.
— Mas o V.
não pode entrar nessa combinação.
— Por quê?
— É
inimigo do F.

— Sim; mas
a deputação da Bahia?
Aqui
coçava o outro a orelha.
— A
deputação da Bahia, respondia ele, pode ficar bem metendo o N.
— O N. não
aceita.
— Por quê?
— Não quer
ministério de transição.
— Chama a
isto ministério de transição?
— Pois que
é mais?
Este
diálogo em que todos tomavam parte, inclusive o C. e que era repetido sempre que um dos circunstantes apresentava
uma combinação nova, foi interrompido
pela chegada de um deputado.
Desta vez
íamos ter notícias frescas.
Efetivamente
soubemos pelo deputado que o V. tinha sido chamado ao paço e estava organizando
gabinete.
— Que
dizia eu? exclamou Ferreira. Nem era de ver outra coisa. A situação é do V.; o
seu último discurso foi o que os franceses chamam discurso-ministro. Quem são os outros?
— Por ora,
disse o deputado, só há dois ministros na lista: o da Justiça e o do Império.
— Quem
são?
— Não sei,
respondeu o deputado.
Não me foi
difícil ver que o homem sabia, mas era obrigado a guardar segredo. Compreendi
que aquele é que lambia os vidros por dentro, expressão muito usada em tempo de
crise.
Houve um
pequeno silêncio. Conjeturei que cada qual estivesse a adivinhar quem seriam os
nomeados; mas, se alguém os descobriu, não os nomeou.
O Abreu
dirigiu-se ao deputado.
— V. Ex.a
acredita que o ministério fique organizado hoje?
— Creio
que sim; mas daí pode ser que não...
— A
situação não é boa, observou Ferreira.
—
Admira-me que V. Ex.a não seja convidado...
Estas
palavras, naquela ocasião inconvenientes, foram pronunciadas pelo Lima, que
trata a política como trata as mulheres e os cavalos. Cada um de nós procurou
disfarçar o efeito de semelhante tolice, mas o deputado respondeu direitamente
à pergunta:
— Pois não
me admira nada disso; deixo o lugar aos componentes. Estou pronto a
servir como soldado... Não passo disso.
servir como soldado... Não passo disso.
— Perdão,
é muito digno!
Entrou um
homem esbaforido. Fiquei surpreso. Era um deputado. Olhou para todos, e dando com os olhos no colega, disse:
— Podes
dar-me uma palavra?
— Que é?
perguntou o deputado levantando-se.
— Vem cá.
Foram até
à porta, depois despediram-se de nós e seguiram apressadamente para cima.
— Estão
ambos ministros, exclamou Ferreira.
—
Acredita? perguntei eu.
— Sem
dúvida.
Mendonça
foi da mesma opinião; e foi a primeira vez que o vi adotar uma opinião alheia.
Eram duas
horas da tarde quando saíram os dois deputados. Ansiosos por saber mais
notícias, saímos todos e descemos a rua vagarosamente. Grupos de quatro e cinco
se entretinham com o assunto do dia. Parávamos; combinávamos as versões; mas
não retificavam as dos outros. Um desses grupos já estavam os três ministros
nomeados; outro acrescentava os nomes dos dois deputados, pela única razão de
os ter visto entrar num carro.
Às três
horas já corriam versões de todo o gabinete, mas era tudo vago.
Determinamos
não voltar para casa sem saber do resultado da crise, salvo se a notícia não
viesse até às cinco horas, pois era de mau gosto (disse-me o C.) andar na Rua
do Ouvidor às 5 horas da tarde.
— Mas qual
será o meio de saber? perguntei eu.
— Eu vou
ver se colho alguma coisa, disse Ferreira.
Vários
incidentes nos iam detendo a marcha: algum amigo que passava, uma mulher que
saía de uma loja, uma jóia nova em uma vidraça, um grupo tão curioso como o
nosso, etc.
Nada se
soube nessa tarde.
Voltei
para o Hotel da Europa a fim de descansar e jantar; o C. jantou comigo. Conversamos
muito do tempo da academia, dos nossos amores, das nossas travessuras, até que
a noite veio e resolvemos voltar à Rua do Ouvidor.
— Não era
melhor irmos à casa do V., pois que é ele o organizador do gabinete? perguntei.
—
Principalmente, não temos tamanho interesse que justifique esse passo, respondeu
o C.; depois, é natural que ele não nos possa falar. Organizar um gabinete não é coisa simples. Finalmente,
apenas o gabinete estiver organizado cá saberemos na rua qual ele é.
A Rua do
Ouvidor é lindíssima à noite. Estão os rapazes às portas das lojas, vendo passar
as moças, e como tudo está iluminado, não imaginas o efeito que faz.
Confesso
que me esqueceu o ministério e a crise. Havia então menos quem cuidasse de política; a noite da Rua do
Ouvidor pertence exclusivamente à fashion, que é menos dada
aos negócios do Estado que os freqüentadores de dia. Todavia, achamos alguns
grupos onde se dava como certa a organização do gabinete, mas não se sabia ao
certo quem eram os ministros todos.
Encontramos
os mesmos amigos da manhã.
Ora,
justamente quando o Mendonça se dispunha a ir colher alguma coisa certa, apareceu
o desembargador com o rosto alegre.
— Que há?
— Está
organizado.
— Mas quem
são?
O
desembargador tirou do bolso uma lista.
— São
estes.
Lemos os
nomes à luz do lampião de um mostrador. O Mendonça não gostou do gabinete; o
Abreu achou-o excelente; o Lima, fraco.
— Mas isto
é certo? perguntei eu.
— Deram-me
agora esta lista; creio que é autêntica.
— O que é?
perguntou por trás de mim uma voz.
Era um
sujeito moreno e bigode grisalho.
— Sabe
quem são? perguntou-lhe o Abreu.
— Tenho
uma lista.
— Vejamos
se combina com esta.
Costearam-se
as listas; havia engano num nome.
Mais
adiante encontramos outro grupo lendo outra lista. Divergiam em dois nomes.
Alguns sujeitos que não tinham lista copiavam uma deles, deixando de copiar os
nomes duvidosos, ou escrevendo-os todos com uma cruz à margem. Corriam assim as
listas até que apareceu uma com ares de autêntica; outras foram aparecendo no
mesmo sentido e às 9 horas da noite sabíamos positivamente, sem arredar pé da
Rua do Ouvidor, qual era o gabinete.
O Mendonça
ficou alegre com o resultado da crise.
Perguntaram-lhe
por que razão.
— Tenho
dois compadres no ministério! respondeu ele.
Aqui tens
o quadro infiel de uma crise ministerial no Rio de Janeiro. Infiel digo, porque
o papel não pode conter os diálogos, nem as versões, nem os comentários, nem as
caras de um dia de crise. Ouvem-se, contemplam-se; não se descrevem.
---
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em Jornal das Famílias, abril de 1873.. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em Jornal das Famílias, abril de 1873.. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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