
A PAIXÃO DE MANUEL GARCIA
Manuel Garcia, o pobre canteiro
da Rua das Silvas, quando soube que Maria del Pilar ia casar-se, matou-se.
Um drama encerrado em duas
linhas, numa escassa dúzia de palavras, um drama que levou anos e anos a desenrolar-se,
que teve o seu primeiro capítulo numa
doce manhã de Maio e o seu epílogo num modestíssimo quarto de uma casinha de pobres.
Como é difícil sondar os corações
humildes, as histórias das vidas simples! E a história de um coração que nunca se interrogou
em desoladoras horas de spleen, em inquietas noites de insônia,
que nunca pretendeu perscrutar os complicados
mistérios do Além, é uma história simples, uma humilde história que leva a contar uns rápidos minutos e cabe
toda dentro de sete palmos de pinho...
bem medidos, que Manuel Garcia era um rapagão! Alto, moreno, ombros largos, musculoso, tinha contudo um
coração de colegial de quinze anos; no
forte arcabouço daquele operário inculto e simples vivia, não se sabe porque estranhas transmigrações, a alma de um
poeta romântico. Quem o diria?!... Só a
mãe, talvez... As mães adivinham sempre, não sei por que miraculosa intuição, o mistério que no
mistério das suas entranhas foi gerado, e
nunca se enganam! Quando, naquele úmido crepúsculo de Novembro, o sangue salpicou a parede muito branca de cal,
ao lado da cama, no modestíssimo quarto
da sua casinha de pobres, quando as morenas mãos crispadas, que revolveram a chaga na angústia
suprema da morte, foram manchar de
vermelho a pobre colcha branca, muito lavadinha, o seu orgulho de dona de casa — quando ela entrou e viu* a
história leu-a ela inteira, dentro da
sua triste alma de mãe dolorosa; foi como se a lesse toda, linha a linha, capítulo por capítulo, naquele funesto segundo
em que o destino lhe punha diante dos
olhos, brutalmente, para que ela o lesse, o seu sinistro epílogo de morte.
O candeeiro aceso iluminava com a
sua luz fria e clara o conhecido cenário do pequeno quarto: duas cadeiras, uma coluna com
um bustozinho de criança em pedra, o
lavatório de ferro, uma mesinha e, ao fundo, a cama revolta, o revólver no chão, e o filho morto. Em cima da
mesa, coberta com um debotado pano de
chita de ramagens, uma carta, e nessa carta um nome, um lindo nome de mulher: Maria del Pilar.
Não gritou, não disse nada; os
pobres não gritam. A morte faz parte do seu lúgubre cortejo de amigos, tem um. cantinho no
seu leito e um lugar à sua mesa; quando
chega, pode levar tudo; quando transpõe a porta, aberta de par em par, com a sua presa, não vê à sua volta, a
escoltar-lhe o fatídico vulto negro,
senão cabeças curvadas num gesto de resignação, braços caídos, braços de quem deu tudo, de quem não tem mais nada
para dar. A dor dos pobres é resignada e
calma; traz às vezes consigo as aparências da revolta mas, no fundo, é cheia de um imenso, de um infinito
desapego por tudo. Os pobres vêm ao
mundo já sem nada; o pouco que a vida lhes deixa é emprestado. Que lhes hão de tirar que seja deles?! Aos pobres
toda a gente chama desgraçados. Havia
muitos anos que aquela pobre, aquela desgraçada, sentia a morte rondar-lhe a porta. Ouvira-lhe, por muitas
vezes, os passos ao longe, depois mais
perto, mais perto ainda até pararem à porta... e a morte entrava. Levou- lhe a
mãe, o pai, dois filhos pequeninos, uma filha de vinte anos, o marido, e por último entrara-lhe assim em casa, de
repelão, sem prevenir, e fizera-lhe do coração
um frangalho. A sua alma andara, como o seu corpo, sempre vestida de crepes; não se lembrava de a ter visto de
branco. E resignada, doce, trazia no
rosto fatigado, nas pálpebras sempre descidas sobre os olhos cansados de chorar, na pálida boca dolorosa, o fatalismo
dos que o destino marca para os não
poupar durante uma vida inteira. Adivinhara há muito o doido segredo do filho, o segredo daquela paixão que o
crucificara em vida, que o empurrara aos vinte e dois anos para o negrume da cova.
Nunca dissera nada a ninguém. Para quê?
Quando naquele aziago anoitecer de Novembro transpôs o limiar do quarto e viu o filho morto, não gemeu, não
gritou. Para quê?...
Olhou-o longamente,
profundamente, sem se atrever a entrar; por fim, nuns passos lentos e hirtos de sonâmbula,
aproximou-se. Passou-lhe a mão pela cara
intacta, acariciou-lhe os cabelos, levantando-os, descobrindo-lhe a testa num gesto de uma infinita doçura; depois, com
um dedo, meigamente, seguiu- lhe os contornos da boca mole, a linha do nariz
afilado, o queixo, como que para gravar
melhor na mente, e para sempre, a imagem carnal do que tinha sido um filho, a bênção de um filho.
Fechou-lhe bem os olhos, como quando ele
era pequenino e adormecia com os olhos entreabertos. Devagarinho, devagarinho, não lhe fosse doer, num levíssimo
gesto de piedade e amor, tateou-lhe a
ferida sangrenta no meio do peito como uma chaga. O sangue tingiu-lhe os dedos; pôs-se a olhá-los, e só
então as lágrimas, lágrimas silenciosas,
verdadeiras lágrimas de pobre, lhe correram em fio pelas rugas das faces.
Ter um filho novo, robusto, belo,
e vê-lo ir, vê-lo partir um dia para nunca mais, romeiro perdido num caminho de desgraça!
Ficar só, velha e pobre, sem o calor de
um afago — que triste sorte, mais triste que tudo neste mundo! O filho das suas entranhas, que das suas dores
nascera, que aos seus peitos se criara,
que ainda podia acalentar, deitar no colo, beijar, começava já a ser, na solidão daquele quarto, uma saudade, uma
recordação da sua vida solitária.
Lavou-lhe as mãos ensanguentadas,
vestiu-lhe, sozinha, com um jeito de mãe que veste o filho pequenino, o seu fato novo,
o seu bonito fato preto dos domingos,
calçou-o, penteou-o. Quando o avô chegou, o pobre velho de setenta anos que queria àquele único neto, ao
filho do seu filho morto, como às
meninas dos seus olhos, viu-o assim, já pronto a partir para a suprema ausência, que não tem regresso Abanou a cabeça
toda branca e desatou a soluçar nuns
soluços miudinhos de velho, num choro sem lágrimas que fazia dó. A mãe, nos últimos arranjos, de um lado
para o outro no quarto, parava de vez em
quando para enxugar com ,a ponta do avental de chita preta as lágrimas que continuavam a cair-lhe em fio
pela cara abaixo e que a cegavam.
A carta, em cima da mesa,
atraiu-lhe o olhar com a sua brancura imóvel e fria; a carta parecia o selo sem esperança daquele
túmulo, o selo maldito que a sorte
aziaga imprimira a fechar, para a eternidade, aquela vida ardente e moça. A mãe pegou nela docemente. Tremiam-lhe as
mãos ao levantá-la de cima da mesa como
se não pudessem com ela, com aquele fardo, como se a carta fosse assim como uma cruz de ferro onde o destino
lhe crucificara o filho. Estava fechada;
e então a mãe, ao lindo nome de mulher que as mãos morenas do filho tinham traçado na última hora da sua
vida, acrescentou mentalmente o resto do
nome que lá não estava e que o seu triste coração de mãe adivinhara: Calderon de Ataíde.
Sim, o louco segredo do filho, do
pobre operário canteiro era aquele. A Maria del Pilar, a quem gritara de longe o seu doido
amor, a sua cega paixão de romântico,
não era, como à primeira vista poderia imaginar-se, a priminha afastada que de terras de Espanha viera há
meses e que por aqui ficara, presa como
andava a uns escuros olhos portugueses. Não era a costureirinha gentil com quem poderia ter criado um lar, um doce
lar de pobres, como um ninho suspenso
num beiral, a cabeça a tocar o teto, o teto quase ao pé do céu. Não, não era a moreninha espanhol, não era a
andaluza de rosto tostado como o de uma
gitana que andava pelas ruas com o xalinho traçado e os cabelos ao vento. Era a outra, a outra Maria del Pilar, a
filha de uma nobre espanhola e de um
grande fidalgo português, era a loira princesinha, a fada dos seus sonhos de poeta, que um dia, dia aziago e
fatal, avistara por entre as grades doiradas
do seu jardim distante.
Quando a viu, endoideceu. Preso,
embriagado, arrastado por aquela delirante paixão, nunca mais teve sossego nem descanso.
A oficina de canteiro, propriedade do
avô, era ao canto da rua; de lá avistava-se todo o jardim, a escadaria suntuosa, os amplos salões de baile
no rés-do-chão, as inúmeras janelas dos
aposentos particulares no primeiro e no segundo andar. Tinha ocasiões em que não tirava os olhos do
palácio, via tudo quanto lá se passava, estava
ao facto das saídas e entradas de toda a gente, espiava as idas e vindas dos criados e das visitas. Nas noites de
baile, metia-se num canto sombrio do amplo
portão da oficina, e ali passava a noite inteira a olhar as sombras que passavam ligeiras por detrás dos espessos
cortinados de renda das janelas, como
uma borboleta que a luz atraísse implacavelmente; só quando, de madrugada, via partir os últimos convidados,
ou quando se apagava a última luz, é que
ele se resolvia a voltar para casa, a passos lentos, transido de frio e com o coração num farrapo.
Outras vezes trabalhava,
trabalhava febrilmente, sem descanso, o dia inteiro, numa exaltação de todos os seus nervos, numa
ânsia de todo o seu ser, como se
quisesse matar às marteladas qualquer ave de rapina que sentia roer-lhe as entranhas. E então fazia da pedra tudo quanto
queria! O granito duro e informe parecia
uma pasta mole, uma cera obediente, que ele talhava ao seu bel-prazer. Nesses dias, alheado de tudo, sem
levantar a cabeça, enquanto a canção dos
martelos ressoava alegre na oficina, fazia surgir de sob as suas mãos privilegiadas de artista, animadas por um
mágico sopro de prodígio, as rendas mais
subtis, as mais elegantes grinaldas, os mais complicados florões. Na figura, então, era assombroso e os corpos
eram uma maravilha de graça. Ninguém
dispunha com mais arte as pregas de um manto, ninguém era capaz de enrolar com mais elegância as curvas
caprichosas, as ondulações envolventes
das roupagens roçagantes, em volta de um corpo de mármore cor-de-rosa. Todos os simbólicos vultos dos túmulos,
a Saudade, a Fé, as Musas e os Anjos,
todos lhe saíam das mãos, não se sabia por que acaso, com o mesmo perfil finíssimo, o mesmo sorriso
sinuoso, os mesmos contornos delicados
de um rosto que o obcecava e que o trazia arredado do resto do mundo, com os mesmos corpos esbeltos de
adolescentes puros talhados em linhas
rígidas e hieráticas. Parecia que a pedra tinha a consciência da sua alta missão, o orgulho de, bruta e informe,
realizar um sonho, ser transformada, por
um raro prodígio de amor, numa Maria del Pilar que a paixão de um pobre divinizara.
E assim passaram largos anos. O
extraordinário é que ninguém deu por isso. Os companheiros de oficina, embora o achassem
bizarro e com uma grande telha, como
eles diziam, nunca imaginaram, nem por sonhos, uma coisa daquelas. A sua grande paixão passou
despercebida aos olhos de toda a gente.
A não ser a mãe, que as mães
nunca se enganam, porque têm os olhos no coração, ninguém viu coisa alguma. Também o
caso era de tal forma extraordinário! Um
Ruy Blas, canteiro!... Tão grande era a loucura, que só outro louco a poderia conceber no seu cérebro
delirante.
Quando Manuel Garcia viu pela
primeira vez a princesinha loira, através das grades doiradas do seu jardim distante, teria
quando muito dezessete anos e ela treze.
Era uma rapariguita travessa e estouvada, alegre como um céu de Abril; corria pelo jardim como uma corça
selvagem, tranças loiras como uma cascata
de ouro pelas costas; dava uns gritos agudos como um pardalinho novo que está contente com a vida mas que não sabe
cantar; as suas gargalhadas eram frescas
como o riso de um regato a descer um monte. Aos olhos de Manuel Garcia, Maria del Pilar, no seu jardim,
no meio das amigas, era assim como um
sol a iluminar os seixos escuros e desprezíveis das estradas. Que loucura!
E em tantos, tantos anos, nunca a
loira fidalguinha olhara para ele. Não, ele não se lembrava de um só olhar, de sentir
poisados nos dele uma só vez, de fugida,
aqueles grandes olhos verdes-claros que o endoideciam de amor! Se ela tivesse olhado para ele ao menos uma vez na
sua vida! Mas não... no seu mesquinho
tesouro de apaixonado, não encontrava nada, por mais que procurasse, por mais que remexesse, que se
assemelhasse ao doce fulgor de duas
límpidas esmeraldas claras. Esse prodígio, esse milagre, não se dera nunca! Um olhar! Mas se ele tivesse achado, no
seu mesquinho tesouro de apaixonado, um
só olhar de Maria del Pilar, não estaria decerto ali rígido, inerte, gelado!
O seu mesquinho tesouro continha
apenas as parcelas de ouro do seu riso, o encanto do seu alado pisar de alvéloa, a
embriaguez do seu perfume, a cor dos seus
vestidos, o deslumbramento da sua presença, da sua recordação intangível e sagrada, do seu ser, dela, Maria
del Pilar, princesinha loira, que, com
as suas mãos de boneca, o empurrara para a cova sem o saber, fizera do rapagão moreno e cheio de vida, que ele era, o
trapo que ali jazia insensível e inútil.
De tangível e concreto, apenas
uma rosa que ela deixara cair uma manhã na rua. Ia num grupo de rapazes e raparigas;
vestida de branco, calçada de camurça
branca, os cabelos, de fartos caracóis loiros, cingidos por uma larga fita branca, ia jogar o tênis a um palacete
vizinho. Levava na mão uma soberba bryce elian, de um lindo róseo
acarminado, acabada de colher, de passagem, no jardim. Com um golpe de raqueta atirou-a,
de brincadeira, à cara de um rapaz alto
e loiro que, desastrado, a não conseguiu agarrar. Quando se afastaram e o vestido dela não foi mais que
uma mancha clara na estrada cheia de
sol, o pobre canteiro foi apanhá-la à rua com o carinho de quem levanta do chão um bebê magoado, lavado em lágrimas e com
o vestidinho sujo. Entrou na loja e,
delicadamente, com uma paciência infinita, com mil cuidados, lavou-
a pétala por pétala, tirou-lhe
todo o pó, e guardou-a sem sequer se atrever a beijá-la.
Maria del Pilar, tão perto,
estava longe, mais longe que as terras longínquas de além-mar, mais longe que uma estrela cadente,
que nem o pensamento a pode seguir pelos
céus fora, mas estava ali; não era dele, não, meu Deus! não a podia cobiçar sequer, mas não era de ninguém.
Vaso sagrado por onde nenhuma boca
matara a sede, templo que nenhuns passos tinham profanado ainda, torre de marfim do seu amor a que nenhum
olhar subira, não era dele, não, mas era
a Pura, a Intangível, era A que não era de ninguém'.
E Manuel Garcia ia vivendo,
talhando a pedra, sereno e mudo, numa castidade
absoluta, como um monge ascético dentro da sua Cartuxa de sonhos, com a inconsciência de uma criança que
vai, numa noite sem lua, costeando um
abismo a rir e a cantar.
Mas um dia — dia maldito aquele!
— a notícia do casamento de Maria del Pilar
redopiou vertiginosa, como um súbito ciclone, arrastando tudo na sua pobre existência de simples, cheia, a
transbordar, das migalhas de um sonho. Assombrou-o.
Quando o soube, na oficina, ficou pregado ao chão, a tremer, na desvairada tremura de uma árvore velhinha
sacudida pela nortada. À volta, os
camaradas, o avô, comentavam tranquilamente o caso, continuando, indiferentes, a sua tarefa. A filha do fidalgo
tinha sido pedida em casamento por
aquele rapaz espanhol, D. João Manuel, que a acompanhava sempre por toda a parte. Um casamento de estrondo!
Fidalgos, novos, ricos, bonitos... que lindo
par! «Que lindo par!», repetiu uma estranha voz de sonâmbulo. E os muros, as pedras, começaram a dançar-lhe,
diante dos olhos esgazeados, a dança
macabra do seu destino perdido. Pobre poeta! Com o brutal encontrão, acordou sobressaltado do êxtase de tantos anos
e deu com os olhos na miséria da vida!
Tinha adormecido criança, despertou homem feito e, espavorido, estendeu as mãos para agarrar toda a sua linda
adolescência inverossímil e quimérica
que lhe fugia. As estátuas, os companheiros, os blocos de pedra, tudo redopiava em volta numa vertigem que não
conseguiu vencer. Apoiou-se pesadamente
à pedra que trabalhava, e, muito pálido, foi escorregando devagarinho até cair como um boneco a quem um
bebé, curioso e azougado, tivesse
cortado os fios da sua pobre existência de fantoche, que vivera de uma mentira uma vida que não passara de ilusão.
Quando voltou a si, circunvagou
os olhos pelo quarto e viu a mãe, encostada à cabeceira da cama, fitando-o. Que estranho
poder de videntes tem uns olhos de mãe!
Manuel Garcia compreendeu que o seu segredo não era só dele, mas teve vergonha, corou, desviou os olhos. A mãe,
com o pudor receoso de quem surpreende
um mistério inquietante, calou-se, abafando um suspiro.
E a vida continuou. Manuel, cada
vez mais encerrado no seu gelado mutismo, começara a viver uma vida desregrada. A sua
casta mocidade afundava-se num lodaçal
de vícios. De olhos fitos no topo do seu calvário distante, onde numa hora de suprema coragem encontraria a morte
redentora, atolou-se, na medonha subida,
em todos os charcos do caminho. Há quem suba a descer. Há almas privilegiadas e únicas que nada têm a
ver com a lógica absurda das leis
humanas. As turbas inconscientes e boçais lançam, à face de certos entes, anátemas que o céu, se o há, não deve perdoar.
À gargalhada insultante deste mundo
responde a infinita serenidade do que fica para Além e que os olhos míopes não veem. Manuel subia a descer...
Quando o que lhe ficou para trás
não foi mais que um ponto perdido no desapego
de tudo a que chegara, quando conseguiu finalmente arrancar de si os pedaços irreconhecíveis do seu sonho
desfeito, Manuel Garcia olhou face a face
a vida, e sorriu. Oh, o sorriso de desdém dos que querem morrer! Quem foi que se atreveu a dizer alguma vez, quem
foi que ousou traçar num papel as letras
da palavra cobardia, falando de um suicida?! Oh, a medonha coragem dos que vão arrancando de si, dia a dia, a
doçura da saudade do que passou, o encanto
novo da esperança do que há de vir, e que serenamente, desdenhosamente, sem saudades nem esperanças,
partem um dia sem saber para onde,
aventureiros da morte, emigrantes sem eira nem beira, audaciosos esquadrinhadores de abismos mais negros e mais
misteriosos que todos os abismos
escancarados deste mundo! Quem foi que um dia ousou lançar a um papel as letras ultrajantes da palavra
cobardia, essa suprema afronta, esse insultante
escarro, à face dos que querem morrer?!
O que lhes foi preciso de coragem
desdenhosa, de altiva serenidade, de profundíssimo
desprezo, às almas que partiram por querer!
Manuel Garcia lutou um ano, e
conseguiu vencer a vida, vencendo-se. Ao
pavor do fim, ao medo do sofrimento, ao horror do gesto, daquele gesto
que é ainda consciente e que vai deixar
de o ser, o gesto para além do qual a nossa vontade, quebrada, não tem poder algum, que é
o último antes do pavoroso mistério, a
tudo isto, a todos estes fantasmas contra quem lutara um ano inteiro, respondeu ele, um dia, com um
sorriso... e que sorriso!...
E foi assim que na penumbra
fechada de um crepúsculo de Novembro, Manuel
Garcia meteu uma bala no peito, depois de escrever num papel frases de amor a uma princesinha loira, depois de lhe
ter traçado o nome, o lindo nome que
cheira a jardins de Espanha, num quadradinho branco, onde as últimas lágrimas dos seus olhos caíram e
secaram.
No quarto do morto, agora, só se
ouviam os soluços miudinhos do velho, sentado
aos pés da cama. A mãe tornou a pegar na carta, cuja brancura, sobre o vermelho do pano de ramagens, a hipnotizava.
Pensativa, olhou-a longamente, tornou a
pousá-la. Foi à janela, abriu-a, e debruçou-se no abismo da noite. A rua era um poço sem fundo. A
chuva, que até ali caíra delgada como
uma bruma, começava a engrossar. O palácio dos Ataídes, lá em baixo, na volta para a estrada, faiscava de luzes.
Eram dez horas. Começava o baile, o grande
baile que os pais da noiva ofereciam a todos os grandes nomes da capital, pelo casamento da filha. Maria del
Pilar tinha casado, doze horas antes, na
capela do palácio.
A pobre mãe abafou um soluço,
voltou-se, e olhou o morto. A débil chama das velas, que o vento tornava movediça,
traçava-lhe no rosto sombras e clarões,
tirando-o da imobilidade da morte para o lançar na animação fictícia da vida; a olímpica serenidade dos libertados
transformava-se: a boca parecia sorrir
num esgar de desdém, os olhos pareciam abrir-se e pestanejar como se lá dentro as pupilas quisessem ver. Ver o quê,
meu pobre adolescente que morreste
velho? Ver o quê?... A vida que numa grotesca ironia te fez nascer na casinha de um pobre, a ti, a quem o destino
cego dera a alma coroada de rosas e
verbenas de um grego doutros tempos?! Tudo em ti era beleza, poesia e graça... e tudo isso a vida, miserável e
trocista, vestiu com o cotim do teu pobre
fatinho da semana, com o teu ridículo e mesquinho fato novo dos domingos! Quem dirá a estes troçados da vida o
porquê do seu destino, a razão do engano
que os fez nascer pastores, filhos de reis!...
A mãe tornou a debruçar-se sobre
o negrume da rua. A chuva, agora, caía em enxurrada, como se o céu quisesse lavar o
mundo de todos os seus maus pensamentos
e ações. Buzinas de automóveis... um grito... passos que se esvaíam na sombra... Ao longe, um cão perdido
uivava a miséria de ter nascido sem
dono. Com os olhos fitos nas luzes do palácio, na fila ziguezagueante dos autos donde desciam sem
cessar vultos negros, que se sumiam no
pórtico todo iluminado, como a entrada de um palácio de um conto de fadas, a cabeça reclinada sobre o
rebordo da janela, a mãe pôs-se a cismar.
Que dois mundos tão diferentes! A noite e o dia, a luz e as trevas... Aos seus lábios resignados subiu a revolta de
uma blasfêmia; o coração esmagou-se-lhe,
num arranco, de encontro ao seu magro peito de velha. Teve vontade de uivar como aquele cão sem dono, de
se deitar na lama da rua, de bruços, com
a boca na terra, rastejando, como um bicho, amortalhada na frescura daquela chuva que continuava a
encharcar tudo, como se para além das
quatro paredes daquele quarto o mundo acabasse num novo dilúvio. Ao seu coração subiu de repente o desejo, tenaz
como uma ideia fixa, de catástrofes
inauditas; os seus olhos traíram a visão de casas a desmoronar-se, de labaredas a flamejar, de mãos de assassinos
e de incendiários abrindo todas as
portas. As suas mãos estenderam-se também empunhando o facho incendiário, brandindo o punhal assassino nas
sombras da noite. Que não ficasse pedra
sobre pedra, que os campos fossem rasos, secos, rapados por todas as pragas que sobre eles caíssem em
maldição! E a última visão do seu sonho
criminoso e insensato foi a visão do mundo desaparecido, engolido pela vastidão de enormes oceanos e, à tona de
água, a boiar, o esquife onde o filho
dormia repousadamente, embalado em cadência pelo ritmo das ondas!
Soltou um suspiro como se lhe
arrancassem o coração. Todos os seus longos anos de renúncia e sacrifício vieram em
procissão, das sombras da noite, acalmá-la,
exorcizando os pássaros negros das suas trágicas alucinações, abatendo o pendão sangrento da revolta. Passou
a mão pela testa, pela cabeça branca que
a chuva molhara. De repente, lembrou-se da carta que estava em cima da mesa, da carta que o filho tinha
escrito a uma Maria del Pilar que àquela
hora, vestida de branco, dançava nos braços doutro. Pareceu-lhe ver nos olhos do filho uma lágrima; olhou
atentamente, estremeceu e, numa súbita
intuição, estendeu os braços para a cama onde o filho jazia, murmurando:
«Não, meu filho, não... Eu sei.
Que loucura! A carta... eu sei, a carta não é para a Maria del Pilar que a esta hora dança,
vestida de branco, nos braços doutro. Não...
Eu sei. A carta vai ser entregue à outra, à pobrezinha por quem tu morreste. Eu sei. Cala-te. Não chores. Está
sossegado.»
Pareceu-lhe então ver na boca do
filho um eflúvio de sorriso. Sim, era isso, não a enganara a sua intuição; era isso que
ele queria. A carta era para a costureirinha,
para a morena andaluza, de rosto tostado de gitana; pois para quem havia de ser? Ele não conhecia outra
Maria del Pilar!...
E, devagarinho, sempre a olhar a
boca do filho onde o sorriso se acentuava mais luminoso e enternecido, foi à mesa, pegou
na carta, tornou a pousá-la e, a tremer,
escreveu o resto do nome que lá faltava, o nome plebeu e obscuro de uma triste costureirinha que passara a vida a
amar sem nunca se julgar amada: Sánchez.
Poisou a pena, olhou o morto com
uns olhos onde havia ainda uma sombra de
inquietação, uns olhos interrogadores e tristes; a pouco e pouco, porém, o olhar foi-lhe tomando uma grande expressão de
serenidade, e a sua boca pálida e triste
de velhinha respondeu com um sorriso ao sorriso do filho.
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Nota:
Florbela Espanca: "As Máscaras do Destino" (1931)
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