ANOITECIMENTO
Anoitece no meu
coração coberto de ervas e,
na luta desigual,
cresço com a miséria.
Trens trazem
minérios de rumor e tristeza.
Além da janela,
homens caçam a manhã,
enterram no lodo o
tempo da esperança
e cavam fundo até
aparecer o osso do mundo.
Nem mesmo as
minhas imaginações servem
na tarde ferida e
de tijolos exaltados
para inventar
suposta vida
que não seja
experiência sem retorno.
A vida como carro
desgovernado
a mais de duzentos
quilômetros por hora,
em noite chuvosa,
numa estrada não sinalizada.
Se ao menos
soubesse
o ponto de chegada
dos lobos,
não me
atormentaria com o tempo
que não tem começo
nem fim.
LIÇÕES
Existir é a prova
dos nove.
Um dia me cansarei
de ser
a nota dissonante
e abandonarei a
lição de casa,
a lição da rua, a
lição da vida,
oh, Deus,
todas as lições
que nunca aprendi.
Lição se aprende
com o corpo.
O corpo tem sua
matéria,
sua disciplina,
seu passar de ano.
A natureza ensina
com galhos,
cada folha que cai
é um ponto.
Por toda parte há
as esquinas das vírgulas.
Tenho medo do abc
das torrentes,
da aritmética das
montanhas,
da História das
minhas dores.
Minha dor é um
fruto
que, amadurecido,
não cai
e vai apodrecendo
o galho,
o caule e a raiz
tormentosa.
BANDEIRA
Minha bandeira é
não dar bandeira.
Minha bandeira é o
toque de silêncio,
a morte do soldado
desconhecido
que sou.
Quem depositará
flores
neste monumento à
minha batalha?
Minha ordem não
tem progresso
POEMA BARROCO
Quem carrega a
morte consigo
traz duas formas
de vida,
quem leva a vida
morrendo
quando chega a
verdadeira
por fim encontra
unidade na derradeira.
Divide-se o corpo
em dois,
uma parte já há
muito não servia,
a outra é apenas
conteúdo
para o continente
ataúde.
Esta é a multidão
mais desprezada,
não se observa na
rua
o cemitério
vertical das almas oxidadas
o campo santo das
avenidas
o movimento distrital
das almas no
trânsito
cada qual em seu
carneiro
cada qual em seu
carro funerário.
TORRE
Todas as torres
são de Babel.
Na minha cidade
todos os edifícios
são torres
habitadas.
Os edifícios falam
línguas diversas.
As torres quando
se exibem
colocam seus
vestidos de lâmpadas.
As torres morrem
em pé
e, de pé,
soberbas, apodrecem.
Todos os homens
são torres
que vagam
babélicos.
Uns são torres
inertes,
outros são torres
escondidas
na névoa da noite
– a luz vermelha
no alto não
é alerta, mas o
alto
medo de fazer da
vida
uma viagem sempre
em alerta.
Quem quer ascender
sofre a vertigem
da torre:
em vez de abismo
para baixo
são abismos para
cima.
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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Abril-Maio-Junho 2009 - Ano XV - Nº 59 - (Academia Brasileira de Letras - ABL)
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