sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Artur Azevedo: "5 Poemas"

LINDAS CENAS

É na varanda a cena, onde o trabalho
Ocupa três morenas,
Rosas do mesmo galho,
A quem desponta apenas
Um sol de primavera.

Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão lindas cenas:

A primeira uma saia finaliza,
E a outra um cós pesponta,
E a terceira marcando uma camisa
Está, que já das mãos lhe saiu pronta.

Na pobre meassaba
(O canapé da mísera vivenda)
Das morenas a mãe ligeira acaba
Algumas varas de engenhosa renda.
Trabalho de encomenda.

A velha mão cansada
Dos bilros no vaivém parece nova,
Acompanhando a lânguida toada,
A invariável trova,
Entre dentes cantada.

De vez em quando cessa a cantilena,
E ao taquari sorvendo umas fumaças,
A velha mãe ordena
Mais ativo trabalho àquelas graças.

Meu Deus! que linda cena l
E que pintor pintá-la poderia!

A primeira das três, toda alegria,
Tem a feição brejeira;
A segunda é não menos prazenteira;
Mas que melancolia
Entenebrece o rosto da terceira!

A primeira, da mãe severa e dura
A distração aguarda,
Pois em baixo dos panos da costura
A Moreninha, de Macedo, guarda,
E, em rápido relance,
Fundo e furtivo olhar manda ao romance.

A segunda parece mais sensata:
As vistas em redor jamais espaça,
Mas a mana maltrata
Um beliscão que é dado em ar de graça

Si a felicidade só no rir consiste,
Que são felizes todas ires diviso;
Mas a terceira ri de um rir tão triste...
As lágrimas prefiro àquele riso.

Em vão simula calma...
Deixa dos dedos lhe cair a agulha.
Aquela cândida alma
Acaso se mergulha
Nalguma dor sincera?

Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão linda cena!

A velha está serena.
— Que tens, sinhá, que tens? Te desconheço I
Tu bem sabes, pequena:
Quando eu te vejo triste, me entristeço J —

Disfarça a moça a comoção, o enleio,
Partindo a linha co'os formosos dentes,
Mas desfolha no seio
um rosário de lágrimas ardentes.

Desse modo acusada,
Ergue-se envergonhada,
E no eólio materno, abrigo santo,
Tenta esconder o resto do seu pranto.

As outras duas moreninhas belas,
Erguidas logo, serenar procuram
A dolorida irmã, bem sabem elas
Que são artes do amor que assim misturam
As lágrimas aos risos
Tristes, amargurados, indecisos:
Mas não sabem da missa nem metade...

Com que meiga piedade
Em beijos degenera
Aquela doce pena!
Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão linda cena

A porta da varanda se escancara
E no lumiar a cara
De um velho se apresenta.
Carregando garboso os seus sessenta.
Dá-lhe um solene, venerando aspeito,
A barba branca que lhe cobre o peito.

Não está só o ancião: traz ao seu lado
Um bonito rapaz, tipo de poeta,
E vem acompanhado
Por um cão agitando a cauda inquieta.

Dirigindo-se a velha
Que, surpreendida, franze a sobrancelha,
— Minha senhora, diz o velho, queira
Perdoar-me entrar aqui desta maneira,
Sem me fazer anunciar; urgente
Caso me traz humilde e reverente:
Este moço é meu filho;
Saiu-me, por desgraça, um peralvilho!
De uma destas meninas
Alcançou entrevistas clandestinas.

E fugiu dela, calculando, injusto,
Que eu, que sou velho honrado, me oporia
Ao casamento. Só a muito custo
Me revelou essa patifaria,
Da qual me prevenira um bom amigo
Senhora, aqui o tem, trouxe-o comigo,
E peco-lhe, para este bigorrilha,
Com o seu perdão, a mão de sua filha,
Si o julga digno de casar com ela.

Nesta pálida tela
Não ponho, que o pincel me não ajuda,
A longa cena muda
Que se passou; da velha o grande espanto,
E da culpada o pranto,
E a surpresa das manas, e o enleio
Do sedutor, parado ali, no meio
Da casa, cabisbaixo, e o pai sisudo,
De barbas brancas e figura austera,
E o cão curioso, farejando tudo,
Indiferente à sorte da pequena.

Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão linda cena!

Quando a velha, passado o espanto imenso,
Lançou à moça um longo olhar magoado,
Esta, mordendo o lenço,
De lágrimas lavado,
— Mamãe, perdoa... murmurou apenas.

Ai, quem me dera, em verso aprimorado
Saber reproduzir tão lindas cenas l



INFANTILIDADE

Que reboliço vai em casa de Marieta!
É que fugiu Mignonne, a gata favorita,
E tanto chora e chora a pobre pequenita,
Que o papai manda pôr anúncio na gazeta.

Da vizinhança alguém, com olho na gorjeta,
A trânsfuga encontrou, que andava de visita
Ao demo de um maltês filósofo que habita
De um canto de fogão a cálida saleta.

Marieta, ao ver Mignonne, estende-lhe os bracinhos.
Dá-lhe um banho de amor em beijos e carinhos,
Nervosa, a soluçar, e, ao mesmo tempo, a rir.

E entre afagos lhe diz: "Senhora, foi preciso
Pôr um anúncio! Veja o que é não ter juízo!"
E todo o anúncio lê para Mignonne ouvir...



AS ESTÁTUAS

No dia em que na terra te sumiram,
Eu fui ver-te defunta sobre a eça,
Fechados para sempre — oh, sorte avessa!
Aqueles olhos que me seduziram.

À luz do sol uma janela abriram,
E o jardim avistei onde, oh, condessa,
Uma noite perdemos a cabeça,
E as estátuas de mármore sorriram...

Saíste por aquela mesma porta
Onde outrora os teus lábios me esperaram,
Cheios do amor que ainda me conforta.

Quando o jardim saudoso atravessaram
Seis homens com o esquife em que ias morta,
As estátuas de mármore choraram!



TERTULIANO, O PASPALHÃO

Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;

Lá um dia deixou de andar à malta
E, indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, diante de um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:

— Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso?

Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvira tudo,
Severamente respondeu: — Juízo!



MUTAÇÃO

Batel sem norte, o espírito naufraga
Neste medonho pélago de ciúme,
Que os suplícios do amor todos resume,
E as vítimas do amor todas alaga:

Quando entram n'alma as sombras do azedume,
Quando nasce no peito hedionda chaga;
Sofre-se... curte-se uma dor que esmaga,
E não se exala ao menos um queixume...

Mas, de repente — delicioso instante! —
Uma doce cartinha, inesperada,
Torna feliz um coração amante!

Dor... azedume... isso não vale nada!
Todos os males se dissipam diante

Das garatujas da mulher amada!


---
Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

Um comentário: