SOLO
Assim como chega
sem convite à
vista
esse ruflar de
asas
me assalta e
conquista
me cobre e
agasalha
no cobre do
outono.
Mas logo me deixa
de novo o abandono
de tardes vazias
olhando andorinhas
tão leves tão
lentas
de tanta preguiça.
Agora percebo
que sou passageiro
mero cão rafeiro
aqui neste banco
farejando a praça
de nuvem esgarçada
no azul distraída.
A cor que me fica
me enterra amarelo
e o sol sem a gema
me deixa o lençol
tão claro de
claras.
O BEIJO
“Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada”.
Herberto Helder
“Boca ó minha delicia meu néctar eu te amo“
Gillaume
Apollinaire
Punhais de nuvens
descem com os ventos
Desembainhados nos
lívidos lábios
Abrindo à fuga o
fogo do momento
Seda e linho se
atiçam nesse acaso
Para a chuva de
sílaba imanente
Regando a pele
fina que se enlaça.
Úmido aço no laço
sem tormento
Desfaz todos os
nós toda trapaça:
Molhado lambe a
língua rio fluente.
A porta se
escancara e tudo passa
Sem grãos medindo
a hora nua ausente
Enquanto mãos
caçando viram caça.
A fala dos afetos
frente a frente
Derrete-se ao
veludo das palavras
E vai esvaziar o
véu silente.
Nervura calipígia
denso espasmo
Revira persiana
iridescente
Raio de íris
fremente em mar de pálpebras.
Estrela negra
rompe o céu cadente
Rútila brilha a
lira acalentada
Desfalecendo o
arpejo umidamente
Suor falaz dos
poros pelos flancos
As mãos soletram montes
num poente
De um sol mormaço
rubro caligráfico
Escrita em arrepio
abstinente
A ausência se
estertora em ímã sáfico
Um hino de atração
soa dolente.
Dois lábios que se
encontram num abraço
São asas de
avoantes reticentes
Mas sabem do
selvagem no céu vasto.
OS ARAUTOS
“Hay golpes en la vida, tan fuertes … Yo no
sé!”
César Vallejo
Já não se me pousa
o corvo heráldico
pela palha
esfarrapada das vestes
pelo escuro canto
dos arautos:
Nunca mais...
O fio se fia para
o novelo da roca
um rodar tartamudo
com soluços
o tempo solavanca
em sua boleia
e eu, como
Vallejo, não sei...
Uma folha se eleva
leve e vai em vão
interceder num
diálogo com o vento
mas turbulências
são evidentes na face
valas profundas
vincadas...
O que me salva é
minha tarefa.
Não me afogo em
lagos encharcados de culpa:
os meus pecados
não caberiam num sermão
de confessionários
não sei...
Apenas sei que a
lâmina vibra em sua luz
ilumina os poucos
pêlos ralos
e no espelho se
traduz a minha espera.
Falta-me o forno
para queimar o pão
no entanto carrego
um vulcão na alma
crepitando
erupções passadas:
assim me quedo sem
saber de nada
Quando virá? Não
sei...
PARÊMIAS
Colho do olhar a
calma mansidão
presente, sempre
armada na visão.
Vejo e muito olho
o lombo nas retinas
de livros grossos
lidos na surdina.
Eis que da estante
fogem personagens
todos aqueles
vistos na viagem
Na descoberta
mágica do sonho
Acordado, nas
lentes, um sardônico
ser, plasmado
entre o medo e os meus pecados
de Sade a Nabokov
degredado
lambendo em
Chatterley godivas ladies
prendo lolitas
dóceis nas paredes.
Madame Bovary o
teu Flaubert sou eu!
Despindo as tuas
vestes, teu plebeu.
Entre basilios e
bentinhos sei-me Eça
Cruzado com
Machado em dor expressa.
Na verdade nem
Freud nem Masoch
Apenas um comum
ser sem retoque.
PROFANO
Para Marcos Sena
Passa a noite com
seu fio
e vai deslizante e
célere
nesse meu olhar
distante.
A lamparina
refulge
a memória acesa em
chama
ardendo
acontecimentos.
Tento pendurar-me
ao fio
da corda e ao
calor das horas
mas o fogo não me
é fuga.
Plumas do sonho me
sabem
um ajoelhado
insone
no evangelho dos
notívagos.
Ajoelhado, jamais!
Disse-o ao seu
ouvido um dia.
quando senhor me
sabia.
Rodilhas dentadas
dançam
nos segundos dos
ponteiros:
a dissoluta
engrenagem.
Chegada a hora do
vinho
ela me lavou os
pés
perdoei-a com a
fala
Cabelos revoltos
voam
na curvatura do
dorso.
Não me soube mais
divino.
Então a lavei com
a língua
e a enxuguei com
oliveiras.
Ouvi distante:
ECCE HOMO!
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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Abril-Maio-Junho 2009 - Ano XV - Nº 59 - (Academia Brasileira de Letras - ABL)
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