A PRENDA DE NATAL
— As argolas, mãe? — perguntou, do catrezinho de bancos, a voz estremunhada da criança, que acordara ao rangido da porta.
— Dorme; rapariga... Não ficas sem a
consoada... O teu pai ainda não chegou da feira.
A criança voltou-se no catre, ficou com os
olhos abertos, encolhida e emudecida, fitando o fogo da caruma, quase extinto
no lar, onde requentava a ceia do Natal,
Acocorada na soleira da porta, a mãe,
embrulhada num xale, está à espreita, atenta ao menor rumor que vem da estrada.
Já por duas vezes, com o ramalhar das
carvalhas ao vento, ela pensou ouvir tropear ao longe a carruagem.
Não se enxerga um palmo na escuridão da noite
de lua nova. Um mar de nuvens cobrira os céus, ao fim da tarde. Nem um luzeiro
de estrela trespassa agora aquele negrume denso que enche os espaços e por onde
o vento anda à solta, varejando as carvalheiras das bouças e assobiando nas
agulhas dos pinhais como uma orquestra de flautas.
— Valha-me Deus! O que retêm lá por fora
aquele homem, a estas horas da noite! — murmura a mulher, sucumbida.
— Ó mãe, não haveria argolas na feira e terá
o pai ido por elas à vila...
— Dorme, rapariga! Amanhã já tens as argolas
nas orelhas... Por ’mor delas desandou o teu pai, sozinho na égua, por essa
serra, que mete medo!
Eram a consoada da filha. A colheita em pão e
vinho fora de dar graças a Deus. Não havia a pequena de ficar sem as argolas
por mais tempo. Logo ao clarear da manhã, o Manuel da Eira selara a égua,
entalara o varapau debaixo da coxa, lembrado da quadrilha de Redemoinhos, e
pusera-se a caminho para a feira de Lanhoso, prometendo estar de volta ao
amortecer do sol, para consoar.
Ainda a mulher advertira, receosa:
— Mete-te a caminho cedo. Toma tento com a
ladroagem de Redemoinhos!
E o Manuel da Eira, destemido, voltara-se no
selim:
— Hoje é o dia em que nasceu o Salvador. Os
ladrões também são gente cristã!
E picando a égua com a espora, abalara,
afoito, pela estrada.
Já ao longe, na igreja da freguesia, os sinos
tinham tocado para a missa do galo. Rajadas mais fortes de vento enchiam os
céus de um burburinho sibilante e agitavam no alpendre os sarmentos das vides
ainda por podar.
Súbito, a criança e a mãe erguem-se no catre
e no poial da porta.
Uma voz chama, de entre o negrume da noite:
— Ó Maria da Eira!
Sobre as traves, o vento parece que arrasta
as telhas. Na corte, os porcos grunhem. Uma nuvem de cinzas ergue-se e rodopia
no lar, sobre a caruma.
Sem pinga de sangue, a mulher grita, numa
ansiedade aflita, empurrando a cancela:
— Quem me chama?
E entre o rumor do vento distingue a tropeada
da égua, os passos vagarosos de dois homens.
— Traga a candeia... — diz a voz, na estrada.
A criança está já fora do catre, à espera das
argolas, esfregando nas costas da mão os olhos piscos de sono.
Tropeçando na saia, a mulher desengancha a
candeia da parede, e à luz mortiça, saindo ao terreiro, vê o seu homem, trazido
a braços, como morto. Atrás do grupo fúnebre avança a égua trôpega.
Os homens param. O da frente, encarando com o
desatino da mulher, resmoneia, esbaforido:
— Tome conta na luz! Não vamos agora aqui
ficar neste negrume! O seu homem vem vivo.
Só então ela parece acordar do seu doloroso
espanto e soluça, erguendo para o céu ventoso os braços, deixando fugir o xale.
— Nossa Senhora! Divino amor de Deus, que
estou desgraçada!
— Cale-se, mulher! Derreados vimos nós com
este peso! Demos com ele numa vala, caído ao pé da égua. Foi pancada que lhe
atiraram à falsa fé para o roubar.
Em altos gritos, ela empurra a porta, ajuda a
deitar o seu homem no catre. A criança soluça, refugiada a um canto, sufocada
pelo medo, e enquanto a mulher rasga, com a violência do terror, uma camisa de
linho para ligaduras, os dois homens lavam as mãos ensanguentadas num alguidar
e atiçam o lume da lareira com um graveto de tojo.
Debalde a mulher agora esparge de vinagre o
rosto desfigurado do ferido. Com o braço pendente e as unhas cravadas na palma da
mão direita, enlameado e lívido, o Manuel da Eira parece morto, estendido no
catre.
— Ele já não tem vida! — clama, num alarido
de lágrimas, a viúva, desanimando de abrir aquela mão crispada de defunto.
Os homens deixam de atiçar o braseiro,
amparam-na e erguem-na do chão, onde ela se deixou cair desanimada, arrancando
os cabelos, com um escarcéu de gritos e soluços.
— Os mortos não fecham as mãos. Isto é coisa
que ele tem escondida.
Então, novamente, reconfortada por uma última
esperança, ela se esforça, mais do que em estancar o sangue das feridas, em
abrir o punho obstinadamente fechado do seu homem.
Mas desfalece depressa e de novo abate, com a
voz estrangulada de soluços maiores.
Por sua vez, os dois homens tentam,
inutilmente, desunir da palma sangrenta os dedos inflexíveis.
— Pai, abre a mão! — geme também a criança,
aterrada e aflita.
As suas mãozinhas molhadas de lágrimas
imaginam ter a força, que aos outros falta, para despegar aquela garra.
— Abre a mão, pai!
E de repente, obedecendo à vozita implorante,
a mão abre-se e duas argolas de ouro, pequeninas, aparecem, reluzem e tilintam
no soalho.
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In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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