
FRANCISCA
O poeta Daniel amava em Francisca tudo: o coração, a beleza, a mocidade, a inocência e até o nome. Até o nome! De mim digo que acho razão em Daniel. Não julguemos este nome de Francisca pelo uso e abuso que dele se faz; mas pela harmonia e doçura daquelas três sílabas, tão bem ligadas, tão amorosamente doces.
Daniel
amava até o nome. Tinha nela o ideal da felicidade doméstica que se preparava a
conquistar mediante as fórmulas sagradas do matrimônio.
O amor
nasceu naqueles dois corações como a flor em planta que está de vez. Pareceu coisa escrita no livro dos destinos.
Viram-se e amaram-se: o amor que os tomou foi um desses amores profundos e
violentos a que nada resiste: um destes amores que fazem supor a existência de
um sistema em que duas almas descem a este mundo, já predestinadas a viverem de
si e entre si.
Ora,
Francisca, no tempo em que Daniel a viu pela primeira vez, era um tipo de beleza
cândida e inocente de que a história e a literatura nos dão o exemplo em Ruth,
Virgínia e Ofélia; a pureza exterior denunciava a pureza interior; lia-se-lhe na
alma através dos olhos límpidos e sinceros; uma sensibilidade sem pieguices, uma
modéstia sem afetação, tudo o que a natureza, que ainda se não perverteu, pode oferecer ao coração e aos olhos de um
poeta, tudo existia na amada do poeta Daniel.
Se aquelas
duas existências se unissem logo, se consolidassem desde o princípio o
sentimento que por tanto tempo os estremeceu, era certo que a mais perfeita união
moral os levaria até os mais longos anos, sem perturbação de natureza alguma.
Mas não
foi possível isto. As fortunas eram desiguais, mesmo muito desiguais, visto
como se Francisca possuía um dote quase principesco, Daniel possuía apenas o
coração, o talento e a virtude, três unidades sem valor em matérias matrimoniais.
O pai de
Francisca opôs logo a objeção da fortuna ao amor da pobre menina, e esta
comunicou as palavras do pai a Daniel. Foi uma noite de lágrimas. A idéia de fugirem
para um ermo em que pudessem viver livres das peias sociais veio-lhes ao
espírito, sem que nem um nem outro a comunicasse, tal era o fundo honesto dos
seus corações.
Daniel
entrou em casa com o coração apertado e as lágrimas a saltarem dos olhos. Murchou-se logo a primeira ilusão, a
ilusão de que todos os homens se guiam unicamente pelos princípios dos
sentimentos puros e das idéias generosas. Era a primeira vez que ele se achava diante do
homem prático, do homem-coisa, do homem-dinheiro,
do homem-humanidade. Até então vivera nas regiões ideais das quimeras e dos
sonhos. Não cuidava que o mundo estivesse fora dali. Mas o pobre Daniel pagou
caro esta primeira descoberta.
Que fazer?
Daniel, não esperando atraí-lo a si, julgou dever sacrificar-se ao
mundo. Era preciso fazer fortuna; decidiu-se a
procurar um meio de fazê-la. Para isso dirigiu-se ao pai de Francisca;
disse-lhe que amava a moça; que desejava unir-se a ela; que não tinha fortuna;
mas que jurava arranjá-la dentro de algum tempo. E exigiu a promessa formal do
velho.
mundo. Era preciso fazer fortuna; decidiu-se a
procurar um meio de fazê-la. Para isso dirigiu-se ao pai de Francisca;
disse-lhe que amava a moça; que desejava unir-se a ela; que não tinha fortuna;
mas que jurava arranjá-la dentro de algum tempo. E exigiu a promessa formal do
velho.
O velho,
que era homem prático, não fez promessa alguma, e limitou-se a dizer que, se
Francisca estivesse solteira quando ele aparecesse a pedi-la dava-lhe sem
condições.
Nisto
separaram-se.
Daniel
partiu para Minas Gerais.
Eu devia
dizer desde o começo que ambos moravam no Rio de Janeiro, onde nasceu e cresceu
o amor de Daniel e Francisca.
Daniel
encontrou um parente afastado a quem contou as suas infelicidades e as suas resoluções. O parente propôs-lhe irem
ambos a Minas e prometeu-lhe adquirir
uma fortuna regular dentro de pouco tempo, em vista das vantagens excepcionais
e extraordinárias que lhe oferecia.
Daniel e o
parente partiram; este para novas excursões, aquele para adquirir a última
qualidade que lhe faltava a fim de unir-se a Francisca.
Daniel
despediu-se de Francisca e da musa. Houve para ambas as entrevistas de despedida,
a escada de seda, e a calhandra de Romeu. A ambas deu o moço lágrimas de
verdadeira dor; mas era necessário, para depois gozá-las melhor, abandoná-las por algum tempo, como lastro
incômodo de viagem.
Decorreram
seis anos.
No fim
desse prazo Daniel, que então contava vinte e cinco anos, voltava de Minas,
senhor de uma fortuna regular e à frente de um estabelecimento que lhe prometia
muito mais.
O parente
tinha morrido e deixara-lhe todas as suas posses.
Dois meses
antes tinham cessado as demoradas e sempre interrompidas relações que
conservara com Francisca. Como estivesse afeito a esses silêncios longos não reparou
em nada e preparou-se a causar a Francisca a mais deliciosa das surpresas.
Se o
tempo, se o gênero de vida, se as contrariedades tinham produzido em Daniel
algum esquecimento pela poesia, nada alterou no que dizia respeito ao amor por
Francisca. Era o mesmo amor, tão vivo como nos primeiros tempos, agora mais
ainda, com a idéia de que se curvavam os desejos de ambos.
Chegando
ao Rio de Janeiro não quis ir logo à casa de Francisca. Julgou que primeiro
devia informar-se dela, da afeição que ela parecia ter por ele, enfim saber se
era digna do amor que resistira ao tempo e à distância e que fora o sacrifício
dos dons de Deus.
Ora, ao
entrar para o hotel em que pretendia ficar durante os primeiros dias, saiu-lhe
ao encontro uma fisionomia conhecida.
— César!
exclamou ele.
— Daniel!
exclamou César.
E depois
dos abraços e das primeiras perguntas, César convidou Daniel a tomar
parte em um almoço que alguns amigos lhe
ofereciam, em ação de graças pela nomeação de César para um cargo
administrativo.
parte em um almoço que alguns amigos lhe
ofereciam, em ação de graças pela nomeação de César para um cargo
administrativo.
Daniel
aceitou, foi apresentado, e a mais íntima confabulação travou-se entre todos os
convivas.
Quando o
almoço se terminou e todos os convivas se separaram, Daniel e César ficaram sós
e subiram ao aposento que Daniel tinha mandado preparar.
César foi
quem falou em primeiro lugar.
— Ora, não
me dirás, agora que estamos a sós, que motivo te levou da corte e onde
estiveste durante estes seis anos?
— Estive
em Minas Gerais.
— Fizeste
fortuna, pelo que vejo?
— Alguma.
— Mas que
motivo?
— O motivo
foi um motivo de amor.
— Ah!
— Amava
uma rapariga com quem não consentiram que eu casasse sem possuir fortuna...
— E tu?
—
Sacrifiquei a musa da poesia à musa da indústria. Fui desencavar a apólice mais
valiosa do meu coração, e aqui estou pronto para entrar no templo da felicidade.
— Quem é
essa feliz criatura?
— Oh! isso
depois...
— Tens
receio...
— Não...
— É do meu
conhecimento?
— Não, que
eu saiba.
— Deus te
faça feliz, meu poeta.
— Amém. E
tu?
— Eu estou
casado.
— Ah!
— É
verdade; casado.
— És
feliz?
—
Acredito.
— Não
afirmas?
— Acredito
que sou; quem pode afirmar coisa alguma?
— Isso é
verdade.
A reflexão
de César fez cismar Daniel. Quem pode afirmar coisa alguma? Repetia o ex-poeta
mentalmente.
— Moro na
rua de... Vai lá ter amanhã, sim?
— Não sei;
mas na primeira ocasião conta comigo.
— Estou
quase sempre em casa. Toma.
E tirando
um bilhete de visita em que havia o nome, a rua e o número da casa, entregou-o a Daniel.
Feito o
que, separaram-se.
Daniel
ficou só. Tratou de saber de alguns amigos e conhecidos antigos notícias de
Francisca, e foi procurá-los. Quis a fatalidade que os não encontrasse. Nisso gastou
a noite e o dia seguinte. Enfim, resolveu-se a ir procurar Francisca e aparecer-lhe
como a felicidade tão longamente esperada e agora realizada e viva.
Em caminho
fez e desfez mil projetos acerca do modo por que havia de aparecer à amada do
seu coração. Nessas reflexões ia aborrecido, caminhando ao acaso, como movido
por uma mola estranha.
No meio de
um desses planos levantou os olhos e viu debruçada na grade de uma janela...
quem? Francisca, a linda Francisca, por amor de quem fora tantas léguas
distante, comer o pão suado do trabalho e da fadiga.
Soltou um
pequeno grito. A moça, que até então fixava nele os olhos, como procurando reconhecê-lo, soltou outro grito e
entrou.
Daniel,
comovido e ébrio de felicidade, apressou o passo incerto e entrou no corredor da casa em que vira Francisca.
A casa não
era a mesma, e o criado que servia de porteiro não era o mesmo que outrora
patrocinava o amor de ambos. Mas Daniel pouco reparou nisso; subiu as escadas e
só parou no patamar.
Aí
descansou. Estava ofegante e ansiado. Não quis bater palmas; esperou que se lhe abrisse a porta. Daí a alguns minutos
vieram abrir-lhe, e Daniel entrou na sala,
onde não havia ninguém.
Sentou-se
e esperou.
Esperou um
quarto de hora.
Cada
minuto deste quarto de hora parecia-lhe um século, tanta era a sede de tornar a
ver aquela que até ali tinha feito palpitar o seu coração.
No fim do
quarto de hora sentiu rumor de passos no corredor. Supôs que fosse o pai de
Francisca e procurou acalmar-se de modo a dar confiança ao velho prático. Mas
enganou-se; um rumor de sedas, mais distante, fez-lhe crer que era Francisca.
Abriu-se a porta: era Francisca.

Era
Francisca?
Ninguém o
dissera.
Era a
estátua do sofrimento animada, via-se que uma dor latente mas devoradora
consumia aquela existência malfadada. Um traço azul, mas levemente acinzado,
circulava os belos olhos que, se ainda conservavam algum fogo, era o fogo de uma febre contínua. Tinha
emagrecido. Ainda assim era poética, de outra poesia, é certo, que não a poesia
virginal dos primeiros anos, poética daquela poesia que influi e domina os
espíritos superiores.
Daniel
recuou um passo diante da mulher transformada que lhe aparecia. Depois, o
movimento natural foi abrir-lhe os braços.
Francisca
hesitou; depois cedendo a uma força interior abraçou Daniel. Breve amplexo a
que a moça se esquivou com um esforço.
Depois convidou
Daniel a sentar-se. Indagou da saúde e do resultado dos seus trabalhos. Quando
Daniel contou-lhe tudo o que sofrera para chegar a conseguir alguma coisa e
colocar-se na situação de aspirar-lhe à mão, Francisca levou o lenço aos olhos
e enxugou duas lágrimas, duas apenas, mas ardentes como lavas.
— Mas
enfim... disse Daniel.
Francisca
interrompeu-o:
— Daniel,
o nosso casamento é impossível.
—
Impossível!
— Eu estou
casada!
—
Casada!...
— É
verdade...
Seguiram-se
longos minutos de silêncio. Francisca tinha os olhos baixos; Daniel olhava
fixamente para a moça a ver se tinha diante de si um monstro ou uma vítima.
Depois,
levantou-se e tomando o chapéu, disse:
— Adeus!
A moça
levantou os olhos para Daniel e disse-lhe timidamente:
— Sem uma
explicação?
— Que
explicação?
— Oh! não
me acuse! fui violentada. Meu pai desejou casar-me apenas apareceu um bom
partido. Chorei, roguei, implorei. Tudo foi em vão. Fez-me casar. Oh! Se soubesse
como tenho sofrido!
Daniel
olhou de novo para Francisca, perscrutando se era verdade o que ela dizia ou
fingimento.
Francisca
era sincera.

A moça
continuou:
—
Casei-me: meu marido era bom; mas eu não o amava; hoje mal o estimo; e ainda
assim é por mim. Vendo que eu não correspondia com um amor igual ao seu tornou-se
frio e reservado. Mas nem isso reparo; procurei esquecer o amor impossível que
eu trazia comigo e não pude. Não me vê magra? Acredita que o esteja por efeito
de arte?
Daniel
sentou-se de novo e tapou o rosto com as mãos.
O primeiro
movimento da moça foi arrancar-lhe as mãos do rosto e animá-lo com uma palavra
de afeição. Mas a idéia do dever apresentou-se-lhe ao espírito; Francisca pôde
conter-se. Era já muito o que dissera. A moça amara ardentemente Daniel; agora
mesmo ela sentia que se lhe abriam no coração, com o frescor primitivo, as flores cândidas do
antigo amor. Mas Francisca podia sofrer no interior; não era escrava das
paixões ao ponto de esquecer as leis do dever. Ora, o dever fazia de Daniel naquele momento
um homem estranho.
Daniel levantou-se.
— Adeus!
disse ele.
— Adeus!
murmurou a moça.
E Daniel
com passo lento e incerto dirigiu-se para a porta. Francisca acompanhava-o com
um último olhar, comprimindo o coração. Sentiu-se o rumor de passos de quem
subia a escada.
— É meu
marido, disse Francisca levantando-se.
— Direi
que sou um amigo de seu pai que estava fora e que vim visitá-la.
Abriu-se a
porta e César entrou.
— Oh! já
cá estás! disse César a Daniel.
Daniel
estava surpreso; começava a adquirir sangue frio para engendrar a resposta ao
marido de Francisca, que supunha não conhecer, e em vez de um estranho,
aparece-lhe o velho amigo em quem ele nunca pensara para marido de Francisca.
César
continuou:
— Está
bom; não precisa ir já embora. Senta-te, descansa...
— Tinha
que fazer...
— Deixa-te
disso.
E tomando
o chapéu a Daniel fê-lo sentar de novo.
—
Conhecias minha mulher?
—
Conhecia, disse Daniel depois de hesitar e consultando o olhar de Francisca.
Esta
acrescentou:
— O sr.
Daniel ia lá em casa de meu pai,
—
Conhecias um anjo, disse César.
Daniel não
respondeu.
Francisca
sorria tristemente.
— Pois meu
caro Daniel, acrescentou César, é aqui a nossa casa. Olha que eu falo assim com
todo o coração. Digo nossa porque espero que a antiga amizade subsistirá como
antes. Ah! sabes, meu amor, disse César voltando-se para Francisca, sabes que
Daniel foi a Minas buscar o meio de...
— É
segredo, interrompeu Daniel que receava as palavras de César pelo que elas poderiam
produzir em Francisca.
— É
segredo?
— É.
— Ah!
então... Mas, enfim, o que eu posso dizer é que procedeste como um herói. Ah! meu poeta, eu devia contar com
isto; sempre tiveste queda para as idéias generosas e os lances elevados. Deus
te faça feliz!
A conversa
continuou assim: César, na plena ignorância das coisas, era familiar e folgazão;
Daniel, apesar dos sentimentos contrários que lhe enchiam o coração, procurava conversar com o marido de Francisca
de modo a não inspirar-lhe suspeitas que pudessem amargar-lhe a paz doméstica;
a moça falava o menos que podia e
mantinha-se no silêncio habitual.
À
despedida de Daniel, que foi dali a uns vinte minutos, César instou com ele para
que voltasse amiudamente. Daniel não podia senão prometer: prometeu.
E saiu.
O caminho
para o hotel em que morava foi para Daniel uma via dolorosa. Já livre das
conveniências que o obrigavam a disfarçar, podia agora dar largas ao pensamento e revolver na memória o amor, as
esperanças, os trabalhos e o triste resultado de seus esforços malfadados.
Caminhava
sem saber como; ia ao sabor do acaso, inteiramente ermo no meio da multidão; a
outra de Xavier de Maistre era a única parte de Daniel que vivia e funcionava;
o resto seguia em passo automático, distraído e incerto.
Não
pretendo descrever a extensão e o efeito das dores morais que dentro de pouco
tempo acabrunharam Daniel. Concebe-se que a situação do rapaz era angustiosa e
aflitiva. Assim como era apto para as grandes paixões era apto para as grandes
dores; e às que sofreu com os últimos desenganos não resistiu; adoeceu gravemente.
Quinze
dias esteve entre a vida e a morte, com desespero dos médicos, que aplicaram
tudo o que a ciência podia oferecer para salvar o enfermo. Desses quinze dias,
dez foram de completo delírio.
Entre os
poucos amigos que ainda viera encontrar, e que o visitavam a miúdo no leito da dor, César era um dos mais assíduos e
zelosos.
Mais de
uma noite César deixou-se ficar velando junto ao leito do amigo; e quando
voltava à casa para descansar, e Francisca, com um interesse a que podia dar
uma explicação verossímil, indagava do estado de Daniel, César respondia em voz
dolorida:
— O rapaz
está cada vez pior. Creio que se vai!...
Francisca
ouvia estas palavras, achava pretexto para retirar-se e ia derramar algumas
lágrimas furtivas.
Em uma das
noites que César escolheu para velar junto a Daniel, este, que dormia a
espaços, e que nas horas de vigília falava sempre em delírio, pronunciou o nome
de Francisca.
César
estava na outra extremidade do quarto lendo para matar o tempo. Ouviu o nome de
Francisca. Voltou-se para o leito. Daniel continuou a pronunciar o mesmo nome
com voz lamentosa. Que tinha aquele nome? Mas o espírito de César uma vez
despertado não se deteve. Lembrou-lhe a cena do encontro em casa com Daniel; o enleio de ambos em sua
presença. Tudo isso inspirou-lhe uma suspeita. Largou o livro e aproximou-se da
cama.
Daniel
continuava a falar, mas então acrescentou algumas frases, alguns pormenores que
deixaram no espírito de César, não dúvida, mas certeza de que algum laço
anterior prendia Francisca a Daniel.
Esta noite
foi a última noite de delírio de Daniel.
Na manhã
seguinte, ainda o doente dormia, quando César se retirou para casa.
Francisca
não dormira igualmente a noite inteira. Velara junto de um crucifixo a orar
pela salvação de Daniel.
César
entrou sombrio e angustiado. Francisca fez-lhe a pergunta do costume sobre o
estado do rapaz; César disse-lhe que estava melhor, mas com tal sequidão que fez estremecer a moça.
Depois do
que recolheu-se ao quarto.
Entretanto,
Daniel restabeleceu-se completamente, e, depois da convalescença, a primeira
visita que fez foi a César, de cujos cuidados e privações teve exata notícia.
Do último
dia do delírio até o dia em que saiu, César apenas foi lá duas vezes. Daniel dirigiu-lhe palavras de sincero
reconhecimento.
César
aceitou-as com sentimento de verdadeira amizade. Teriam as suas suspeitas desaparecido? Não;
aumentavam-se pelo contrário. Suspeitas
dolorosas, visto como o estado de Francisca era cada vez mais próprio a fazer crer
que, se amor houvera entre ela e Daniel, esse amor não havia desaparecido, antes
existia na mesma proporção.
É fácil de
compreender uma situação como esta; receber, em troca do seu amor de marido,
uma afeição de esmola, possuir o vaso sem possuir o perfume, esta situação,
todos compreendem, era dolorosa para César.
César via
bem que o amor de Francisca e Daniel devia ter sido anterior ao casamento da
primeira; mas esse amor unia Francisca e Daniel, a mulher e o amigo, duas partes de si, a quem ele voltava,
na medida própria, os afetos do seu coração.
César
desejava que fosse outro o rival. Teria a satisfação de ir direito a ele e exigir-lhe
a posse inteira de um coração que ambicionava e que por honra sua devia possuir
todo. Mas Daniel, mas o amigo, mas o homem honrado, com que palavras, com que
gestos, reclamaria o marido despojado a posse do coração da moça?

E bastaria
reclamar? Oprimir não seria atear? A distância mataria aquele amor que
resistira à distância? O tempo mataria aquele amor que resistira ao tempo? O espírito de César oscilava entre as duas
correntes de idéias e de sentimentos; queria e não podia, podia e não queria; a
honra, o amor, a amizade, o orgulho, tudo lutava naquele coração, sem que o
infeliz esposo enxergasse ao longe um meio de tudo conciliar.
Daniel não
suspeitava o que ia no espírito do amigo. Fora-lhe mesmo difícil, à vista da
alegria que este manifestava mal se encontravam, alegria igual à do passado e que mostrava a medida em que César
possuía a triste hipocrisia da dor e do infortúnio.
Daniel
resolveu ir visitar César em casa. Era talvez a última ou penúltima visita. Desenganado
da sorte não lhe restava mais do que ativar o espírito a fim de esquecer o
coração. O meio era partir logo para Minas, onde a aplicação dos seus cuidados ao
gênero de vida que abraçara por seis anos podia produzir nele algum resultado
benéfico.
Preparou-se
e saiu em direção da casa de César. Daniel escolheu de propósito a hora em que era certo encontrá-lo.
Quis o
destino que exatamente a essa hora César estivesse fora de casa.
Quem lhe
deu esta notícia foi Francisca, que, pela primeira vez depois da moléstia, via
Daniel.
Francisca
não pôde conter uma pequena exclamação vendo as feições mudadas, a magreza e a
palidez do moço.
Daniel,
quando soube que César estava fora, ficou inteiramente contrariado. Não desejava
encontrar-se a sós com a mulher que fora causa involuntária dos seus males.
Tinha medo do próprio coração, onde o culto do amor antigo era ainda um princípio
de vida e uma esperança de conforto.
Francisca,
que durante os longos dias da moléstia de Daniel padecera de uma longa febre
moral, não pôde dissimular a satisfação que lhe causava a presença do
convalescente.
Todavia,
por mais vivos que fossem os sentimentos que os ligavam, as duas criaturas
davam o exemplo daquela verdade tão ludibriada em certas páginas — de que as
paixões não são onipotentes, mas que só tiram força das fraquezas do coração!
Ora, no
coração de ambos havia o sentimento do dever, e ambos coraram do enleio em que
ficaram em face do outro.
Ambos
compreendiam que, por mais dolorosa que lhes parecesse a situação em que os
colocara o cálculo e o erro, era-lhes dever de honra curvar a cabeça e procurar
na resignação passiva a consolação da mágoa e do martírio.
E nem era
só isto; para Francisca, ao menos. Não devia só respeitar seu marido, devia amá-lo, amá-lo por eqüidade e por dever.
Ao passo que lhe pagava o profundo afeto que ele lhe tinha, consagrava ao chefe
da família aquele respeitoso afeto a que ele tinha direito.
Era isto o
que ambos compreendiam, Daniel com mais convicção ainda, o que era natural
sentimento em uma alma generosa como a sua. Isto é que ele julgava dizer à sua
amada, antes de separar-se dela para sempre.
Nesta
situação de ânimos encontraram-se os dois. Depois das primeiras
interrogações próprias da ocasião e que ambos
procuraram tornar o mais indiferentes
que podiam, Daniel declarou a Francisca que voltava para Minas.
interrogações próprias da ocasião e que ambos
procuraram tornar o mais indiferentes
que podiam, Daniel declarou a Francisca que voltava para Minas.
— É
preciso, acrescentou ele, somos estranhos um para o outro: não devo vê-la, não
deve ver-me.
— É
verdade, murmurou a moça.
— Peço que
se compenetre bem da posição que assumiu perante a sociedade. É esposa, amanhã
será mãe de família; nem uma nem outra tem que ver com as fantasias do tempo de donzela, por mais
legítimas e poderosas que elas sejam. Ame seu marido...
Francisca
suspirou.
— Ame-o,
continuou Daniel; é dever seu e há de vir a ser mais tarde um ato espontâneo. A
dedicação, o amor, o respeito com que procura conquistar o coração de sua
esposa devem merecer-lhe da sua parte, não a indiferença, mas uma justa
retribuição...
— Bem sei,
dizia Francisca. E cuida que não procuro fazê-lo? Ele é tão bom! procura tanto
fazer-me feliz...
— Quanto a
mim, disse Daniel, vou-me, adeus.
E
levantou-se.
— Já?
perguntou Francisca.
— É a
última vez que nos falamos.
— Adeus!
— Adeus!
Este adeus
foi dito com uma ternura criminosa, mas era o último, e aquelas duas criaturas, cujo consórcio moral estava roto,
sentiam bem que se podiam elevar e consolar pelo respeito recíproco e pelo afeto
ao esposo e ao amigo cuja honra cada qual tomava por preceito respeitar.
O que é
certo é que daí a dois dias Daniel partia para Minas para nunca mais voltar.
César foi
acompanhá-lo até certa distância. O ato do amigo dissipara-lhe os últimos ressentimentos. Fosse o que fosse,
Daniel era um homem que sabia cumprir o seu dever.
Mas qual
era a situação do casal? César pensou nisto e achou-se fraco para afrontar as
dores e os dissabores que lhe traria esta situação.
Os
primeiros dias passaram-se sem notável incidente. César mais enleado, Francisca mais melancólica, viviam os dois em
tal estranheza que faria desesperar finalmente a César, se lhe não ocorresse
uma idéia.
César
entendeu que a sua frieza calculada não seria um meio de conciliação. Um dia resolveu
depor a máscara e mostrar-se o que era, marido dedicado, amante extremoso, isto
é, o que era no fundo, quando o coração de Francisca, enganado por algumas
ilusões luminosas, cuidava ainda em pôr na volta do antigo amor uma esperança
indiscreta e mal fundada.

Francisca,
ao princípio, recebeu com a habitual indiferença as demonstrações de afeto de
seu marido; mais tarde, ao passo que o desengano lhe cicatrizava a ferida do
coração, o sorriso aparecia-lhe nos lábios, ainda como uma réstia de sol em céu
de inverno, mas já núncio de melhores dias.
César não
descansava; buscava no amor o segredo de todos quantos carinhos podia empregar sem quebra da dignidade
conjugal. Fugiu a todas as distrações e consagrou-se inteiro ao serviço da
conversão daquela alma. Ela era boa, terna, sincera, capaz de amar e de o fazer
feliz. A nuvem negra que ensombrara o céu conjugal desaparecera, mal restavam
uns restos que o vento da prosperidade atiraria para longe... Tais eram as
reflexões de César, e ele concluía que, em vez de ameaçar e pungir, o melhor
era dissipar e persuadir.
Dia a dia
a lembrança do amor de Daniel apagava-se no espírito de Francisca. Com a paz
interna renasciam as graças exteriores. Francisca tornava-se outra, e neste
trabalho lento de transformação, à proporção que a última ilusão indiscreta do
amor antigo deixava o coração da moça, entrava ali a primeira ilusão santa e legítima
do amor conjugal.
Um dia,
sem se aperceberem, César e Francisca amavam-se como dois namorados que amam
pela primeira vez. César tinha vencido. O nome de Daniel foi pronunciado entre
ambos, sem saudades por Francisca, sem ressentimento por César.
Mas que
vitória foi esta? Quantas vezes César não se envergonhou do trabalho da conversão a que se aplicava todo! Parecia-lhe
que se aviltava, conquistando palmo a palmo um coração que cuidara receber
virgem das mãos do velho pai de Francisca, e entrando nossa luta em pé de
igualdade com o amor de um estranho.
Desta
situação delicada acusava ele principalmente o pai de sua esposa, a quem não
faltou meio de tornar duas pessoas felizes, sem tornar um terceiro desgraçado.
É certo
que, quando César viu-se amado por Francisca, a situação pareceu-lhe outra e
ele agradeceu inteiramente o erro que antes acusava. Então possuía a ternura, o
carinho, a dedicação, a afeição sincera e decidida da moça. A alma de Francisca,
sequiosa de amor, encontrou por fim, no lar doméstico, o que tantas lágrimas
não tinham podido obter.
Dizer que
este casal viveu feliz durante o resto de sua vida, é repetir um chavão de
todas as novelas, mas enfim, é dizer a verdade.
E eu
acrescentarei uma prova, pela qual se verá também uma coisa difícil de acreditar.
Anos
depois das ligeiras cenas que narrei, Daniel voltou ao Rio e encontrou-se de novo
com César e Francisca.
Sinto não
poder conservar ao jovem poeta o caráter elevado e político; mas não me posso
furtar a dizer que Daniel sofrera a ação do tempo e do contato dos homens. O
tempo fê-lo sair daquela esfera ideal em que o colocara o gênio da mocidade e o
amor de Francisca; o contato dos homens completou a transformação; Daniel, sob
a influência de outros tempos, outras circunstâncias, e outras relações, mudou
de feição moral. Voltando ao lugar do idílio e da catástrofe do seu coração,
trouxe dentro de si novos sentimentos. Certa vaidade, certa altivez davam-lhe
outro ar, outras maneiras, outro modo de ver as coisas e tratar os homens.
Bem sei
que seria melhor para o leitor que aprecia as ilusões do romance, fazer
acabar o meu herói no meio de uma tempestade,
lançando ao mundo a última imprecação e
ao céu o último suspiro do seu gênio.
acabar o meu herói no meio de uma tempestade,
lançando ao mundo a última imprecação e
ao céu o último suspiro do seu gênio.
Isto seria
mais bonito e seria menos verdadeiro.
Mas o que
se dá com o nosso Daniel é coisa inteiramente oposta, e eu prefiro contar a
verdade a lisonjear o gosto poético dos leitores.
No tempo
em que Daniel voltou ao Rio, Francisca estava então no esplendor da beleza:
perdera o aspecto virginal dos primeiros tempos; era agora a mulher completa,
sedutora, embriagadora.
Daniel
sentiu renascer-lhe o amor de outro tempo, ou antes sentiu nascer-lhe um novo
amor, diverso do antigo, e não atendeu às dúvidas que um dedo de razão lhe
sugeria.
A vaidade
e os sentidos o perderam.
De volta
de um baile, em que Daniel estivera, disse Francisca a César: — Sabes que tenho
um namorado?
— Quem é?
— Daniel.
— Ah!
— Lê este
bilhete.
Francisca
deu a César um bilhete. César leu-o para si. Daniel até perdera a qualidade de
poeta; o estilo ressentia-se das transformações morais.
— Está
engraçado, disse César. Que dizes a isto?
— Digo que
é um tolo.
— Quem?
— Ele.
Olha, creio que o melhor destino que podemos dar a este bilhete é reduzi- lo a
pó. Não estão reduzidas a isto as minhas fantasias de donzela e os seus ressentimentos
de marido?
Francisca,
dizendo estas palavras, tomou o bilhete da mão de César, e aproximou-o da vela.
— Espera,
disse César segurando-lhe no braço.
— O que é?
O olhar de
Francisca era tão seguro, tão sincero e também tão cheio de exprobração, que
César curvou a cabeça, largou o braço, sorriu e disse:
— Queima.
Francisca
aproximou o bilhete da luz e só atirou-o ao chão quando a chama aproximava-se
dos dedos.
Depois
dirigindo-se a César, tomou-lhe as mãos e disse-lhe:
—
Acreditaste acaso que não seja imenso o meu desprezo por aquele homem? Amei-o
em solteira; era um poeta; agora desprezo-o, é um homem vulgar. Mas nem é já a sua vulgaridade que me dá esse
desprezo: é porque te amo. Era de amor que eu precisava, puro, sincero,
dedicado, completo. Que outro melhor ideal?
A resposta
de César foi um beijo.
No dia
seguinte, às dez horas da manhã, anunciou-se a chegada de Daniel.
César ia
mandá-lo entrar; Francisca interrompeu seu marido e disse ao escravo que
dissesse estar a casa vazia.
— Que
fazes? disse César.
— Amo-te,
respondeu Francisca.
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Nota:
Texto-fonte:
Publicado originalmente em Jornal
das Famílias, 1867. Disponível
digitalmente no site: Domínio Público
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