CONTO DE NATAL
Há de passar talvez das onze horas. A noite
afinal pôs-se serena, não bole vento, as solidões escutam... — é como se a
Terra inteira estivesse à espreita de ouvir tocar o sino para a missa. Pela
estrada que passa entre Vila de Frades e Vidigueira vem descendo uma velha
arrumada ao seu bordão de pobrezinha. O rastejo dos passos dir-me-ia porventura
a idade dela: o luaceiro entanto, nuverinhado em céu de bruma, apenas deixa
aperceber a silhueta curvada para a terra, com um pedaço de manta sobre os
ombros, o saco às costas, e as canelas sem meias, entrapadas em ligaduras
repelentes. Ao pé da ponte, a mulher pára. Por detrás daqueles choupos, lá em
baixo, à beira-rio, havia noutro tempo um forno de tijolo, agora pelo Inverno
abandonado. Ela adianta-se, procura... E a estrada passa de alto, ladeada de
acácias e eucaliptos. E derredor, nos plainos baixos, as escavações do barro
espapam-se nas águas da cheia, em lúgubres lameiros, cujo ervançum dá
residência a uma colônia rouca de sapos.
A velha estende o bordão para a barreira,
procurando vereda num chão firme, em cujo barro os seus pobres sapatos rotos
não mergulhem.
Malgrado o embrutecimento da idade, o frio, a
fome e o desejo de amesendar para ali, no forno de tijolo, longe das apupadas
dos cães e dos rapazes, uma nostalgia poética ergue-lhe a vista, e então
recorda-se, e quer circunvagar os seus cansados olhos para o largo. E uma
esquelética paisagem de Dezembro, nua e cansada, quando já a natureza se
alquebra toda em desalentos e os troncos das árvores parece que estrebucham,
como os famintos de Londres, numa bebedeira de ódio, truculenta. No primeiro
plano há terras de vinha, olivais muito negros e colinas redondas com moinhos.
Para as bandas da Vidigueira risca a neblina um traço negro, que deve ser a
torre do relógio — depois, à direita, uma mancha de cal, o cemitério.
Lentamente, ã medida que o raio de visão se prolonga no horizonte, os outeiros
complicam-se, as formas perdem a sua delineação traço por traço, e toda a
cordilheira dir-se-ia pintada numa sucessão de panos de teatro, a cinza-claro,
e gradações mais e mais desvanecidas.
Oh, que sossego! Uma divina essência, abstrata,
etérea, vem oscular as urzes e as levadas. Doseio das negridões de vez em
quando, brotam suspeitas de formas vagabundas, a branco-cinza: esboços de
sonhos, almas erráticas que debandam, noitibós que se acolhem, friorentos na
noite, às pedras das ruínas... Vem um acorde triste dos cardos secos da margem
dos alqueives, dos pilriteiros sem folhas e dos zambujos frugais das
ribanceiras. E as águas do ribeiro troam nas pedras, por entre as canas e os
choupos, cujas varas se esfarripam nos ares, tísicas e brancas, com um ou outro
corvo por folhagem.
Do outro lado são semicírculos de terras e
valados, com freixos altos em silhueta no tom madrepérola da Lua, e
alternativas de negro e zonas claras, que dir-se-iam feitas num desenho a
carvão, com lápis prateado.
Todas aquelas brancuras vêm do extremo
horizonte aos olhos da mendiga, por suspeitas, desagregadas das formas,
abstraídas do resto da paisagem, e todas poderiam interpretar-se como efeitos
de neve, de luar, de água dormente, tanto a neblina enche de fantasmagorias a
noite e presta uma alma incoerente àquela cenografia de balada.
Há porém no sopé daqueles montes um ponto que
a velha ansiosamente procura. É o pequenino convento de capuchos que alveja da
banda de Vila de Frades, derrocado, entre oliveiras. Lá corre o muro da cerca, até
se perder num grupo de ciprestes. Naquela cerca, já depois de profanado o
conventinho, era antigamente o cemitério: um cemiteriozinho de aldeia, com
malmequeres e figueiras bravas, crânios à solta, e nenhuma cruz ou mausoléu
comemorando a jazida de qualquer. Ali repousam os parentes e amigos da pedinte,
pais e irmãos, filhos e netos: só ela, errante de povo em povo, sem um afeto
que a proteja, sem uma boca amiga que a console, vai pelo mundo a mendigar de
porta em porta!
Vinte e dois anos passaram depois que ela
abalou da sua terra, e quatro ou cinco vezes lhe sucedeu passar ali como
estrangeira, com os olhos no chão, corrida de vergonha, vendo a igreja aberta e
tendo medo de entrar, passando ao resvés das casas ricas, e arreceando-se dê
pedir esmola à criadagem: e depois, ao toque das trindades, noite fechada,
detendo-se a escutar de longe os conhecidos rumores do lugarejo. Oh, essa
chafranafra da volta do trabalho, com guizadas de mulas tintinando, estrupidas
de carros desferrados, e as boas-noites trocadas, os cavadores cantando em coro
pelos caminhos, a crepitação da lenha nas lareiras — e depois, no bocal das
fontes, o mulherio que pousa os cântaros e entre risotas comenta as picarescas
histórias da semana!
E quando numa melancolia doce o dia morre e
grandes nuvens esmagam no poente as vermelhidões crepusculares. E quando uma
exalação envolve as cúpulas das árvores, e das terras molhadas claridades
efémeras fosforejam, e uma voz corre e suspira à flor das ervas.
Pois acabou-se, acabou-se! E a triste da
mulher desce a barreira, agredida por tudo, as recordações, a noite, o frio, a
fome... Não, não repousará entre os outros, no pobre cemitério da sua aldeia,
em que a voejam corujas e francelhos; a casa onde nasceu foi demolida;
arrancaram a vinha que o mando plantara, há cinquenta anos, com solicitudes de
bom cultivador; e ninguém na vila já se recorda da Josefa, da viúva do Pratas,
mãe de uma filha bonita que anda agora nas feiras, de cigarro, e passa o
Inverno em braços de soldados, numa viela infame de Estremoz. Ao cercar-se do
forno, uma claridade viva a surpreende. O alpendre ficava do outro lado, numa
descaída brusca do montículo, e ali está gente, há falas de homem... — ai pobre
velha!, aonde há de ela ir passar a noite àquela hora?
Por um momento ainda ela faz um passo para
costear o forno e ir pedir agasalho à fogueira de quem quer se acoite no
telheiro. Mas logo em seguida reflete, Que qualidade de gente será?
Recebê-la-ão com caridade? Um vago terror se apossa dos seus membros: pé ante
pé busca afastar-se... Mas como tem as pernas e os braços regelados! Um torpor
lhe paralisa os movimentos, anestesia-lhe os dedos e pesa-lhe nas pálpebras com
sonolências de chumbo. Nos campos paira um sossego terrível e perverso, em cuja
abóbada só respondem os latidos dos cães, pelas malhadas. A geada branqueia o
alqueive das courelas, queima os favais. E a claridade no alpendre é cada vez
mais confortante, milhares de faúlhas sobem pelos ares, na fumarada da lenha úmida
de oliveira, que estala e arde em flamazinhas rápidas e alegres. Ela então
cede, resolvida a entrar na zona iluminada e a pedir agasalho aos forasteiros
que a anteciparam.
Chegara quase à boca do telheiro, oculta
ainda por trás de um grupo de árvores, perto do rio — quando de repente estruge
um grito largo, começado em surdina e sacudido depois em frenéticas uivadas,
com uma expressão de sofrer dilacerante.
***
Ao primeiro berro, um homem que estava
acocorado por diante da fogueira salta de golpe e fica um instante secado, a
escuta da noite, bebendo os rumores do largo, enquanto desenrola a cinta da
cintura. Aquele berro, a velha conhece-o, é horrível e terno, angustioso e
deliciado, e toda a mulher que o solte começa esposa e acaba mãe.
Havia pois no alpendre uma parturiente a
reclamar os seus cuidados. O desejo da velha era correr, mas do seu canto de
sombra a pobre hesita, vendo homem girar pelo telheiro a passos furiosos, ir,
voltar, acachapar-se instantes sobre o vulto que bole lá no fundo do alpendre,
em estremeções aflitos: e enfim, jurar, bramar, ordenar-lhe silêncio,
prometer-lhe pancada, exasperado cada vez mais, por aquela algazarra que pode
deitar tudo a perder.
Há um momento em que eles julgam ouvir um
murmúrio de rodas, afastado, talvez uma sege que passa, levando alguém à missa
de Natal. Aqui a raiva do homem não conhece limites, e ei-lo corre à mulher de
punho armado, prestes a dar-lhe, caso prossiga o berreiro escandaloso. Vem com
efeito na estrada uma berlinda, com guinadas nas mulas e vermelhidões de lanternas
entre as árvores. E o homem precipita-se, enclavinha os polegares assassinos
sobre a garganta da mulher.
— Calas-te ou morres!
E a sua voz surda, pequena, sacudida, humilde
quase, vem explodindo e crescendo, até bravejar num rouquejo de cólera exaustinada.
— Cala-te, diabo! Cala-te, estafermo!
A mãe, coitada, mal pode estrangular os urros
que a expulsão lhe arranca, em dores medonhas, como se trinta mãos brutais lhe
estivessem arrancando as vísceras, ligamento a ligamento. Já a berlinda passa,
ao trote rápido das suas quatro mulas espanholas... Um ou outro corvo solta nas
faias o seu grasnido estremunhado, e outra vez a paisagem fica muda, entre as
brumas e as sombras, o fragor da ribeira e a uivada dos cães pelos currais. É
esse o instante de a mendiga fazer um passo, abandonando o círculo da sombra,
prestes a dar-se, toda cheia de celestes compaixões por essa mísera mulher que
a desgraça forçou a vir parir numa ruína, sem ao menos ter a aquentá-la, como a
Virgem, o hálito da vaca e da jumenta e as solicitudes ideais do carpinteiro.
Mas tudo aquilo é rápido e fugace. Os gritos
da mulher tinham cessado: lento e sinistro, o homem voltara a acocorar-se perto
da fogueira, com uma expressão de campônio perverso, meio animal, meio humana,
onde o brilho dos olhos punha uma sagacidade extraordinária. Ele despira a
jaqueta, tem as mangas da camisola arregaçadas, as mãos sujas de sangue.
— É rapariga ou rapaz? — disse a mulher.
Ele estivera algum tempo a ligar-lhe co’a
cinta o ventre dolorido: não retrucou. Dera na torre da Vidigueira a
meia-noite, e em Vila de Frades logo começou a tocar para a Missa do Galo. O
cerraceiro morrera pelos campos e as cumeadas do céu, azuis e vastas, refulgiam
de estrelas e luar. Mas nem por isso a paisagem tinha ficado cristalina. Coisas
opacas brotavam dos terrenos, formas dormentes, que pareciam vaguear nas
ouvielas moles dos farrejais.
Perto, nos choupos, havia gestos de angústia
e imploração: saiam vozes da água, preguiçosas e místicas como trenos, e certas
troncagens tinham expressões humanas na noite, que perturbavam de morte o
arregaçado.
Outra vez então aquele homem se ergueu com
modos lentos, veio escutar. Os sapos tinham-se afinal calado nos algares,
pairavam no sossego as asas áfonas dos mochos dando espirais de roda ao forno de
tijolo. E, malgrado o frio, aquela noite de Natal vinha suave, com poucas cores
mas delicadas, e cambiantes de céu, que o vento uma após outra transmutava.
— Dá-me a criança — disse a mulher. —
Quero-lhe dar mama, não me morra de frio a pobrezinha!
Ele tinha nas mãos o pequeno ensanguentado,
que vagia de frio, conjugando os beicitos numa sucção de instinto, que devera
ter feito sorrir de enternecido um outro pai. E saiu do telheiro, o pequeno
pendente da manápula, o cento torvo, o ar facinoroso.
A velha, vendo-o, estendera-lhe os braços do
seu canto: e ele vagueou assim por aqui, por além, entre os troncos das faias e
os silvados, atascado na lama, mas sem poder estar quieto em parte alguma, e
como se pela marcha desse vazante ao frenesi mental que o devorava.
Havia à beira de água um pedregulho. Ele
deteve-se. Instantaneamente a sua cara envelhecera, leques de rugas
radiavam-lhe os cantos das pálpebras, sobre a pele da testa e da faceira, e a
lívida boca, agora seca, súplice quase, tinha sombras de angústia às comissuras
e convulsivos tremores nos beiços desbotados.
Mais uma vez lançou a vista ao derredor, numa
suspeita atroz de o estarem vendo, e ergueu o braço, com o pequeno seguro pelos
pés, como um coelho... Porém, a luz do luar incomodava-o.
Tornara para trás, desalentado, furibundo
consigo e resmungando alto imprecações. Mas veio-lhe de repente uma veneta e
bruscamente, com um resfolgar de bezerro, escavacou o pequeno contra a rocha. A
pancada dera na pedra um som de melancia podre, esborrachada em surdina, baça e
turgente. Foi um momento, aquilo, e todas as coisas voltaram ao êxtase hibernal
de instantes antes.
O homem ainda esteve curvado um pouco de
tempo sobre os atasqueiros glácidos do rio — uma solenidade pairava ao fundo do
espaço —, até que afinal saiu das ervas, com o cadáver suspenso pelos pés, todo
sangrento, um cadaverzinho de infante recém-nado, roliço e roxo, cuja boquinha
ria de inocência e cuja alma devera estar-se incorporando àquela hora no
cortejo de eleitos que todos os anos vem, com o Menino Deus, refazer na crença
dos simples a suavíssima lenda do Natal.
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In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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