
JOGO DE OSSO
— Pois olhe: eu já vi jogar-se
uma mulher num tira de taba. Foi uma parada que custou vida… mas foi jogada!
Um pouco pra fora da Vila, na
volta da estrada, metida na sombra dumas figueiras velhas ficava a vendola do
Arranhão; era um bochinche mui arrebentado, e o dono era um sujeito alarifaço,
cá pra mim, desertor, meio
espanhol meio gringo,
mas mui jeitoso
para qualquer arreglo que
cheirasse à plata...
Mui destravado
da língua e ao mesmo
tempo rezador, sempre
se santiguando e
olhando por baixo, como porco,
tudo pra ele era negócio: comprava roubos, trocava cousas, emprestava pra jogo,
com usura, e sempre se atrapalhava para menos, no troco dos pagamentos.
Às vezes
armava umas carreiritas,
que se corriam
numa cancha dumas
três quadras que
ele mesmo tinha arranjado a um lado do potreiro; então conchavava algum
gringo tocador de realejo e estava
preparado o divertimento.
O que ele
queria era gente,
peonada, andantes, vagabundos, carreteiros, para
poder vender canha
e comida e
doces; e de
noite facilitava umas
mesas de primeira, de truco ou de sete-em-porta
para tirar o cafife. Doutras ocasiões ajeitava umas dançarolas que alvorotavam
o chinaredo da vizinhança.
Por este pano de amostra vancê vê
o que seria aquele gavião.
Duma vez que ele tinha trançado
umas carreiras, com duas ou três pencas de patacão, e se havia ajuntado algum
povo, tudo gauchada leviana, choveu.
A chuvarada estragou a cancha,
molhou as carpetas, atrapalhou tudo.
E a gente foi ganhando na venda,
apinhoscou-se por debaixo das figueiras e no galpão.
Quando passou o aguaceiro e oriou
o terreiro, deram alguns aficionados para jogar o osso.
Vancê sabe como é que se joga o
osso?
Ansim:
Escolhe-se um chão parelho, nem
duro, que faz saltar, nem mole, que acama, nem areento, que enterra o osso.
É
sobre o firme
macio, que convém.
A cancha com
uma braça de
largura, chega, e
três de comprimento; no meio
bota-se uma raia de piola, amarrada em duas estaquinhas ou mesmo um risco no
chão, serve; de cada cabeça da cancha é que o jogador atira, sobre a raia do
centro: este atira daqui pra lá, o outro atira de lá pra cá.
O osso é a taba, que é o osso do
garrão da rês vacum. O jogo é só de culo ou suerte.
Culo é
quando a taba
cai com o
lado arredondado pra
baixo: quem atira
assim perde logo a
parada. Suerte é quando o lado chato fica embaixo: ganha logo e sempre.
Quer dizer: quem atira culo
perde, se é suerte ganha e logo arrasta a parada.
Ao lado da raia do meio fica o
coimeiro que é o sujeito depositário da parada e que a entrega logo ao
ganhador. O coimeiro também é que tira o barato — para o pulpeiro. Quase sempre
é algum aldragante velho e sem-vergonha, dizedor de graças.
E um jogo brabo, pois não é?
Pois há
gente que se
amarra o dia
inteiro nessa cachaça,
e parada a
parada envida tudo:
os bolivianos, os arreios,
o cavalo, o
poncho, as esporas.
O facão nem
a pistola, isso,
sim, nenhum aficionado joga;
os fala-verdade é
que têm de
garantir a retirada
do perdedor sem
debocheira dos ganhadores... e,
cuidado… muito cuidado
com o gaúcho
que saiu da
cancha do osso
de marca quente!...
Pois dessa feita se acolheraram a
jogar a taba o Osoro e o Chico Ruivo.
O
Osoro era um
moreno mui milongueiro,
compositor de parelheiros
e meio aruá;
andava sempre metido pelos ranchos contando histórias às mulheres e
tomando mate de parceria com elas.
O
Chico era domador e morava de agregado num rincão da estância das
Palmas; e vivia com uma piguancha bem jeitosa, chamada Lalica.
Nesse dia
Unha vindo com
ela ao festo
do Arranhão. Enquanto
os dois jogavam,
a morocha andava lá por dentro, com as outras,
saracoteando.
Havia violas; havia tocadores; a
farra ia indo quente. E os dois, jogando. O Chico perdia uma em cima da outra.
—
Culo! Outra vez?... Má raios!...
— Suerte, chê! Ganhei! repetia o Osoro.
—
Jogo-te o tostado, aperado, valeu? Topo!
E culo!... Isto é mau olhado
dalgum roncolho mirone!...
E
relanceou os olhos
pelos vedores, esperando
que algum comprasse
a camorra; ninguém
se picou.
—
Jogo o teu ruano contra as duas tambeiras da Lalica!
—
E pouco, Chico!... Ainda se fosse a dona!...
—
Osoro, não brinca!... Pois olha; jogo!
—
O ruano?
—
O mano contra a Lalica! Assim como assim, esta china já está me
enfarando!...
—
Pois topo!
Os mirones se entreolharam,
boquejando, alguns; eles bem viam que o gaúcho estava sem liga, que já tinha
perdido tudo, o dinheiro, o cavalo, as botas, um rebenque com argolão de prata;
e agora, o outro, o Osoro, para completar o carcheio, ainda tinha topado a
última parada, que era a china...
A cousa ia ser tirana; correu
logo voz; em roda dos dois amontoou-se a gente.
O Osoro atirou, e deu suerte...
O Ruivo atirou, e deu suerte...
—
Ora, não deu gosto! disse um.
—
Outra mão! disse o outro.
E o Ruivo atirou: culo!
O Osoro atirou: suerte!
—
Ganhei, aparceiro!
—
Pois toma conta, ermâo!
—
Tu é que tens de fazer a entrega...
—
Não tem veremos... Trato é trato!...
Já ia querendo anoitecer.
O
que se passou
entre aquelas três
criaturas, não sei;
se juntaram num
canto do balcão
da venda e falaram.
Por certo que
o Chico Ruivo disse
à china que a
jogara numa parada
de taba; o Osoro só disse uma vez:
—
Eu, se perdesse o ruano, o Chico já ia daqui montado nele..
A
Lalica deu uma
risadinha amarela; olhou
o Osoro, olhou
o Chico Ruivo, cuspiu
de nojo e disse pra este, na cara:
—
Sempre és muito baixo!..., guampudo, por gosto!...
—
Olha, guincha, que te grudo as chilenas!...
—
Ixe! Este, agora, é que me encilha, retalhado!...
Nisto um
violeiro pegou a rufar
uma dança chorada;
umas parelhas pegaram
a se menear
no compasso da música e logo o Osoro, para cortar aquele aperto, travou
do pulso da morocha, passou-lhe o braço na cinta e quase levantando-a no ar
entrou na roda dos dançadores; o Ruivo ficou quieto, mas de goela seca e nos
olhos com uma luz diferente.
Na primeira volta, quando o par
passou por ele, a china ia dizendo mui derretida:
—
Quando quiseres, meu negro...
Na segunda volta, como num
despique, ela tornou a boquejar pro Osoro:
—
Eu vou na tua garupa...
E na outra, a china vinha calada,
mas com a cabeça deitada no peito do par, olhando terneira pra ele, com uma luz
de riso, os beiços encolhidos, como armando uma promessa de boquinha; e o Osoro
se esqueceu do mundo… e colou na boca da tentação um beijo gordo, demorado,
cheio de desaforo...
O Chico Ruivo teve um estremeção
e deu um urro entupido, arrancou do facão e atirou o braço pra diante, numa
cegueira de raiva, que só enxerga bem o que quer matar...
E vai, como pegou o Osoro pela
esquerda, do lado, meio por detrás, por debaixo da paleta, o facão saiu no rumo
certo e foi bandear a Lalica meio de lado, sobre a esquerda da frente.
Vancê compr’ende?
Do mesmo talho
varou os dois
corações, espetou-os no
mesmo feno, matou-os da
mesma morte, fazendo
os dois sangues,
num de cada
peito, correrem juntos
num só derrame... que foi
lastrando pelo chão duro, de cupim socado, lastrando... até os dois corpos
baterem na parede, sempre abraçados, talvez mais abraçados, e depois tombarem
por cima do balcão, onde estava encostado o tocador, que parou um rasgado
bonito e ficou olhando fixe para aquela parelha de dançarmos morrentes e
farristas ainda!...
Levantou-se uma berraçada.
— Matou! Foi o Chico Ruivo!...
Amarra! Cerca!...
Mas o Ruivo parece que voltou a
si; coriscou o facão aos dois lados e atropelou a porta, ganhou o terreiro e se
foi ao palanque onde estava o ruano do Osoro: montou e gritou pra os que
ficavam:
— Siga o baile!...
E deu de rédea, no escuro da
noite.
O Arranhão acudiu ao berzabum;
aquele safado, curtido na ciganagem, só soube dizer:
— Pois é... jogaram o osso,
armaram a sua paranda... mas nenhum pagou nada ao coimeiro!... Que trastes!...
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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