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AS JANEIRAS
As Janeiras!
Se já restava pouco do madeiro do Natal,
quando os ganhões chegavam do trabalho, arrumada a copa e a apeiragem, iam
buscar um madeiro que o meu pai tinha escolhido no monturo da lenha grossa, e
colocavam-no na chaminé, arrumado à parede. Este frete era geralmente pago com
um copo de vinho, e bem o mereciam os desgraçados, porque alombavam com um
madeiro pesando umas poucas de arrobas. Cozia-se sempre neste dia, e a última
fornada de pão tirava-se já noite escura, às vezes com a ganharia à mesa para a
ceia.
A cada janeireiro, homem ou mulher, dava-se
um pão; aos jovens dava-se metade ou um quarto, conforme o seu tamanho, e às
vezes, já no clarear da madrugada, havia necessidade de reduzir a esmola, pois
não chegava para tanta gente o pão cozido. Tal havia que apanhava duas, três ou
quatro esmolas, incorporando-se cm diferentes ranchos, e o mesmo rancho chegava
a cantar duas vezes, mudando as vozes.
— São os mesmos que cantaram há bocadinho.
Quem ia levar a esmola, geralmente era uma
criança, não se dispensava de dizer, mesmo que lhe não encomendassem o sermão:
— Vossemecês ainda não há nada de tempo que
aqui estiveram. Se cá voltarem, não levam esmola.
Que não; vossemecê está enganada, a gente
chegou agora mesmo da vila, e ainda não cantamos em mais monte nenhum. Se quer
ver o que trazemos...
Nenhum rancho denunciava outro rancho, embora
nem todos fizessem a mesma coisa, a muitos repugnando uma tão descarada fraude,
tanto mais que nela se envolvia Deus Nosso Pai, invocado a cada instante:
Lá vai uma, lá vão duas
Por cima do seu telhado.
Deus lhe dê muita fortuna
Ao pão que tiver semeado.
Se a noite estava escura, não se distinguiam
as caras, e se havia um luar discreto, os homens escondiam a cabeça na manta,
as mulheres no xaile ou na mantilha, e assim realizavam a mistificação. Quando
o criado que distribuía as esmolas avisava de que o pão, em menos de nada, estaria
acabado, meu pai ordenava que dois ganhões dessem uma volta à roda do Monte,
fiscalizando os ranchos, e era como se aparecessem guardas fiscais num campo
onde manobrassem contrabandistas.
Lembro-me como se fosse ontem, e vão passadas
umas poucas de dúzias de anos...
O compadre Cara-Rota, que era o abegão da
casa, deixara-se ficar no Monte, para cantar as janeiras, e como aparecessem,
já noite cerrada, os vizinhos da Bispa, o compadre João Catarino, o primo
Francisco Manuel, que era um grande tocador de viola, e o lavrador da Granja,
que era um grande tocador... De garrafa, armou-se uma mesa de jogo, à pedida,
perdendo-se, nominalmente, as melhores herdades do concelho.
A certa altura o maricas do Narciso, que
andava no serviço das esmolas, declara que estavam cantando uns homens que já
tinham cantado duas vezes, e como ele lhes dissesse que escusavam de cantar
porque não apanhavam mais nada, eles ameaçaram-no de lhe bater, chegando um
deles a atirar-lhe um sopapo, que por sorte o não apanhou.
— Estão bêbedos, com certeza.
Disse meu pai ao compadre Cara-Rota:
— Tenha paciência, compadre, dê uma voltinha
lá por fora, a ver o que há.
O compadre Cara-Rota saiu, levando na mão um
fueiro, e quando chegou à porta do Monte ainda os homens cantavam. Eram quatro,
um já entrado em anos.
— Por os modos vocês tomaram as janeiras de
empreitada, hem?
Os homens ouviram, mas não fizeram caso, e
continuaram a cantar.
O compadre Cara-Rota foi-se aproximando, e
como vissem que ele não estava com as mãos abanando, calcularam que podia
armar-se sarilho se continuassem a cantar, e que, em todo o caso, mais esmola
não apanhavam. Um deles, o mais pimpão, desenrolando-se da manta, e pondo ao
ombro o bordão, disse para os companheiros:
— O melhor é a gente ir-se embora. A esmola
que nos tinham dar, que a metam...
Já fora da calçada do Monte, virando-se para
trás, disse ao compadre Cara-Rota, desafiando-o com insolência:
— O amigo não canta, mas pode ser que tenha
as goelas secas. Se as quiser molhar, venha com a gente até ali à estrada, que
ninguém lhe faz mal.
— Vão lá andando que eu já os apanho.
Entrou na casa dos ganhões, trocou o fueiro
pelo cacete mais forte que lá encontrou, e ainda os janeireiros não tinham
chegado à estrada, já ele lhes falava desta sorte:
— Qual de vocês é que tem a borracha?
— Somos nós todos — respondeu o que o
desafiara.
Palavras não eram ditas, cai-lhe na cabeça
uma bordoada que o fez ir a terra. Entraram todos na refrega, está bem de ver,
mas o compadre Cara-Rota, ágil como um palhaço, não se deixava tocar, e das
cacetadas que despedia nenhuma caía no chão. Durou a luta poucos minutos,
saindo dela um dos janeireiros com a cabeça rachada, outro com braço partido, e
os outros muito bem zurzidos, mas sem nada quebrado.
— Então os homens, compadre Francisco?
— Fui-lhes levar a esmola ali à estrada, e lá
se foram na paz do Senhor.
***
Era uma figura original, o compadre
Cara-Rota, meu compadre de verdade, compadre de águas-bentas. Ninguém era mais
desembaraçado do que ele no seu ofício — nem mais desembaraçado nem mais
perfeito. Por este motivo tinha uma grande freguesia, chamado para todos os
Montes, e na Vila, trabalhando na sua casa ou na casa dos outros, nunca se lhe
acabava que fazer.
Era alto, desempenado, forte como as armas,
multiplicando a força pela agilidade, de uma rara agilidade, o que lhe permitia
brincar numa praça, com os touros, que eram quase sempre vacas, por forma a
entusiasmar a família. Tourada em que ele trabalhasse e o Esbandalha, era
tourada de sucesso — como quando trabalhavam em Lisboa, na Praça de Sant’Ana,
os manos Robertos. As vacas eram corridas desemboladas, e bandarilhas não se
usavam no toureio da Província.
A sorte mestra, aquela em que o compadre
Cara-Rota era exímio, na opinião de muitos inexcedível, era a do emplastro, que
consistia em pegar à testa da rês, com mel, um quarto de papel, como se fosse
um escrito num vidro. Corria como um gamo, e dava saltos como um ginasta de
circo. Gostava da pândega, mas não era homem de bebedeiras, sempre lembrado de
que tinha lá em casa uma filharada de que era o amparo e sustento. A sua grande
paixão, dominante, avassaladora, era a caça.
Dizia o meu pai:
— Homem inviccionado na caça como o compadre
Cara-Rota, não quero que haja outro.
Era muito rara a tarde em que ele não largava
cedo o trabalho para ir matar um coelho, à espera, e pelo dia adiante, se ouvia
tiros no Cabeço ou via passarem os caçadores, não se importava mais com o que
estava fazendo; metia as ferramentas na alcofa, e às escondidas, se podia ser,
tirava de casa a espingarda, e polvarinho, a patrona, e pernas para que vos
quero, até se meter na linha.
— Ora compadre Francisco, tudo o que é de
mais não presta. Então vossemecê vê que tenho aí uma parelha à boa vida, e
abala prá caça deixando o trabalho em meio?...
— Não se apoquente o Sr. Compadre que tudo se
há de fazer a tempo e horas.
E fazia. Um bocadinho de serão, um bocadinho
de madrugada e o compadre Cara-Rota tinha o serviço feito como se tivesse
trabalhado sem descontinuidade.
***
Quer fosse às perdizes, no ar, quer fosse às
lebres, na terra limpa, quer fosse aos coelhos, na charneca, poucos se
explicavam como ele — peça visada era peça morta. Gostava muito de caçar nas
pontas, e ordinariamente, em jolda, as pontas eram feitas pelos melhores
atiradores, sempre um bocadinho adiantadas, quase à espera da caça que se
safava.
De uma vez, caçando na Daroeira, ia ele numa
ponta e eu na sobreponta respectiva, pouco distante da orla do mato. Um mitra,
empurrado pela linha, sai do mato, sorrateiramente, enfia para a terra limpa,
correndo como um danado. O compadre Cara-Rota desfecha-lhe um tiro, e o coelho,
se muito corria, muito mais passou a correr, mudando de rumo, enfiando por uma
vereda, que marginava o mato. Lobrigo o figurão lá muito longe, e largo-lhe um.
Tiro, sem grande confiança em que o chumbo lá chegasse. Ouviu-se o tiro, e
viu-se o coelho, ao mesmo tempo, enrolar as patinhas, morto no meio da vereda.
Fui buscar o coelho, muito satisfeito, tanto mais que destas me aconteciam
poucas.
— Bem feita, Sr. Compadre!... Se eu tivesse
vergonha não voltava a pegar numa espingarda.
Estava eu a empiolar o mitra quando o
compadre Cara-Rota, como se lhe desse uma veneta, avança para mim, e diz com o
ar de quem procura responder a uma interrogação interior, ao mesmo tempo
dolorosa e vexatória:
— Ó Sr. Compadre, faça favor, deixe-me ver
uma coisa.
Pegou no coelho, olhou-o, voltou a olhá-lo,
apalpando-o muito bem apalpado, quase polegada por polegada, e com ele suspenso
pelas orelhas, e espingarda encostada a uma carrasqueira, disse-me pausadamente,
como se estivesse a desenvolver um raciocínio complicado:
— O Sr. Compadre atirou ao coelho um pouco de
rabo, mas do lado esquerdo; eu atirei-lhe de atravessado, pelo lado direito, ia
ele correndo, fora do mato, nesta direção... Só um podão que nunca tivesse
pegado numa arma, erraria num caso destes. A verdade é que ele não ficou no meu
tiro; meteu-se na vereda, e só quando o Sr. Compadre desfechou com ele, é que
enrolou a copa e nunca mais se mexeu. Mas faça o Sr. Compadre favor de ver — o
coelho não tem um bago de chumbo do seu lado e do meu lado tem uns poucos.
Era verdade. O coelho fora morto pelo
compadre Cara-Rota e perante a evidência irrecusável eu dei sinais de mágoa
embora não desabafasse em lamentações.
— Isto na caça, sucedem coisas que só vendo
se acreditam. De uma vez, naquelas chapadas do Monte Grande que vão bater em
Vale de Leitão, os cães ergueram uma lebre, muito adiante da linha de
caçadores. Corria que parecia que tiniu asas nas patas, o bicho do diabo. Cada
vez os cães lhe ficavam mais para trás, e quando ia chegando ao fim da ladeira,
o João da Baroa larga-lhe um tiro, e a lebre fica estendida como uma pescada. O
primeiro cão que lhe chega ao pé foi um podengo, atravessado de galgo, que
tinha o Antônio Joaquim, do correio, e que era um barra para trazer à mão.
— Foi um bago de chumbo desgarrado, que lhe
deu num sítio mortal.
Passou-se vistoria ao bicho, e qual chumbo
nem qual carapuça.
— Tinha morrido de susto?
— Não, senhor; tinha morrido de esfalfamento,
com os bofes arrebentados.
***
A última vez que vi o compadre Cara-Rota já
ele deitara os oitenta para trás das costas mas andava com desembaraço,
aprumado como um rapaz. Recordei, mentalmente, os afastados tempos em que ele
ia trabalhar ás Mesas, ainda novo e eu criança, e pareceu-me vê-lo de machado
nas unhas, falquejando à esquina do Monte, largando tudo, a inchó ou o machado,
se ouvia tiros no Cabeço.
Era muito alegre, muito divertido, sempre de
bom humor, como se a vida lhe corresse em todos os momentos fácil e vantajosa.
Não era desordeiro, mas gostava de dar a sua
castanha quando se lhe oferecia a ocasião.
De uma vez, logo no dia seguinte à feira de
Santo Antônio, apareceu no Monte um maltês, homem forte, de meia-idade,
surdo-mudo de nascença. Para estes desgraçados a esmola era sempre mais
avultada, por expressa ordem da minha mãe. Dava-se-lhes umas sopas, se as
pediam, e levavam sempre um pão e conduto, geralmente um queijinho ou
azeitonas.
— É uma grande infelicidade não ver, mas não
ouvir nem falar é infelicidade ainda maior.
Quando a criada dava a esmola ao pobrezinho,
o compadre Cara-Rota apareceu, em mangas de camisa, porque era assim que ele,
mesmo no inverno, trabalhava no ofício. Viu o maltês, estacou, e como ele se
dispusesse, recebida a esmola, a ir-se embora, desfechou-lhe esta pergunta:
— Há quanto tempo é que você é mudo?
O homem não se deu por achado, e a criada,
rindo, comenta a pergunta.
— O Sr. Francisco sempre tem cada uma! Se o
homem ouvisse, e fosse capaz de responder não era surdo-mudo... O compadre Cara-Rota,
não se importando com as filosofias da rapariga, repetiu a pergunta:
— Há quanto tempo é que você é mudo?
Ouvindo altercação à porta do Monte, acudiu
minha mãe, a inquirir do que se passava.
— Não é nada, senhora comadre. Este
desgraçado perdeu a fala, e eu vou-lha restituir com uma untura de marmelo no
lombo.
Palavras não eram ditas, deita a mão a uma
vara que estava ali peito, menos grossa que um bordão, e vá de zurzir o maltês,
como se batesse em centeio verde. A minha mãe, espavorida, queria acudir ao
infeliz, mas o compadre Cara-Rota, não atendia os seus rogos, e o maltês levava
e encolhia-se, queixando-se por gestos e por guinchos.
— Ah ele é isso! Não queres falar?... Espera
que eu já te arranjo.
Sacou da algibeira uma navalha, que abriu
dando três estalinhos, e como fizesse aceno de avançar para o homem, disposto a
cravar-lha no fole das migas, o maltês caiu de joelhos, a pedir misericórdia.
— Não me mate, pelo amor de Deus, que eu não
fiz mal a ninguém.
— Ora esta! — dizia minha mãe, mal acreditando
no que ouvia. — Quem havia de dizer...
— Dizia eu, senhora comadre, porque ainda
ontem à noite vi este pardal numa barraca da feira, muito bêbado, ameaçando
toda a gente, e desenrolando um palavreado que até envergonhava as pessoas.
***
Nos maus anos cerealíferos, todos os que eram
capazes de perder uma noite, homens e mulheres, em romaria pelos Montes, saíam
a cantar as janeiras, fazendo-se acompanhar dos miúdos pequenos, os que os
tinham, para maior colheita.
Ou porque chovesse muito e as terras se
encharcassem, afogando as sementes, ou porque chovesse pouco e as sementes
murchassem, apenas salpicando a terra de manchas verdes punctiformes, quando o
ano agrícola se mostrava assim, nada prometedor, dizia meu pai, nas vésperas do
Ano Bom: — Temos ano de Janeiras, a não ser que chova a cântaros.
Mesmo chovendo, e às vezes com um frio de
bater o queixo, nos anos que se anunciavam maus, o gado a morrer de fome, a
família sem trabalho, porque nem sequer havia erva nas searas, tornando
necessária a monda, em anos tais, a concorrência de janeireiros era enorme,
sobretudo não havendo barrancos a passar, que fossem cheios.
Os criados eram os primeiros a cantar as
janeiras, à porta do Monte, e para eles a esmola era especial — pão alvo,
chouriço para assar no espeto ou carne para uma friginada e vinho numa garrafa
ou numa borracha, segundo o número.
Era quase certo que debutavam por esta
cantiga:
Esta casa está caiada
Do telhado até ao chão;
Os senhores que nela moram
Deus lhes dê a salvação.
Também nós, eu e os meus irmãos, cantávamos as janeiras, e a minha mãe mandava-nos dar a esmola pelo postigo, como aos outros janeireiros, o que muito nos lisonjeava. Consistia a esmola em guloseimas, já divididas em porções, para evitar lutas fratricidas.
A gente de Messejana era a que chegava mais
cedo, em ranchos, os homens enrolados nas suas mantas, as mulheres nas suas
mantilhas, havendo geralmente em cada rancho uma cantadeira de fama, a Sofia,
que era a mais pimpona de todas, a Bárbara Bonita, que por sinal era muito
feia, mas trinava como um rouxinol... Que apitasse como os comboios.
A Sofia, que era poetisa a valer, repentista
como o Bocage, não garganteava as habituais quadrinhas, de uma tão charra
banalidade, a maior parte, que dificilmente se encontraria na grosseira
urdidura de qualquer delas uma centelha de inspiração. Improvisava à porta dos
Montes, de modo que cantava só, e isso fazia com que a esmola do seu rancho
fosse mais avultada. No despique ninguém lhe ganhava, a cantar uma noite
inteira, nos arraiais, às vezes tendo de bater-se ao mesmo tempo com dois e
três cantadores de reputação concelhia, mestres na desgarrada.
Tenho pena de não ter escrito algumas das
quadras e decimais que a Sofia arquitetava sobre mote, dizendo-as sem
hesitação, como se as tirasse da memória. Instruída e educada, a Sofia de
Messejana estou que marcaria na literatura feminina do nosso País um lugar de
relevo e distinção.
***
A Musa popular alentejana é pouco imaginosa;
falta-lhe geralmente elevação de pensamento; falta-lhe elegância na expressão;
falta-lhe correção na forma. A inspirar os janeireiros, pelo menos os que iam
cantar às Mezas, nunca entalhava na música arrastada dos seus cantares uma
quadrinha que tivesse o recorte simples mas elegante do junquilho, a fragrância
quase doce do mantrasto, a leveza pouco menos de imponderável da papoila. É ver
por estas amostras:
Ó senhor lavrador
Vestido de saragoça;
Mande-me dar a esmola
Pela sua filha mais moça.
Quando eu aqui cheguei
Dei um tope num cortiço:
Logo o coração me disse
Que me dariam um chouriço.
Venho-lhe dar os bons anos
Que as boas festas não pude;
Venho a fim de saber
Novas da sua saúde.
O Sr. Manuel de Brito
Cordão de ouro no chapéu;
Quando vai para a igreja
Parece um anjo do céu.
Era pequeno o rol das cantigas janeireiras, de modo que o rancho que chegava, às vezes sem lhe alterar a ordem, repetia as do rancho que imediatamente o antecedera. Esta monotonia só era quebrada pela variedade das vozes, cada rancho formando um coro desafinado, em que seria difícil, senão impossível, uma classificação.
Se o frio era dos que enregelam, chegava-nos
à chaminé, onde havia um lume que enchia de calor a casa toda, a tremura das
cantadeiras, mal enroupadas, parecendo que o seu delgado fio de voz coalharia
no ar, se não se calassem depressa.
Acudia minha mãe:
— Vão levar a esmola, e digam que não cantem
mais.
Obtinha sempre um grande sucesso o rancho que
cantava os três do oriente — os três desorientes — diziam os janeireiros,
lengalenga que eu sabia de cor, e que se me varreu, quase por completo, da
memória.
Começava assim:
Quem são os três cavaleiros
Que fazem sombra no mar?
São os três desorientes
Que a Jesus vêm buscar.
Não procuram por pousada
Nem onde o irão achar;
Procuram o Deus menino
Que nasceu para nos salvar.
Foram-no achar em Roma
Revestido no altar;
Missa nova quer dizer,
Missa nova quer cantar,
S. Pedro ajuda à missa,
S. João muda o missal.
O tio Rosa explicava que os três cavaleiros eram os três reis do Oriente, uma terra lá para os fins do mundo, os quais tendo notícia de que nascera Jesus, se puseram a caminho, para o adorarem. Como eram muito grandes, e montavam cavalos do tamanho de torres, faziam sombra no mar. Chegados à arramada onde Nossa Senhora dera à luz, aí souberam que o menino fora levado para Roma, porque Herodes era um grande malvado, e tinha dado ordens para o matarem. S. Pedro e S. João acompanhavam Jesus, e uma vez chegados a Roma perguntou-lhes o Papa o que desejavam. Vai então Jesus respondeu que desejava dizer missa na Igreja matriz, ao que o Papa anuiu, e como o sacristão tinha ido fazer um recado, S. Pedro e S. João ajudaram ao oficio divino. Veio Herodes a saber onde Jesus estava, e mandou lá buscá-lo, entregando-o aos judeus, que o levaram à presença de Pilatos, pedindo a sua morte. Pilatos disse-lhes que não havia motivo nem razão para semelhante feito, mas que se o quisessem matar, o matassem, que ele lavava daí as suas mãos. Foi o Senhor pregado numa cruz, entre dois ladrões, e ressuscitou ao terceiro dia depois da morte, para nos remir e salvar.
Sucesso ainda maior alcançava o rancho que
cantava a chamada oração das almas, lamúria fúnebre que era entoa tia muito
lentamente, nenhuma voz excedendo o regime médio, e no coro predominando o
baixo profundo, dando a impressão de vir a cantoria do interior das sepulturas,
a coar-se por entre túmulos.
Só me recordo do começo desta oração
Acordai, ó acordai,
Desse sono tão profundo;
Que vos estão batendo à porta
As almas do outro mundo.
Esta oração era sempre ouvida em religioso silêncio, e dizia meu pai que uns homens de Ervidel a cantavam tão bem e com tanto sentimento, que não era fácil ouvi-los sem chorar.
As Janeiras!
Até à meia-noite ainda estava tudo a pé, no
Monte, para ouvir os janeireiros, contrariando o velho hábito, raramente
interrompido, de ir tudo para a sossega, mal engolida a ceia, e engolia-se a
ceia ao acender as luzes. O meu pai, nalgum dos filhos cabeceando, ordenava-lhe
que se fosse deitar — na cama é que se dorme — o que punha logo o dorminhoco
gazil como um furão.
De vez em quando vinha uma roda de café, um
copinho de aguardente, um cálice de vinho abafado, para espertar, sendo estas
bebidas acompanhadas de alguma trincadeira — bolos feitos naquele dia, nozes e
figos comprados na feira de Castro, bolotas que tinham avelado numa alcofa, ao
canto da chaminé, escolhidas umas no Poço Seco pelo compadre Rabino, escolhidas
outras no Sabugueiro pelo compadre Bugado.
Amos e criados, destes os mais antigos na
casa, os compadres, os afilhados, fraternizavam naquelas noites de festa; emparceiravam
no jogo; comiam do mesmo prato; quase bebiam pelo mesmo copo; fumavam na mesma
onça de tabaco. E não havia uma desatenção, uma falta de respeito, todos juntos
e cada um. No seu lugar, a mesma alegria ingênua e franca iluminando todos os
olhares, a mesma paz interior refletindo-se em todas as palavras e gestos.
Ficavam sempre dois criados de vela, até pela
manhã, para darem as esmolas, e eu ficava com eles, rebelde ao sono, como se
fosse atacado de espertina. Pela minha conta e risco — o risco era nenhum —
cortava-se um chouriço já curado, e toca de o assar no espeto. Abria-se um pão
alvo, pelo rebordo, e o pingo do chouriço ia embebendo o miolo, dando-lhe um
gosto muito apreciável. A minha mãe, num descuido propositado, deixava algumas
garrafas de vinho no armário aberto, e eu nenhuma hesitação tinha em ir buscar
uma ou duas para que o pão e o chouriço não arranhassem as goelas dos meus
convivas. La chamar alguns criados de quem era mais amigo, e durava o bródio
enquanto havia de comer.
— A minha mãe é capaz de me ralhar...
— Ora! O Sr. Compadre diz que foram os ratos
que beberam o vinho enquanto a gente estava a escutar os janeireiros...
Os dias que medeiam entre as Janeiras e os
Reis passava-os eu num alvoroto, que me valia alguns puxões cie orelhas, pois
nada ouvia do que me diziam, e nada fazia do que me mandavam fazer.
Nunca obtive licença para ir cantar as
Janeiras ou os Reis à Bispa ou às Refróias. Montes próximos e de gente amiga,
nem mesmo oferecendo-se o compadre Rosa, para ir à minha companhia, garantindo
que muito antes da meia-noite estaríamos de volta.
— Fiquem os senhores compadres descansados
que não há de haver novidade.
Morro com este desgosto, dos maiores da minha
vida... De menino!
***
As Janeiras! Os Reis!
Poucos, muito poucos são os Montes em que
ainda hoje se dá esmola aos janeireiros, e por isso mesmo, além de várias
razões de outra ordem, são cada vez menos os janeireiros que passam uma noite
de Monte em Monte, cantando aquelas tradicionais quadrinhas que o leitor já
conhece, e outras de igual valor poético, que se me varreram da memória.
Os tempos andam tão mudados do que foram!
Eu sinto-me tão diferente do que fui!
Estou a evocar estas recordações numa noite
de janeiras, de vento fustigante e frio alpino, e precisamente quando suspendo
a pena e fecho os olhos para que seja mais perfeita a evocação, a Otília, minha
sobrinha, grita-me da porta do quarto, aos saltinhos, como uma rola na eira: —
Tio! O chá está na mesa.
O chá, que naquelas eras, entre rurais pobres
e abastados, só era tomado como remédio, para suar, e era de flores de
sabugueiro!
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In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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