SERMÃO DA PRIMEIRA OITAVA DE
PÁSCOA
Na Matriz da Cidade de Belém, no
Grão-Pará: Ano de 1656.
Na ocasião em que chegou a nova
de se ter desvanecido a esperança das minas, que com grandes empenhos se tinham ido descobrir.
Qui sunt hi sermones, quos confertis ad invicem ambulantes, et estis
tristes? Nos autem sperabamus quia ipse
esset redempturus Israel.
CAPÍTULO I
A tragédia dos dois primeiros
atos da famosa comédia de Páscoa. As lágrimas da Madalena, a tristeza dos discípulos de Emaús e o malogro da
expedição em busca das minas. Assuntos do sermão: Muito melhor foi não se descobrirem as minas
esperadas, que descobrirem-se; em lugar das minas incertas, que se não descobriram, descobrirá Deus outras
certas, e muito mais ricas. Em um dia tão alegre como o de Páscoa, em que, pela gloriosa
Ressurreição de Cristo, Redentor nosso, se revogou com a mesma glória a antiga sentença de morte
fulminada contra Adão e Eva, digna coisa de admirar é que nem nas filhas de Eva, nem nos filhos de Adão,
se achem efeitos de alegria. Amanheceu o sol neste formoso dia mais arraiado que nunca,
acrescentando tantos raios a seus naturais resplendores, quantos tinha eclipsado e escondido no dia da Paixão:
e que é o que achou no mundo o mesmo sol, ou quando nasceu no Oriente, ou quando se foi pôr no
Ocaso? Quando nasceu achou a terra orvalhada das lágrimas da Madalena, como se ela fora a
aurora daquele dia: Mulier, quid ploras?
E quando se ia pôr, achou a
tristeza dos dois discípulos de Emaús: Et
estis tristes – como se neles se
multiplicara, coberta de sombras, a estrela da tarde, ou Vésper: Quoniam advesperascit. Tão trágicos como isto foram os dois primeiros
atos ou aparências desta famosa comédia!
Para eu vos declarar quão
naturais fossem as causas de um e outro sentimento, não me é necessário ir buscar o exemplo mais longe, pois a fortuna
nestes mesmos dias vo-lo trouxe a casa. Não é grande desconsolação buscar, e não achar? Pois essa
era a desconsolação da Madalena e das outras Marias: Non
invento corpore ejus. Não é bastante motivo de tristeza esperar, e não
suceder o que se esperava? Pois essa era
a causa por que os dois discípulos iam tristes: Non autem sperabamus. Enquanto
os cuidados e esperanças se põem na terra, não podem faltar desconsolações e
tristezas à terra. As Marias
desconsoladas, porque não acharam o que buscavam debaixo da terra: Veniunt ad monumentum – e os discípulos tristes,
porque lhes não sucedeu o que esperavam para remédio da sua terra: Quia
ipse esset redempturus Israel.
Tais considero, senhores, nesta
ocasião, ou tais são, ainda que se não considerem, as causas que parece nos fizeram menos alegres estas
páscoas, as quais eu desejo a todos, e para todos peço a Deus tão liberais dos bens do céu, e também dos que
não são do céu, quando o mesmo Senhor sabe que nos convém. Foram-se buscar debaixo da terra as
minas de ouro ou prata, e, não se tendo achado depois de tanto trabalho, assim como as Marias se
desconsolaram de verem malogradas as suas diligências, as suas prevenções, e ainda as suas despesas: Emerunt aromata – assim confesso vos pode desconsolar o muito que nesta infeliz jornada
se tem gasto de tempo, de cuidado e de fazenda. E assim como os discípulos iam tristes por ver
baldadas e perdidas as esperanças, com que desejavam ver melhorada a sua pátria e restaurado o seu
reino: Quia ipse esset redempturus – Israel, assim vos concedo que é para entristecer e sentir não se
ter conseguido a opulência própria, e da monarquia, quedas mesmas minas
desvanecidas, com tanto boato se esperavam. É, contudo, tão bom consolador Cristo, e tão apressado, que na mesma manhã
enxugou as lágrimas das Marias, e na mesma tarde serenou a tristeza dos discípulos, como eu
também determino aliviar a vossa hoje.
Resumindo-se, pois, à história do
Evangelho, que, sendo sucedida ontem, reservou a Igreja para este segundo dia, dois afetos ou duas paixões
naturais do ânimo consolou ou curou Cristo, Senhor nosso, nos dois discípulos de Emaús: a tristeza
declarada e a esperança perdida: a tristeza declarada: Et estis tristes; a
esperança perdida: Nos autem sperabamus.
E sendo estes os mesmos dois afetos com que os corações da nossa cidade se acham menos
quietos e satisfeitos, assim como o Senhor, mostrando-se vivo aos discípulos, sepultou a sua tristeza e
ressuscitou a sua esperança, assim eu, para consolar uma e alentar outra, vos mostrarei vivamente duas
verdades. A primeira, que muito melhor vos esteve não se descobrirem as minas esperadas que
descobrirem-se. A segunda que, em lugar das minas incertas, que se não descobriram, vos descobrirá Deus
outras certas, e muito mais ricas. Ambos estes assuntos parecem temporais, como também eram por causas
temporais a tristeza e desesperação dos dois discípulos à ida; mas nem por serem temporais
deixou de as consolar o divino Mestre, para as converter a elas e a eles em espirituais, como
tornaram à volta. O mesmo pretendo eu com a graça do céu, que me ajudareis a alcançar: Ave Maria.
CAPÍTULO II
Nos autem sperabamus: Esperávamos de ter minas, e estamos
desenganados de que as não há. Muitas vezes
está a nossa perdição em sucederem as coisas como esperamos. Maldição de Jó à
noite. O ouro e a prata as mais das
vezes são como os dois cabritinhos de Jacó, com que enganou ao pai cego para levar a benção de Esaú.
Qui sunt hi sermones, quos confertis ad invicem ambalantes, et estis
tristes?
Que práticas são estas que ides
conferindo entre vós, e de que estais tristes? Esta foi a pergunta que fez
Cristo, Redentor nosso, aos dois discípulos que iam de Jerusalém para Emaús. E
se eu fizesse a mesma no nosso Belém, e
perguntasse às vossas conversações por que estais tristes, é certo que me havíeis de responder como eles responderam: Nos autem sperabamus: Esperávamos de ter
minas, e estamos desenganados de que as
não há, ou esperávamos que se descobrissem, e não se descobriram. E se eu instasse mais em querer saber o
discurso ou conseqüência com que sobre este desengano fundais a vossa tristeza, também é certo
havíeis de dizer, como eles disseram, que no sucesso que se desejava e supunha, estavam livradas as
esperanças da redenção, não só desta vossa cidade, e de todo o Estado, senão também do mesmo Reino: Nos autem sperabamus quia ipse esset
redempturus Israel. Ora, ouvi-me
atentamente, e contra o que imagináveis, e porventura ainda imaginais – vereis como nesta, que vós tendes por desgraça, consistiu
a vossa redenção, e de quantos trabalhos, infortúnios e cativeiros vos reuniu e vos livrou Deus em não
suceder o que esperáveis.
Primeiramente, havemos de supor
que muitas vezes está a nossa perdição em sucederem as coisas como esperamos, e, pelo contrário, está o
nosso remédio e a nossa conservação em não terem o sucesso que se pretendia. Em uma maldição
muito encarecida de Jó, temos o mais claro e mais notável espelho que se pode imaginar desta
verdade: Pereat nox, in qua dictum est:
Conceptus est homo! Expectet lucem, et
non videat, nec ortum surgentis aurorae (Jó 3, 3. 9): Maldita seja a noite
em que fui concebido – diz Jó; espere
pela luz, e nunca amanheça; espere pela aurora, e nunca venha. Parecer-vos-á – como pareceu a quem o disse que esta era a
maior desgraça que podia suceder à noite,
e a maior praga que se lhe podia rogar, mas, bem considerando o caso, não era
senão a maior dita e a maior ventura. O
maior inimigo que tem a noite é a aurora: enquanto não amanhece, conserva-se e persevera a noite; tanto que
amanheceu, ficou acabada e perdida. Logo, aquela que parecia maldição não era maldição, antes era o
maior bem, a maior felicidade que se podia desejar e imprecar à noite, porque, se a noite esperasse
pela manhã, em lhe suceder, como esperava, estava a sua perdição e o seu fim, e
em lhe não suceder, como esperava, estava a sua conservação, o seu aumento e o seu ser.
O mesmo digo, senhores, da
esperança das vossas minas, a qual eu nunca tive por bem fundada, e, perguntado, assim o disse. Lá se mostrou ouro
e prata, mas estes dois metais as mais das vezes são como os dois cabritinhos de Jacó, com que
enganou ao pai cego para levar a bênção de Esaú. Disse Jacó que o guisado que presentava ao pai
era da caça, e ele não era do mato, senão do rebanho. Assim é o ouro e prata que lá levam: dizem que
foi cavado da beta, e ele é fundido da bolsa. Por isso as minas não são minas para quem faz as
despesas, e só são minas, como a bênção de Jacó, para os mesmos que as fingiram, e vêm ricos de mercês
e salários, e cheios de jurisdições e onipotência, com que se fazem mais ricos. Mas, ou se não
descobrissem as minas, porque as não há, ou porque, havendo-as, não quis Deus que se descobrissem,
vede de quantos perigos e trabalhos vos remiu e livrou a misericórdia e providência divina em
não suceder este descobrimento como esperáveis!
CAPÍTULO III
O que sucede ao campo que esconde
tesouros. Em que param as amizades, as pazes e as confederações em havendo descobrimento de
tesouros. Conselho das nações de Gog e Magog contra os hebreus. Advertência de
Jeremias. Os tesouros de Ezequias e a cobiça dos babilônios. As minas de ouro e prata de Espanha e a conquista romana.
E para que comecemos pelos
perigos que podem vir de fora e de mais longe, se este Estado, sem ter minas, foi já tão requestado e perseguido de
armas e invasões estrangeiras, que seria se tivesse esses tesouros? Lá traz Cristo, Senhor nosso, a
comparação de um campo, que era cultivado somente na superfície da terra, fértil de flores e
frutos, porém, sabendo um homem, acaso, que no mesmo campo estava enterrado e escondido um tesouro: Thesauro abscondito in apro (Mt 13, 44) –
o que fez com todo o segredo e
diligência foi ir logo comprar o campo a todo custo, e deste modo ficou senhor,
não do campo por amor do campo, senão do
campo por amor do tesouro. De sorte que toda a desgraça do campo em mudar de senhorio, e passar de um
dono a outro dono, esteve em ter tesouro dentro em si, e saber-se que o tinha. Contentemo-nos de que
nos dêem os nossos campos pacificamente o que a agricultura colhe da superfície da terra, e
não lhes desejemos tesouros escondidos nas entranhas, que espertem a cobiça alheia, principalmente
quando os mesmos campos não estão cercados de tão fortes muros que lhe possam facilmente defender
entrada.
Conta a Sagrada Escritura, no
capítulo trinta e oito de Ezequiel – ou seja história do passado, ou profecia do futuro que, sabendo as nações de
Gog e Magog que os hebreus viviam ricos e descansados nas suas terras, fizeram conselho
entre si de os irem conquistar, fundando esta deliberação em dois motivos: o primeiro, que
tinham ouro e prata; o segundo, que não tinham muros. Um motivo os excitou à conquista, e outro lha
facilitou. O que os excitou foi o ouro e a prata: Ecce ad diripiendam praedam
congregasti multitudinem tuam, ut tollas argentum et aurum – e o que os facilitou foi serem terras habitadas, sem
muros nem fortificações: Ascendam ad
terram absque muro; vectes, et portae
non sunt eis. E terras que têm ouro e prata, e não têm muros fortes que as defendam, naturalmente estão expostas à cobiça
e invasão dos inimigos, porque o ouro e a prata que têm, excita a cobiça, e os muros e
fortificações que não têm, facilitam a invasão.
É verdade que os hebreus naquele
tempo estavam muito seguros com a paz das outras nações, e já livres de suas armas: Ad terram, quae reversa est a gladio ad quiescentes, habitantesque
secure. Mas esta segurança é muito
enganosa. Onde há nova ocasião de interesse, não há confederação que dure. Ouvi um dito notável de Jeremias: Nunquid foederabitur ferram ferro ab
aquilone, et aes (Jer 15, 12)?
Cuidais que o ferro do norte – do norte diz nomeadamente: ab aquilone – cuidais que o
ferro do norte se pode confederar com
outro ferro, e o seu bronze com outro bronze? Enganais-vos – diz o profeta àqueles com quem falava – e o mesmo vos certifico eu, sem ser profeta.
Livrou-vos Deus da prata, porque vos
quis livrar do ferro. A arte, com a prata, liga os outros metais; e a cobiça,
com a prata, desfaz e rompe todas as
ligas.
Confederados estavam os israelitas
com os babilônios, e era tanta a amizade e boa correspondência entre um e outro rei, que Baradac, rei de
Babilônia, soberbíssimo e potentíssimo, sabendo que Ezequias, rei de Israel, tinha convalescido
daquela grave enfermidade em que esteve à morte, lhe mandou embaixadores com grandes presentes a
lhe dar o parabém da saúde. Quis-se mostrar agradecido Ezequias, e, em sinal de
benevolência e confiança, levou os mesmos embaixadores ao mais secreto do seu palácio, e ali lhes
descobriu e manifestou todos os seus tesouros. Ele e eles ficaram mui satisfeitos; mas não eram passadas
vinte e quatro horas, quando Deus mandou anunciar a Ezequias as perigosas e tristes conseqüências
daquele descobrimento: Ecce dies venient,
et auferentur omnia, quae in domo tua
sunt, et quae thesaurizaverunt patres tui usque ad diem hanc, in
Babylonem; non relinquetur quidquam,
dicit Dominus. Et de filiis qui exibunt de te, quos genueris, tollent, et erunt
eunuchi in palatio regis Babylonis
(Is 39, s): E vós, Ezequias, fostes tão inconsiderado, que manifestastes os vossos tesouros aos
embaixadores de Babilônia? Pois sabei, diz Deus, que os babilônios os virão buscar, e não só se farão
senhores dos mesmos tesouros, sem deles deixar coisa alguma, senão que até a vossos próprios filhos
cativarão e levarão presos a Babilônia, para lá se servirem deles.-Eis aqui em que param as
amizades, as pazes e as confederações, em havendo descobrimento de tesouros. Dai graças a Deus
de se frustrarem as vossas esperanças, e não lhe sejais ingratos com vos entristecer, pois assim vos
quis livrar de tamanhos perigos.
Se em Espanha não houvera minas
de ouro e prata das quais, diz Estrabo, que eram as mais ricas do mundo – nunca os romanos iriam a lhe fazer
guerra de tão longe, nem com tanto empenho e pertinácia. Assim o dá a entender a mesma
Escritura Sagrada no primeiro livro dos Macabeus, referindo as conquistas dos romanos e a fama
das suas vitórias: Et quanta fecerunt in
regione Hispaniae, et quod in potestatem
redegerunt metalla argenti et auri, quae illic sunt. Não diz que conquistaram os homens, senão as minas, porque
as minas foram o motivo da guerra e da conquista. Como a gente de Espanha era tanta, tão remota
e tão forte, gastou a potência romana na pertinência desta conquista duzentos e trinta e cinco anos
– vede se serão cá necessários tantos! – até que finalmente a terra, as minas e os moradores,
ficaram todos sujeitos ao jugo e domínio estranho, presidiados de suas legiões, tributários à sua
cobiça, governados e oprimidos da sua tirania, e o mesmo ouro e prata – que, como diz o Espírito
Santo, muitas vezes é redenção do homem – para eles foi a causa da servidão, e o reclamo que
chamou de tão longe e lhes meteu em casa o cativeiro.
CAPÍTULO IV
Um dos maiores castigos que Deus
podia dar ao Maranhão era descobrirem-se nele minas. Quais são os escondidos de Deus, de que fala Davi? As
minas e seus descobrimentos são castigos escondidos debaixo de aparências contrárias. As minas do
Cabo de S. Vicente, o promontório sagrado, sepulcro de Tubal e de Hércules.
Mas, dado que as minas tão
esperadas e apetecidas não tivessem, por conseqüência de sua fama, estes perigos de fora, bastava a consideração dos
trabalhos e misérias domésticas, que com elas se vos haviam de levantar de debaixo dos pés, para
que o vosso juízo, se o tivésseis, tratasse antes de sepultar as mesmas minas depois de achadas,
que procurar de as desenterrar e descobrir, ainda que foram muito certas. Um dos maiores castigos
que Deus podia dar a esta cidade, e a este Estado, era descobrirem-se nele minas. E não sou eu o que
o digo, senão a prudência e verdade de quem se não podia enganar.
No Salmo dezesseis pede Davi a
Deus lhe faça justiça, e dê a seus inimigos o castigo que merecem, pela desumanidade de feras com que perseguiam
sua inocência. E, depois de dizer que Deus tinha ouvido sua petição, profetiza o castigo que o
justo Juiz havia de dar aos mesmos inimigos; e como se já lhos tivera dado, refere-o assim em poucas
palavras: De absconditis tuis adimpletus
est venter eorum (Sl 16, 14):
Fartastes, Senhor, a sua fome, com os encher dos vossos escondidos. Entram agora os intérpretes a examinar quais são os
escondidos de Deus. E o sentido mais próprio e mais literal, com Símaco e outros, é que os
escondidos de Deus são as minas de ouro e prata. O ouro e a prata tem-nos Deus escondidos lá no profundo
da terra, onde os criou, e quando o mesmo Senhor é servido que se descubram as minas, então
aparecem e se manifestam estes escondidos de Deus: De absconditis tuis. Mas se
Davi tinha pedido a Deus que lhe fizesse justiça, e castigasse a seus inimigos, e o mesmo Deus lhe tinha prometido
de o fazer assim e de os castigar, como diz que lhes há de descobrir o ouro e a prata que tem
escondidos nas minas, e os há de fartar delas: De absconditis tuis adimpletus est venter eorum? Mais apertadamente
ainda. Neste salmo, que todo é profético, assim como na pessoa de Davi é figurado
Cristo, assim nas perseguições de Davi são significadas a crueldade e ingratidão com que Cristo foi
tratado em vida por seus inimigos, e as maldades e pecados com que ainda hoje é desacatado e ofendido.
Pois, em prêmio dessas ofensas, dessas maldades e desses pecados descobre Deus os seus tesouros
que tem escondidos debaixo da terra, e enche e farta de ouro e prata aos que estão famintos de
minas? Sim, porque essas minas que tanto se desejam e estimam, ordinariamente não as descobre, nem
as dá Deus por merecimentos, senão em castigo de grandes pecados. Ouvi o comento de todos os
padres gregos sobre o mesmo texto, divididos em duas opiniões, mas ambas concordes no que tenho
dito: Illud autem de absconditis, alii
quidem intellexerunt de suppliciis, alii
vero de fussilibus metallis: Aqueles que o profeta chama os escondidos de Deus, uns dos santos padres
entenderam que significam castigos, e outros que significam minas – e uns e outros não
discrepam, mas concordam admiravelmente na mesma diferença de um e outro sentido. Por quê?
Porque as minas, quando Deus as descobre, são castigos; e um dos maiores castigos que Deus dá por
pecados é o descobrimento de minas: De
metallis fussilibus, de supliciis.
E notai a misteriosa propriedade
com que este gênero de castigos se chamam também os escondidos de Deus: De
absconditis tuis – porque Deus umas
vezes castiga com castigos manifestos, e outras vezes com castigos escondidos. Os castigos
manifestos são os que todos temem e reconhecem por castigos, como são as fomes, as pestes, as
guerras, e outras calamidades temporais; os castigos escondidos e ocultos são
aqueles que não se reputam nem temem como tais, antes se estimam e desejam como
felicidades e boas fortunas: e deste gênero são as minas e seus descobrimentos.
São castigos escondidos debaixo de
aparências contrárias, porque se apetecem, estimam e festejam enganosa e enganadamente, sendo certo que
debaixo do preço e esplendor do ouro e prata se ocultam e escondem grandes
trabalhos, aflições e misérias, com que a justiça divina, por pecados, quer castigar e açoitar as mesmas terras onde as
veias destes metais se descobrem. Deus tanto pode açoitar com varas de ferro, como com varas de ouro e
de prata; antes estes açoites são muito mais pesados, quanto a prata e ouro pesam mais que o ferro.
Aquela ponta de terra montuosa,
que hoje chamamos Cabo de S. Vicente, antigamente se chamava Promontório Sagrado, por estar ali o sepulcro
de Tubal, primeiro pai da nossa nação, e também o de Hércules, um dos mais famosos e amados reis da
Lusitânia. Havia minas neste promontório, as quais, por causa da mesma veneração, também era
vedado cavarem-se; e dizem as histórias daquele tempo que só em um caso se permitia aos moradores
aproveitarem-se do ouro e da prata das ditas minas. Mas qual era este caso? Coisa verdadeiramente
admirável, e muito digna de se notar. O caso era quando caía do céu algum raio que penetrasse a
terra, e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidos. De sorte que naquela
terra, também nossa, o abrirem-se minas e o caírem raios do céu, tudo vinha junto, como se o céu nos
pregara que o descobrimento de minas na terra não são felicidades e boas fortunas, como se imagina,
senão execuções da ira de Deus, e castigos do céu.
CAPÍTULO V
Os martírios e horrores das minas
de Potosi. Os anacoretas das minas de ouro e prata. Quais haviam de ser enterrados vivos naquelas furnas caso
se descobrissem as minas? A pior de todas as ameaças: os ministros reais e quantos oficiais de
justiça, de fazenda e de guerra que viriam, mandados ao Maranhão, para
extração, segurança e remessa do ouro e da prata.
E para que vos não pareça que são
isto encarecimentos lenitivos, inventados para divertir a tristeza, e ar espécie à consolação, troquemos este ouro
e prata em miúdos, e vejamos os proveitos e interesses que do descobrimento de
minas haviam de resultar à vossa terra, no caso em que se tivessem achado. Eu nunca fui ao Potosi, nem vi minas, porém
nos livros que descrevem o que nelas passa, não só causa espanto, mas horror, ler a fábrica e as
máquinas, os artifícios e a força, o trabalho e os perigos com que as montanhas se cavam, e as betas se
seguem, e, perdidas, se tornam a buscar; os encontros de pedernais impenetráveis, ou de águas
subterrâneas, que rebentam das penhas, as quais ou se hão de esgotar com bombas, ou abrir-lhes novo
caminho, furando por outra parte os mesmos montes; o estrondo dos maços, das cunhas, das alavancas,
e dos outros instrumentos de ferro, alguns dos quais têm cento e cinqüenta libras de peso, com que
se batem, cortam e arrancam as pedras, ou se precipitam com maior perigo do alto: e tudo
isto naquelas profundíssimas concavidades, ou infernos, onde nunca entrou o raio do sol, alumiados
malignamente aqueles infelizes ciclopes só com a luz escassa e contrafeita de alguns fogos
artificiais, cujo hálito, fumo e vapor ardente lhes toma a respiração, e muitas vezes os afoga.
Faz aqui padecer a cobiça muito
mais do que profetiza Isaías que fará em algum tempo a penitência: Introibunt
in speluncas petrarum, et in voragines terrae; projiciet homo idola argenti
sui, et simulacra auri sui, quae fecerat sibi ut adoraret, talpas et
vespertiliones (Is 2, 19 s): Meter-se-ão os homens pelas covas e pelas concavidades mais profundas da
terra, não para buscar ouro ou prata, mas, abominando e lançando de si os ídolos, que do ouro e da
prata tinham feito, toupeiras e morcegos. Vede agora estas mesmas figuras como as ajunta e introduz
toda a cobiça neste escuro e horrendo teatro da paciência sem virtude. Ali os penitentes
arrependidos entram pelas grutas e concavidades da terra; aqui os cobiçosos e enganados também se metem,
não pelas covas que a terra tem aberto, senão pelas que eles cavam e rompem à viva força, muito
mais penetrantes e profundas. Ali desprezam-se os ídolos de ouro e prata, conhecida sua mentira
e vaidade; aqui, estima-se e adora-se tanto a mesma vaidade que, por novos e
ocultos caminhos de tantos estádios, se vai buscar e desenterrar o ouro e prata, para se fundirem e lavrarem ídolos. Ali
as figuras dos ídolos são toupeiras e morcegos: talpas et vespertiliones – e aqui os homens, desfigurados como
toupeiras, vivem debaixo da terra, sem ter olhos para ver a luz, e como morcegos fogem do sol e
do dia, e se vão mais sepultar que viver naquela escura e perpétua noite. Ainda tem outra
propriedade, porque uns, como toupeiras, com os pés e mãos na terra andam cavando, revolvendo e mudando
continuamente, e outros, como morcegos suspensos no ar, estão picando as pedras e sangrando as
suas veias com o corpo e com a vida pendente de uma corda. Houve jamais algum anacoreta, dos que
habitavam as covas, que fizesse tal penitência? Pois ainda não ouvistes o mais temeroso dela.
Solapadas por baixo aquelas
grandes montanhas, todo o peso imenso delas se sustenta sobre pilares da mesma matéria, que vão deixando a espaços, os
quais, se enfraquecem ou quebram, como acontece muitas vezes, qual é o efeito? Toda a
montanha, ou grande parte dela, cai de repente, e a multidão que andava desenterrando a prata, fica sepultada
com ela, em um momento, sem outra notícia de tamanho e tão miserável estrago, que a que deu aos de
muito longe o estrondo da ruína, e o tremor de toda a terra. Isto é o que se escreve, e se escreve
muito menos do que verdadeiramente é. Baste, por prova, que a sevícia e crueldade dos Neros e
Dioclecianos comutavam a morte e os tormentos dos cristãos em os mandar servir e trabalhar nas minas, e a
Igreja, que com tanta dificuldade e consideração examina e avalia os merecimentos dos santos,
canonizava e venerava por mártires aos que nelas acabavam a vida.
Agora vos pergunto eu: e estes
martírios das minas, se as vossas se descobrissem, quem os havia de padecer? Dos degradados não falo, porque os
que hoje se degradam para o Maranhão, então se haviam de degradar todos, e muitos mais para
as minas. Os cavadores não seríeis os mais nobres e ricos da terra, mas quem haviam de ser senão
os seus escravos? Quem havia de induzir todos aqueles instrumentos e máquinas por esses sertões
dentro? Quem havia de contribuir o sustento, e levá-lo aos trabalhadores? Quem havia de cortar e acarretar
àquelas serras estéreis como são todas as lenhas para as fornalhas e fundições? E aqueles lumes
perpétuos e subterrâneos, com que óleos se haviam de sustentar, senão com os dos frutos agrestes
que aqui se estilassem, e não com os dos olivais que de lá viessem? Sobretudo, se tantos milhares de
índios se têm acabado e consumido em tão poucos anos, e com tão leve trabalho, como o das vossas
lavouras, onde se haviam de ir buscar outros, que suprissem e suportassem quanto tenho dito? E quais
haviam de ser os que, vendo-se enterrados vivos naquelas furnas, não fugissem para onde nunca mais
aparecessem, levando o mesmo medo com eles aos demais? Tudo isto não o haviam de fazer nem
padecer os que passeiam em Lisboa, porque também estas minas são como as da pólvora, que sempre
arruínam, derrubam e põem por terra o que lhes fica mais perto. E isto é o que vós desejáveis para
a vossa, e vos entristece, porque não sucedeu como esperáveis?
Ainda falta por dizer o que mais
vos havia de destruir e assolar. Quantos ministros reais, e quantos oficiais de justiça, de fazenda, de guerra,
vos parece que haviam de ser mandados cá, para a extração, segurança e remessa deste ouro ou prata? Se um
só destes poderosos tendes experimentado tantas vezes que bastou para assolar o Estado, que
fariam tantos? Não sabeis o nome do serviço real – contra a tenção dos mesmos reis – quanto se estende
cá ao longe, quão violento é, e insuportável? Quantos administradores, quantos provedores, quantos
tesoureiros, quantos almoxarifes, quantos escrivães, quantos contadores, quantos guardas no mar e
na terra, e quantos outros ofícios de nomes e jurisdições novas se haviam de
criar ou fundir com estas minas, para vos confundir e sepultar nelas? Que tendes, que possuís, que lavrais, que
trabalhais, que não houvesse de ser necessário para serviço de el-rei, ou dos que se fazem mais que reis
com este especioso pretexto? No mesmo dia havíeis de começar a ser feitores, e não senhores de toda
a vossa fazenda. Nem havia de ser vosso o vosso escravo, nem vossa a vossa canoa, nem vosso o
vosso carro e o vosso boi, senão para o manter e servir com ele. A roça haviam-vo-la de
embargar para os mantimentos das minas; a casa haviam-vo-la de tomar de aposentadoria para os oficiais das
minas; o canavial havia de ficar em mato, porque os que o cultivassem haviam de ir para as minas;
e vós mesmo não havíeis de ser vosso, porque vos haviam de apenar para o que tivésseis ou não
tivésseis préstimo, e só os vossos engenhos haviam de ter muito que moer, porque vós e vossos filhos
havíeis de ser os moídos.
CAPÍTULO VI
A proposição de Horácio: o ouro é
melhor não se achar nem se descobrir que achar-se. As coisas naturais, enquanto estão no seu próprio lugar,
em que as situou a natureza, nenhum dano fazem. Enquanto no mundo não houve ouro, então foi a
Idade de Ouro: depois que apareceu o ouro no mundo, então começou a Idade de Ferro. Que
quer dizer o Gênesis quando diz que no princípio do mundo a terra estava vazia e vazia? Se na
doação universal dos bens do Paraíso, Deus entrega como por lista a Adão todas as outras coisas, as
minas de ouro e prata por que deixa de fora? O ouro e a prata, pedra de toque dos homens. Plínio e a felicíssima
idade em que as coisas se contavam umas por outras: Os discípulos de Cristo e o perigo do
dinheiro.
Parece-me que vos vejo dar
assenso a tudo o que digo – que por isso desci a coisas tão particulares e domésticas – e também creio que já vossa esperança terá
mudado de conceito à vista deste descobrimento
de minerais, tão diversos do que ela desejava e supunha, os quais é certo que
haviam de ser maiores e mais duros na
experiência, do que os pode representar o meu discurso. Fique, logo, por conclusão que muito maior mercê vos fez
Deus, e muito mais bem afortunados fostes em não se acharem as minas, que se o ouro e prata, que
se supunha e esperava delas, se descobrisse. Ouvi a sentença de um gentio, fundado só na razão
natural e experiência, sem nenhum princípio de fé, que a nós nos devia levantar mais da terra: Auram irrepertum, et sic melius situm cum
terra celat: O ouro diz Horácio – é
melhor não se achar nem se descobrir, que achar-se: auram irrepertum. E por que? Porque, enquanto a terra o esconde e encobre: cum terra celat – está ele no sítio e lugar que lhe deu a natureza, que é o melhor: et melius situm. Excelente
razão. As coisas naturais, enquanto estão no seu próprio lugar em que as sitiou a natureza,
nenhum dano fazem; tiradas dele, são muito danosas. A água no seu centro não pesa; o fogo na sua
esfera não queima; a terra, se sobe ao ar, faz raios; o ar, se se mete debaixo da terra, faz terremotos,
derruba casas e cidades; assim também o ouro e prata das minas. Enquanto estão escondidos lá no centro
da terra, onde as pôs a natureza, conservam-se inocentes, e não fazem mal a ninguém; mas se
se cavam e se tiram fora, então são muito perniciosas, e fazem grandes estragos. Olhai para o
passado, se vos não quereis enganar com o presente.
Aquela idade dourada, tão célebre
nos primeiros tempos, quem a fez? Parece que a havia de fazer o ouro, e não a fez o ouro que havia, senão o
ouro que não havia, porque ainda se não tinha descoberto. Enquanto no mundo não houve ouro, então foi a
Idade de Ouro: depois que apareceu o ouro no mundo, então começou a Idade de Ferro: Jamque nocens ferrum, ferroque nocentius
aurum prodierat. O que era necessário e útil para a vida e conservação dos
homens, notou Sêneca, Demócrito, e ainda
o mesmo Epicuro, que o pôs a natureza muito perto de nós, e muito descoberto e
patente, como são as plantas, os frutos,
os animais, pelo contrário, o que não só era inútil, mas pernicioso, pô-lo muito longe de nós, oculto e escondido, onde o
não víssemos: e este é o ouro e a prata. Houve-se em tudo a natureza como mãe. A mãe dá a maçã ao
filhinho, e esconde-lhe a faca. Por que? Porque quer que coma, mas não quer que se fira, e se o
menino chora pelo que o há de ferir, não é justo que os homens de razão e de juízo tenham sentimento
de meninos.
Esta mesma doutrina, como tão
necessária – porque não cuideis que é só de filósofos – foi a primeira que nos ensinou a Sagrada Escritura logo no
princípio do mundo: In principio creavit
Deus caelum et terram. Terra autem erat
inanis et vacua (Gên 1, 1 s): No princípio criou Deus o céu e a terra;
porém a terra estava vazia e vazia. – E
que quer dizer que a terra estava vazia e vazia: inanis et vacua? Quer dizer
que estava vazia por dentro e vazia por fora: vazia por dentro: inanis – porque ainda não tinha Deus criado no interior da terra os minerais;
e vazia por fora: et vacua – porque
também não tinha criado na superfície da
mesma terra as plantas, as árvores e os animais. Criou, pois, Deus todas estas coisas naqueles primeiros seis dias, e,
fazendo a Escritura muito particular e miúda relação das plantas, das árvores e dos animais, das minas
e dos metais não faz menção alguma. Pois, se a Escritura tinha dito que a terra, em sua
primeira criação, nascera vazia por dentro e por fora, e relata com tanta distinção e engrandece com tanto
aparato como Deus a encheu e povoou por fora, por que cala totalmente, e não diz como a encheu e
enriqueceu por dentro? Mais. Depois que Deus teve criado todas as coisas, e o homem, que foi a última,
mostrou-lhe as ervas, as plantas, as árvores e seus frutos, e disse-lhe: Eis aqui toda esta variedade, a
qual criei, e vos dou para vosso sustento e regalo. – E fazendo vir diante do mesmo Adão todos os
animais, disse-lhe da mesma maneira: Também de todos estes vos dou o domínio, os quais criei
para que vos ajudem e sirvam. – Agora cuidava eu que havia que acrescentar o Senhor: E não só tenho
provido e aparelhado, para vosso sustento, serviço e conservação, todas estas coisas que vedes na
superfície da terra, mas também lá no centro e entranhas dela, criei muitas minas de metais preciosos,
para maior riqueza, grandeza e utilidade vossa, e de vossos descendentes. Mas nada disso disse
Deus: tudo passou em silêncio, sem fazer das minas a menor insinuação. Pois, se Deus nesta doação
universal entrega, como por lista, a Adão todas as outras coisas que tinha criado para ele, as
minas de ouro e prata, que parecia – como hoje parece – que era a melhor e mais rica partida de todas,
por que as deixa de fora? Porque todas as outras coisas que estão à face da terra, e o domínio e uso
delas, era útil e necessário ao homem para sua conservação e sustento, e ainda para seu
regalo; porém as minas, o ouro e a prata, não só não eram necessários nem úteis, mas supérfluos e
perniciosos, e ocasião que lhe podia e havia de ser de gravíssimos danos. Por isso, assim como as
tinha sepultado e escondido debaixo da terra, assim lhe escondeu e encobriu também a notícia delas,
passando totalmente em silêncio, e não fazendo menção de tal coisa.
Mas vejo que me perguntam os
curiosos, e me argúem os críticos: se as minas eram tão danosas e perniciosas ao homem, e por isso lhas escondeu
e encobriu Deus, por que as criou, ou para que? Para responder a esta pergunta, faço-vos primeiro
outra. E a Arvore da Ciência que foi a ocasião e origem de todos os males do mundo, por que a criou
Deus no paraíso? Ou aquela árvore era boa ou má como argumenta Santo Agostinho. Se era má, para que
a plantou Deus? Se era boa, para que a proibiu?
Ameaça ao homem com a morte se comer daquele fruto, e pinta o mesmo fruto com
tais cores, que levava após si os olhos –
Pulchrum oculis, aspectaque delectabile?
Sim. Porque aquele fruto tão formoso não
foi criado para que Adão comesse ou provasse dele, senão para que Deus tentasse a Adão, e o provasse com ele. E esta
é também a razão por que Deus criou o ouro e a prata, e lhes deu tanta formosura de cores. Quílon, um
dos sete sábios da Grécia, dizia que, assim como a pedra de toque prova o ouro e a prata, assim o
ouro e a prata são a pedra de toque dos homens. Quereis provar quem são os
homens? Tentai-os com ouro e com prata. Do ouro disse o Eclesiástico: Qui post aurum non abiit, probatus est in
illo; e da prata disse Davi: Ut
excludant eos, qui probati sunt argento.
E notai que o que nesta sentença
ficou aprovado foi um só: Qui probatus
est in illo – e os que ficaram
reprovados e excluídos foram muitos: Ut
excludant eos, qui probati sunt argento. Ora já que todos os dias pedimos a
Deus que nos livre das tentações, ou que nos não meta nelas: Ne nos inducas intentationem – demos-lhe
muitas graças, pois nos livrou desta, em que nós nos tínhamos metido.
E porque vos não fique a última
desconsolação de não terdes com que bater moeda na vossa terra, saibam os que
tanto a desejam e procuram que, posto que seja com boa tenção e bom zelo, é
esta a maior traição que podem fazer à sua pátria. É possível que vos dê Deus
uma terra tão abundante e tão fértil, que só com a comutação dos frutos e
drogas dela vos sustentais e conservais há tantos anos, tão abastada e tão
nobremente, sem haver nem correr nela dinheiro, e que desejeis e suspireis por
dinheiro, sem o qual, e por isso mesmo, vos fez a vossa fortuna singulares no
mundo? Plínio, que foi o homem que maior conhecimento teve de todo ele, entre
outras muitas sentenças com que condena o uso do dinheiro, e louva o da
comutação dos frutos naturais, diz estas notáveis palavras: Quam innocens, quam beata, imo vero et
delicata esset vita, si nihil aliud quam supra terras concupisceret? Utinamque
posset e vita totum abdicari aurum, ad perniciem vitae repertum, quantum
feliciore aevo, cum res ipsae permatabuntur, inter se? Quer dizer: que
inocente, que bem-aventurada, e que deliciosa seria a vida dos homens, se eles
se contentaram com o que nasce sobre a terra! Oxalá se pudera desterrar de todo
o mundo o ouro descoberto para destruição da vida, e se trocaram os tempos e
uso presente por aquela idade felicíssima, em que as coisas se comutavam uma
por outras. – Até aqui o parecer daquele grande juízo, que ajuntou em si a
ciência e compreensão de todos os séculos. E que, tendo-vos Deus feito mercê de
que gozeis esta inestimável riqueza e felicidade natural, queirais abrir as
portas a um inimigo tão universal e pernicioso como o dinheiro, que, no dia em
que entrar na terra, vos há de empobrecer a todos de repente? Ouvi um caso
admirável de Cristo, Senhor nosso, com seus discípulos.
Mandou-os o Senhor pregar pelo
mundo, e proibiu-lhes nomeadamente que não tivessem ouro nem prata, nem
levassem bolsa nem dinheiro consigo: Nolite
possidere aurum, neque argentum, neque pecuniam in zonis vestris (Mt 10,
9). Vieram os discípulos da jornada, e fez-lhes o Divino Mestre esta pergunta: Quando misi vos sine sacculo, et pera,
numquid aliquid defuit vobis (Lc 22, 35)? Quando vos mandei sem bolsa nem
alforje, faltou-vos alguma coisa? – Responderam todos que nenhuma coisa lhe
faltara: At illi dixerunt: nihil (Lc
22, 36). – Pois agora vos digo, replicou o Senhor, que quem tiver bolsa e
dinheiro o leve consigo, e se tiver alforje, também: Sed nunc, qui habet sacculum, tollat similiter et peram (Lc 22,
36). – Com razão chamei a este caso admirável. Se Cristo tinha mandado aos
discípulos sem bolsa nem dinheiro, e eles experimentaram e confessaram que
nenhuma coisa lhes faltara, como depois desta experiência e desta confissão,
lhes manda agora o contrário, e que levem dinheiro? Se eles tiveram dito que,
por não levarem dinheiro, lhes tinham faltado muitas coisas necessárias à vida,
então se seguia bem que o Senhor lho concedesse. Mas, tendo-lhes proibido o
dinheiro, quando foram a primeira vez, e não lhes tendo faltado nada, agora
lhes diz que o levem? Responde, depois de grandes admirações, S. João
Crisóstomo. Cristo, Senhor nosso, queria exercitar seus discípulos na
paciência, e que padecessem pobreza e falta do que lhes fosse necessário; e
como quando foram sem dinheiro, nenhuma destas coisas lhes faltou, mandou-lhes
que levassem dinheiro, para que tudo lhes faltasse. Ac si eis dixerit: hactenus cuncta vobis uberrine affluebant, nunc
autem volo vos et inopiam experiri: Como se dissera o Senhor – diz
Crisóstomo: Até agora, sem dinheiro, tudo vos sobeja; pois agora quero que
tenhais dinheiro, para que tudo vos falte, e sejais pobres. – Isto é o que
querem, sem entender o que querem, os que desejam que entre e corra dinheiro
nesta vossa terra. Se sem dinheiro, e só com uma comutação dos frutos naturais
da terra, tendes abundantemente tudo o que é necessário para a vida, e muitos
de vós o supérfluo, para que quereis dinheiro, senão para que tudo custe
dinheiro, e, custando tudo dinheiro, todos sejais pobres? Benzei-vos desta
tentação como da outra: lograi o que Deus vos deu tão abundantemente sobre a
terra, e debaixo dela nem queirais minas, nem o que delas se bate.
CAPÍTULO VII
As minas, causa de opressão e
ruína do Reino. Que utilidades se têm seguido à Espanha do seu famoso Potosi?
Que faziam os rios de ouro do reinado de Salomão, provenientes das minas do Peru
e do Brasil? Os magnetes atraem o ferro e os magnates o ouro.
Mas, antes que acabemos este
ponto – com promessa de que o segundo
será muito breve – não quero que me acuseis de pouco zeloso da opulência do
Reino. E assim como vos tenho mostrado que as minas, no caso em que se
descobrissem, seriam de grande dano, em particular para este Estado, assim
acrescento agora que também para o mesmo Reino em geral antes haviam de ser de
maior opressão e ruína, que de utilidade e aumento. E para que comecemos pelos
exemplos mais vizinhos, que utilidades se têm seguido à Espanha do seu famoso
Potosi, e das outras minas desta mesma América? A mesma Espanha confessa e
chora que lhe não tem servido mais que de a despovoar e empobrecer. Eles cavam
e navegam a prata, e os estrangeiros a logram. Para os outros é a substância
dos preciosos metais, e para eles a escória. Lá disse Isaías, falando do Reino
de Israel: Argentum tuum versum est in
scoriam: e o mesmo se poderá dizer sem metáfora da prata de Espanha. Ainda,
com mais doméstica propriedade, se lhe pode aplicar o dito do seu mesmo patrão,
Santiago: Argentum vestrum aeruginavit
– pois a prata se lhe tem convertido em
cobre, e a fama e opulência de tanto milhão em belhão.
E para que se não engane alguém
com me dizer ou cuidar que a evidência deste mesmo exemplo nos servirá de
doutrina e emenda, passemos a outro reino, ou a outro reinado mais sábio, qual
foi, sem injúria dos presentes nem futuros, o de Salomão. Salomão, com a sua
universal sabedoria, descobriu riquíssimas minas, e não outras, segundo opinião
de graves autores, senão as mesmas deste Novo Mundo. As do Peru, que os
espanhóis descobriram sem as buscar, e as do Brasil, que nós buscamos, e não
descobrimos. Funda-se esta sentença no capítulo terceiro do segundo Livro dos
Paralipômenos, onde, falando do ouro que daquelas partes vinha a Salomão, diz o
texto hebreu: Aurum erat Paruaim. A
qual palavra Paruaim é um nome do plural, cujo singular é Peru, com que vem a
dizer o mesmo texto que aquele ouro se trazia de ambos os Perus, ou de um e
outro Peru. Assim os declara Genebrardo, peritíssimo na língua hebraica: Aurum Paruaim in hebraeo appellatur quasi
allatum ex utroque Peru. E daqui infere, como coisa evidente, que era
tirado das minas deste novo Mundo: Quis
non cernit novum hunc orbem nominari? E para que se veja que um destes
Perus era o que hoje conserva o mesmo nome, e o outro este nosso, que chamamos
Brasil – onde só podiam vir aportar
asfrotas de Salomão – diz o mesmo texto
sagrado que uma das coisas novas, e nunca vistas na Ásia, que levavam as mesmas
frotas, eram certos paus chamados ligna
thyina, os quais, dizem os hebreus, citados por Tirino, que eram lignum Brasilium: pau do Brasil . O Caldeu traslada coralium: coral, donde parece-lhe deram este nome pela semelhança
da cor vermelha. Mas as obras, que o texto aponta se faziam deste pau, não
podiam ser do que vulgarmente se chama Brasil, senão de outra madeira preciosa,
das muitas que nele nascem.
Isto suposto – e não suposto também – ou fossem desta terra as minas de Salomão,
ou de qualquer outra, vamos ao que rendiam, e em que se empregava, que é o que
faz ao meu caso. O que traziam as suas frotas a Salomão, só em ouro, eram
seiscentos e sessenta e seis talentos, que montam oito milhões, menos oito mil
cruzados. Assim o conta pontualmente a Escritura: Pondus auri, quod afferebatur Salomoni per annos singulos, sexcentorum
sexaginta sex talentorum auri. E não só traziam as frotas ouro, senão
também muita prata, cuja quantidade era tão imensa na corte de Jerusalém, que,
afirma a mesma Escritura, igualava às pedras da rua: Fecitque ut tanta esset abundantia argenti in Jerusalém, quanta et lapidum. Esta é a imensidade de
ouro e prata que rendiam aquelas minas. Mas antes que vejamos em que todo este
ouro e toda esta prata se gastava, deixai-me fazer um reparo, digno não só de
admiração, mas de assombro e de pasmo.
Morto Salomão, sucedeu-lhe na
coroa Roboão, seu filho, e a primeira proposta que lhe fizeram os povos juntos
em cortes foi que tivesse piedade deles, e os aliviasse dos tributos com que
estavam oprimidos em tempo de seu pai, porque eram insuportáveis. E chegou esta
instância a termos tão apertados, e do cabo, que, não querendo Roboão
condescender no que tão justamente pediam, das doze Tribos de que constava todo
o reino, as dez lhe negaram a obediência e se rebelaram, e fizeram outro rei e
outro reino, que nunca mais se sujeitou nem restituiu aos herdeiros de Salomão.
Agora entra o meu reparo. Se o peso de ouro e a quantidade da prata que
contribuíam as minas era tão excessiva – além dos direitos ordinários do reino,
de que também faz menção a Escritura – com
toda esta imensidade de tesouros, com todos estes rios de prata e ouro, que
estavam sempre a correr: Per singulos
annos – como não se aliviava a
opressão dos vassalos, como se não levantavam ou diminuíam os tributos dos
povos, antes cresciam e se multiplicavam ao mesmo passo, com tal excesso que os
obrigavam a uma tal desesperação, e reduziram o reino a extrema ruína? Aqui
vereis qual é o fruto das minas, e o que fazem esses rios de ouro e prata,
trazidos de tão longe. Com as suas enchentes inundam a terra, oprimem os povos,
arruínam as casas, destroem os reinos.
As causas naturais destes efeitos
tão lamentáveis não são ordinariamente outras, senão as mesmas que precederam
no reinado de Salomão. E quais foram estas? O luxo, a vaidade, a ostentação, a
delícia, os palácios, as casas de prazer, as fábricas e máquinas esquisitas, e
outras coisas tão notáveis como supérfluas, que chamavam à corte de Jerusalém
os olhos do mundo, e vistas, desmaiavam a admiração, como aconteceu à rainha
Sabá. As baixelas todas eram de ouro – porque
da prata não se fazia caso – as mesas, e todas as outras alfaias, também de
ouro, e, o que se não pudera crer, se o não referira a História Sagrada, até as
lanças e escudos, em grande número, de ouro. Nestes monstros da vaidade – que
sempre é maior que o poder – se
consumiam aqueles imensos tesouros, e onde não chegavam os milhões das frotas,
supriam os tributos dos vassalos. Quando as frotas haviam de partir, uns
concorriam com o préstimo de suas artes para os aprestos, outros com as
contribuições das suas herdades para os bastimentos, outros com o dinheiro
amoedado para os soldos, outros com as próprias pessoas, embarcando-se forçados
a uma tão dilatada, tão nova e tão perigosa navegação. E quando as mesmas
frotas voltavam carregadas de ouro e prata, nada disto era para alívio ou
remédio dos povos, senão para mais se encherem e incharem os que tinham mando
sobre eles, e para se excogitarem novas artes de esperdiçar, e novas invenções
de destruir. E se isto sucedia no reinado e governo de Salomão, vede se se pode
esperar ou temes outro tanto, quando não forem Salomões os que tenham o
governo!
Dos futuros condicionais e
contingentes, ninguém é sabedor, senão Deus e os seus profetas. E assim não
quero que me creiais a mim, senão a Isaías: Repleta
est terra argento et auro, et non est finis thesaurorum ejus (Is 2, 7): Vejo a terra –
diz Isaías – toda cheia de ouro e prata,
e são tantos e tão grandes os seus tesouros que não têm fim. – Oh! ditosa e bem
afortunada terra, em que não haverá já pobreza nem miséria, pois, estando toda
cheia, a todos abrangerá a riqueza, e não haverá quem não tenha com que
remediar a sua necessidade! Assim parece verdadeiramente. Mas vejamos se vê
mais alguma coisa o profeta, e se é isto mesmo que nós inferimos. Vai por
diante Isaías, e às palavras que tinha dito acrescenta as seguintes: Et repleta est terra ejus equis, et
innumerabiles quadrigae ejus, et repleta est terra ejus idolis: opus manuum
suarum adoraverunt (Is 2, 8): Depois de ver a terra cheia de ouro e prata,
o que mais vi – diz o profeta – foi que
a mesma terra estava cheia de cavalos, e que as suas carroças eram inumeráveis,
e que os homens adoravam as obras de suas mãos, e faziam delas ídolos. Eis aqui
os aumentos que havia de ter o reino com os haveres que lhe prometiam as vossas
minas. Encher-se-ia a terra de ouro e prata mas esse ouro e prata, posto que
naturalmente desce para baixo, havia de subir para cima. Não havia de chegar
aos pequenos e pobres, mas todo se havia de abarcar e consumir nas mãos dos
grandes e poderosos, porque, como bem disse o outro, os magnetos atraem o
ferro, e os magnates o ouro; e as obras pias em que esses tesouros se haviam de
despender, eram, mais cavalos, e mais carroças, e mais galas, e mais palácios,
e obras magníficas e ostentosas; e também haviam de ter parte nele os ídolos
batizados, que lá se adoram, e que tantas vidas e fazendas têm destruído. E se
estes eram os proveitos com que se havia de adiantar o reino no descobrimento
das vossas minas , à custa da vossa fazenda, do vosso trabalho, da vossa
opressão e do vosso cativeiro, vede se
foi grande favor e providência do céu, que se não descobrissem, e se, tanto no particular como no geral, ia desencaminhada e
errada a vossa esperança: Nos autem
sperabamus.
CAPÍTULO VIII
Em lugar das minas incertas, que
se não descobriram, descobrirá Deus outras certas e mais ricas. O milagre prometido por Cristo aos escribas e
fariseus. Que foi buscar Cristo ressuscitado nas concavidades escuras e subterrâneas do
interno? O que disseram os autores gentios dos mineiros do ouro e da prata, e o que Cristo fez penetrando
o mais escondido e interior da terra. As almas dos patriarcas, tesouros
inestimáveis que o Redentor do mundo tirou das suas minas. A profecia de Isaías
e o descobrimento das minas secretas e dos tesouros ocultos. O preço por que
foram compradas nossas almas. El-rei D. João, o Segundo, e as minas da Costa de
África.
Desenganado assim e desvanecido o
falso descobrimento das vossas minas, segue-se o verdadeiro das minhas, que vos prometi descobrir. E porque é
certo e infalível, não necessita de tão largo discurso. Prometendo Cristo, Redentor nosso, aos
escribas e fariseus, em lugar de um milagre do céu, que lhe pediam, outro milagre maior na terra, disse
que, assim como Jonas estivera três dias e três noites no ventre da baleia, assim ele havia de estar no
coração da terra outros tantos dias e noites, que foram os que se contaram desde a tarde de sua sagrada
morte, até à manhã da sua gloriosa ressurreição. Alguns dizem que se cumpriu esta promessa e profecia
na sepultura do Senhor. Mas esta interpretação é insuficiente e imprópria, porque, ainda que
Cristo na sepultura esteve debaixo da terra, não esteve no coração da terra: In corde terrae (Mt 12, 40). O coração da terra não é junto à
superfície, onde estava o sepulcro,
senão o meio e centro dela, e o lugar mais interior e inferior, onde o Senhor
desceu e se deteve aqueles três dias, e
isso é o que cremos e significamos, quando dizemos não só que foi sepultado, senão que desceu ao inferno. Mas a
que fim desceu Cristo ao inferno, estando já em estado glorioso, a que naturalmente é devido o céu?
Que foi buscar àquelas concavidades escuras e subterrâneas, onde nunca entrou o sol? Foi
buscar e descobrir umas minas mais ricas que toda a prata e todo o ouro, cujo preço e lugar só ele
conhecia, e nenhum homem, nem anjo, senão ele as podia descobrir.
Quando os autores, ainda gentios,
querem encarecer o extremo da cobiça furiosa e cega, com que os homens não duvidam de se meter e penetrar o
mais profundo da terra, e ter sobre si as montanhas para chegar ao escondido das minas, dizem que até
ao inferno vão buscar e desenterrar o ouro e a prata:
Itum est ad viscera terrae.
Quasque recondiderat, Stygiisque advexerat undis,
Effodiuntur opes irritamenta malorum.
disse com elegantes versos
Ovídio. E não com menos elegante prosa, nem com menor ressentimento e juízo, Plínio: Imus in viscera ejus, et in sede manium opes quaerimus. Illa nos
premunt, illa nos ad inferos agunt, quae occultavit, atque demersit. Isto,
pois, que aqueles homens, que não tiveram conhecimento de Cristo, disseram por
exageração e encarecimento dos mineiros do ouro e prata, isto mesmo, e em
próprios termos, é o que realmente e em pessoa fez Cristo, penetrando o mais
escondido e inferior da terra, e descendo verdadeiramente ao inferno, para
descobrir, romper e abrir as suas minas, não de ouro ou prata, que acrescentam
os males da terra, senão de outros muito mais preciosos metais, com que se
acrescenta, ilustra e enriquece o céu.
A montanha onde começaram a
romper-se estas minas foi o Monte Calvário, os instrumentos a cruz e os cravos; o sítio subterrâneo, onde elas
estavam escondidas, o seio de Abraão; e as riquezas que delas tirou Cristo depois de tantos trabalhos, as
almas. Tirou a alma do mesmo Abraão, que deu nome ao lugar. Tirou a alma de Abel, que foi a
primeira que ali entrou. Tirou as almas de Adão e Eva, que, por um apetite, foram a causa de que eles, e seus
filhos, do paraíso da terra não fossem tresladados ao céu. Tirou as almas dos antigos Patriarcas, Set,
Noé, Isaac, Jacó, José e Moisés, cuja lei, posto que foi disposição, não teve virtude para levar os
homens à glória, privilégio só da lei da graça. Tirou a alma de Jó, que no mesmo tempo se salvou na lei da
natureza, e também – segundo parece – as dos outros amigos que tinham a mesma fé do verdadeiro
Deus. Tirou as almas dos reis que foram justos e santos – muito menos porém em número do que foram as
coroas – a alma de Josias, a alma de Ezequias, a de Josafá, a de Manassés, a de Davi. E se também
não foi com ele a de Salomão, vede que desgraça? Tirou as almas dos profetas Isaías, Jeremias,
Ezequiel, Daniel e os demais, e com cada um deles em triunfo, as almas que com suas pregações
tinham livrado do inferno. E por que não fiquem de fora as mulheres – cujas
almas não faltou quem dissesse que não foram criadas à imagem e semelhança de Deus
– tirou as almas de Sara, de Rebeca, de
Raquel, a de Maria, irmã de Moisés, a de Ester, a de Rute, a da casta Susana, a
da valente Judite. E com estas de mais conhecido nome, todas as outras que naquele
escuro depósito estavam esperando longamente a vinda do Messias.
Das que lá entraram depois de
Deus feito homem – se a história do rico
avarento não foi mais antiga tirou o Senhor singularmente a alma do pobre
Lázaro, de que só se faz menção no Evangelho, a qual levaram ao mesmo seio de
Abraão os anjos, ficando para sempre no inferno, ardendo em fogo e em inveja, a
alma do mesmo rico, cuja fortuna neste mundo fora tão invejada. Também foi
notável entre as almas deste tempo a de Simiano, aquele velho venturoso que
teve a Cristo em seus braços, e, despedindo-se da vida, foi o que lá levou as
primeiras novas, de que já ficava no mundo o Redentor dele. Os antigos tiveram
para si que havia almas grandes e almas pequenas; e se isto assim fora, muito acrescentaram
o número das almas pequenas às dos inocentes de Belém, os quais o Senhor não
livrou da espada de Herodes, para agora as levar gloriosas consigo. Finalmente,
sobre todo aquele numerosíssimo esquadrão, avultaram com excesso entre todas as
almas grandes, quatro maiores – a de S.
João Batista, a de S. Joaquim, a de Santa Ana, e a do que mereceu ser chamado
pai do mesmo Cristo, o incomparável S. José.
Estes foram os tesouros
inestimáveis que o Redentor do mundo tirou daquelas suas minas, que em espaço de
quatro mil anos, desde o princípio do mesmo mundo, se foram multiplicando e
crescendo sempre. Então se cumpriu a promessa que delas lhe tinha feito Deus
por boca de Isaías, dizendo que lhe daria os tesouros escondidos e mais
secretos e encobertos de toda a terra, e quebraria para isso portas de bronze e
fechaduras de ferro: Portas aereas
conteram, et vectes ferreos confringam; et dabo tibi thesauros absconditos, et
arcana seeretorum. Bem sei que estas palavras foram dirigidas exteriormente
a el-rei Ciro, mas é certo que o interior da profecia falava expressamente com
Cristo. Assim como o que tem diante de si a imagem de um santo parece que fala
com a imagem, e fala com o santo, assim Isaías, falando no exterior com Ciro,
que era figura e imagem de Cristo, com o mesmo Cristo é que falava
propriamente, e de Cristo profetizava, e não de Ciro. O mesmo profeta se
explicou logo, e se comentou a si mesmo e com tal individuação de palavras, que
de nenhum modo se podem entender de Ciro, nem de outro algum homem, senão
daquele que era homem e Deus juntamente: Vere
tu es Deus absconditus, Deus Israel, salvator. Este, de quem falo debaixo
do nome de Ciro, é verdadeiramente Deus escondido, Deus escondido e Salvador,
Deus escondido, porque em Cristo estava a divindade escondida debaixo da
humanidade; e Deus assim escondido Salvador, porque para Deus nos salvar se fez
homem. E para tirar toda a dúvida, e que este Salvador não era homem como os
outros homens da terra, senão Deus descido do céu, continua o mesmo profeta
pedindo e instando ao mesmo céu que acabasse já de chover lá de cima o Justo,
para que nascesse na terra o Salvador: Rorate,
caeli, desuper, et nubes pluant justum; aperiatur terra, et germinet Salvatorem
– Assim que aquele príncipe, a quem Deus
prometeu o descobrimento das minas secretas, e as riquezas dos tesouros mais
ocultos e escondidos, não era Ciro, nem outro rei da terra, senão Cristo,
verdadeiro Deus, também escondido, que desceu do céu, e que desceu, não para
outro fim, senão para ser Salvador.
Mas, se Cristo, quando desceu do
céu e veio à terra, nasceu na pobreza de um presépio; se como Filho escolheu
Mãe pobre, e como Mestre discípulos pobres; se a primeira coisa que ensinou e
pregou foi a pobreza; se viveu de esmolas
como pobre, se morreu sem casa nem cama, é despido como extremamente pobre, se o que sempre condenou
foram as riquezas, e, prometendo o céu aos pobres, só o dificultou e quase impossibilitou aos
ricos: que tesouros são estes que Deus lhes prometeu, e que minas secretas e escondidas as que havia de
descobrir? Não foram sem dúvida, nem são outras, senão aquelas almas tão preciosas como prezadas, que
no seio de Abraão, como em tesouro, se iam depositando por todos os séculos, não só
escondidas e encerradas, mas verdadeiramente cativas, para cujo descobrimento, liberdade e redenção
desceu Cristo, como diz S. Paulo, às partes mais inferiores da terra: Ascendens
in altum captivam duxit captivitatem. Quod autem ascendit, quid est, nisi quia
et descendit primum in inferiores partes
terrae? E porque as mesmas almas não podiam sair daquele lugar subterrâneo, onde estavam presas e
aferrolhadas, como em um cárcere de bronze, por isso juntamente com a promessa destes tesouros e
destas minas, assegurou Deus ao mesmo Cristo, descobridor e conquistador delas, que primeiro
quebraria as portas de bronze, e romperia as fechaduras de ferro: Portas aereas conteram, et vectes ferreos confringam, et dabo tibi
thesauros absconditos, et arcana
secretorum.
Assim comentam este lugar
literalmente S. Jerônimo e Santo Agostinho. Mas quem poderá declarar dignamente o preço destes tesouros e o valor
destas minas? Só por comparação do ouro e prata, que o mundo tanto preza e estima nas outras, se pode
de algum modo rastear, e assim o fez S. Pedro, falando daquelas almas, e das nossas.
Exorta-nos S. Pedro a que conservemos puras as nossas almas, com a obediência dos preceitos divinos, que
todos se encerram na caridade: Animas
vestras castificantes in obedientia
charitatis – e o motivo principal que para isso nos propõe é o preço e valor das mesmas almas : Scientes quod non corruptibilibus auro vel argento redempti estis, sed pretioso sanguine quasi agni immaculati
Christi (1 Pdr 1 , 18): Advertindo e considerando – diz o Príncipe dos apóstolos – que essas almas não
foram compradas com ouro ou prata, senão com o precioso sangue do mesmo Filho de Deus. Não
sei se reparais que não só diz S. Pedro o preço com que foram compradas as almas, senão também o
preço com que não foram compradas. Não foram compradas, diz, com ouro nem com prata, senão
com o sangue de Cristo. E não bastava dizer que foram compradas com o sangue de Cristo unido à
divindade, e por isso de preço infinito? Bastava e sobejava. Mas como falava com a baixeza e
vileza dos homens, que, como feitos de terra, não sabem levantar os pensamentos da terra, e tanto
prezam e estimam o ouro e a prata, por isso ajuntou e ponderou que não foram compradas as almas com
ouro nem com prata, senão com o preço infinito do sangue de Cristo, para que acabem de entender
e de crer todos os que têm fé que são infinitamente mais preciosas as almas, e infinitamente mais
ricas as minas, donde Cristo as foi buscar debaixo da terra, que todo o ouro e toda a prata que se
tira ou pode tirar das outras.
Que bem o entendeu assim el-rei
D. João, o Segundo, quando se descobriram as minas da Costa deÁfrica, que deram
nome à mesma terra! Edificou-se ali o famoso castelo de S. Jorge; mas porque as
despesas eram muitas, e a terra doentia,
pôs-se em conselho de Estado, se se largaria. E como muitos dos conselheiros votassem que sim, que
responderia el-rei? Respondeu que de nenhum modo se largasse. Porque eu – diz – não mandei edificar aquele castelo
tanto para a defesa e conservação das minas,
quanto para a conversão das almas dos gentios, e basta-me a esperança da
salvação de uma só daquelas almas, para
ter por bem empregadas todas essas despesas.
CAPÍTULO IX
O Rio das Almazonas e o Rio das
Almazinhas. O desamparo e desprezo com que se estão perdendo as almas do Estado do Maranhão. O inferno
superior e o inferno interior. Há casos em que a felicidade consiste, não em se achar o que se busca e
deseja, senão em se não achar. O exemplo de Pedro, correndo ao sepulcro, e de Adão, enquanto se
não achava entre todas as criaturas quem lhe fosse semelhante. Os tesouros do céu e os tesouros
da terra. Peroração.
Estas são, senhores meus, as
minas de que Cristo hoje subiu tão rico do centro da terra, estas as que eu vos prometi descobrir, e estas, e não outras,
as minas do vosso Maranhão. Se Deus vos não deu as de ouro e prata, como esperáveis, ou vos fez
mercê de que não se descobrissem, para vos livrar de tantas desgraças, como ouvistes, contentai-vos de vos
ter dotado e enriquecido daquelas que na sua estimação – que só é a certa e verdadeira – foram
dignas de ser compradas com seu próprio sangue. Este grande rio, rei de todos os do mundo, que
deu o nome à vossa cidade, e a todo o estado, que ribeira
tem na sua principal e maior corrente, ou nas de seus tão dilatados braços,
que, em lugar das areias de ouro, de que
outros fabulosamente se jactam, não esteja rico destas pérolas, que assim chamou Cristo às almas? Outros lhe chamam Rio
das Almazonas, mas eu lhe chamo Rio das Almazinhas,
não por serem menores, nem de menos preço – pois todas custaram o mesmo – mas
pelo desamparo e desprezo com que se
estão perdendo, quando o ouro e a prata se deseja com tanta ânsia, se procura com tanto cuidado e se busca com
tanto empenho? Oh! almas remidas com o sangue do Filho de Deus, que pouco conhecido é o vosso
preço, e que pouco sentida a vossa perda, digna só de se chorar com lágrimas de sangue! Mas os que
tão pouco caso fazem da alma própria, como o farão das alheias?
Ora, já que o Senhor do mundo nos
descobriu estas minas, e nos encareceu tanto o preço delas, e as pôs tanto à flor da terra, nesta terra de que
vos fez senhores para este mesmo fim, não as desprezeis. Vede que injúria seria da fé e da caridade, e
do mesmo sangue de Cristo, se, descendo ele ao centro da terra a buscar almas, nós as deixássemos
perder e ir ao inferno, quando as podemos salvar para si, para nós e para o mesmo Cristo, sem cavar nem
romper montanhas. E para que se anime o nosso zelo neste pequeno trabalho, e de tanto lucro, só
quero que advirtamos todos que, fazendo-o assim, faremos em certo modo mais, sem sair da
superfície da terra, do que fez o mesmo Cristo descendo ao centro dela. E de fé que Cristo desceu aos
infernos: Descendit ad inferos.
Também é de fé que há dois infernos, um
inferior, e muito mais baixo, onde estava o rico avarento, e outro superior, e
mais acima, onde estava Abraão e Lázaro.
Deste inferno superior tirou Cristo todas as almas que lá estavam, mas do inferno inferior – ou Cristo descesse lá
presencialmente, ou não – não tirou alma alguma. Contudo, Davi diz de si que o Senhor tirou a sua alma
do inferno inferior: Eruisti animam meam
ex inferno inferiori. Pois, se a
alma de Davi, como a dos outros patriarcas, foi tirada do seio de Abraão, que é o inferno superior, como diz que a tirou
Deus do inferno inferior, que é o inferno dos condenados, e que propriamente se chama inferno? Porque a
alma de Davi livrou-a Deus duas vezes, e dois infernos: uma vez em vida, e outra vez depois da morte.
Depois da morte, livrou-a do inferno superior, quando, com as outras almas santas, a tirou do seio de
Abraão; e na vida livrou-a do inferno inferior, ao qual estava condenada a alma de Davi pelo pecado do
adultério e homicídio, e onde havia de penar eternamente, se Deus, por sua grande
misericórdia, a não livrara, como ele mesmo diz: Quia misericordia tua magna est
super me, et eruisti animam meam ex inferno inferiore. Eis aqui o estado em que estão toda essa infinidade
de almas, cujo remédio e salvação fiou Deus do nosso zelo e da nossa cristandade. Os
inocentes pelo pecado original irão ao Limbo, que também é inferno, pois não hão de ver a Deus para
sempre. Porém, os adultos, assim pelos pecados atuais, como pela falta de fé e batismo, todos vão e estão
indo continuamente ao inferno inferior. E deste inferno, donde Cristo hoje não tirou alma alguma,
podemos nós tirar, sem sair da terra onde Deus nos pôs, tantos milhares de almas, e fazer delas um
tesouro inestimável, tanto mais rico e precioso, quanto vale mais uma só alma que todo o ouro e prata, e
todos os haveres do mundo. Ou cremos esta verdade, cristãos, ou não cremos? Se a não cremos, onde
está a nossa fé, a nossa esperança e o nosso entendimento? Diga-se do nosso entendimento e
da nossa fé o que hoje disse Cristo aos discípulos desesperados: O sulti, et tardi corde ad credentum! Mas, se temos fé e juízo,
como não há de prevalecer a alegria, o
gosto e a felicidade de Deus nos ter descoberto estas minas do céu, à falsa e mal entendida tristeza, de não termos achado
as da terra que nela buscávamos?
Notou Santo Agostinho uma coisa
digna do seu entendimento, que hoje sucedeu a S. Pedro: quando a Madalena esta manhã não achou o corpo do
Senhor, que buscava na sepultura, veio toda a diligência dar conta a S. Pedro, o qual, não andando,
senão correndo, foi logo a certificar-se e ver por seus olhos se era assim o que ouvia. E qual vos parece
que seria o desejo que S. Pedro levava no coração? Santo Agostinho o diz: Ad sepulchrum celeri cursu festinat, laetior rediturus, si non
inveniret quem quaerebat: Corria S.
Pedro ao sepulcro, não com desejo de achar, senão de não achar, e para tornar da jornada muito mais alegre, se não
achasse o que buscava. – Assim se alegra quem olha para as coisas com são juízo, e quem entende – como
S. Pedro entendia – que há casos em que a felicidade consiste, não em se achar o que se busca e
deseja, senão em se não achar. Enquanto se não achava entre todas as criaturas quem fosse semelhante
a Adão: Adae vero non inveniebatur
adjutor similis ejus – foi Adão feliz; e tanto que se achou o que
se não achava, daí lhe procederam todos os seus desgostos, todas as suas perdas, e todas as
suas e nossas infelicidades. Alegrem-se, pois, com S. Pedro os que estavam tristes, por se não achar o que
se buscou, e alegrem-se também, e muito mais com os dois discípulos de Emaús, de acharem, e de se
descobrir tanto mais do que esperavam. Eles esperavam um bem particular e temporal, que
era a redenção do reino de Israel: Nos
autem sperabamus, quod ipse esset
redempturus Israel – e o que
acharam, sem o buscarem, foi a redenção espiritual
e eterna do mundo, em que consistia a salvação das suas almas, e a de todas.
Todas devemos desejar que se
salvem, e por todas havemos de oferecer nossos sacrifícios e orações a Deus. Mas, pois, não podemos cooperar à
salvação de todas, ao menos não faltemos a estas tão desamparadas, às quais, por mais vizinhas, é
mais devedora a nossa caridade. Sobretudo trate cada um, com verdadeiro zelo cristão, da doutrina e
salvação, ao menos daquelas almas que têm em sua casa, e muito particularmente da sua, de que
muitos vivem tão esquecidos. Acabemos de entender, e de nos desenganar, que só estes são os
verdadeiros tesouros, e que não há outros, posto que a nossa cegueira lhes dê este nome. Concedo-vos que se
descobrissem as minas que desejáveis, e que esta vossa cidade estivesse lajeada de barras de
prata, e coberta de telhas de ouro: que importava tudo isto à alma? Havia de levar alguma coisa destas
consigo? Havia-lhe de importar alguma coisa para a conta? Pois, se tudo cá há de ficar, por que
não tomamos o conselho de Cristo, que tantas vezes nos disse que fizéssemos o nosso tesouro no céu: Thesaurizate vobis thesauros in caelo? E
notai que diz: Thesaurizate vobis: Entesourai para vós – porque todos os outros
tesouros são para os que cá ficam.
Costumavam os antigos mandar enterrar os tesouros debaixo das suas sepulturas,
e por isso diz Jó que os que cavam tesouros
se alegram quando acham algum sepulcro: Effodientes
thesaurum gaudent vehementer cum
invenerint sepulchrum (Jó 3, 21 s) (40) . E não é melhor que a alma ache os
seus tesouros no céu, e se alegre com
eles, do que alegrarem-se outros com a vossa sepultura e com à vossa morte, para se lograrem do que vós não
podeis levar convosco? Ora, tenhamos, tenhamos fé, e entristeçam-nos somente nossos pecados, e
alegre-nos somente a esperança bem fundada de nossa salvação. E para que até das minas que não
achastes tireis algum fruto, seja o primeiro a confusão de fazermos tantas diligências pelos tesouros da
terra, quando tão pouca fazemos pelos do céu, que hão de durar para sempre; e o segundo, o exemplo e
resolução de fazer ao menos outro tanto pela salvação da alma e graça de Deus, a qual nos promete o
mesmo Deus que acharemos sem dúvida, se assim a buscarmos: Si
quaesieris eam quasi pecuniam, et sicut thesauros effoderis illam: tunc
intelliges timorem Domini, et scientiam
Dei invenies.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Primeira Oitava de Páscoa"
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Primeira Oitava de Páscoa"
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