A CAÇADA DO MALHADEIRO
Tínhamos
ido - o mestre Domingos ferreiro, o malhadeiro do Vale Fundo e eu - em busca de
um porco, que o malhadeiro atalaiara na véspera. Tencionávamos fazer apenas uma
mancha pequena, próximo da qual o porco fora visto, e voltar à tarde ao monte
das Pedras Alvas, onde ficara o nosso rancho.
O
malhadeiro foi com os cães bater, enquanto o mestre Domingos e eu esperávamos
nas portas. O porco não estava na mancha. Batemos segunda, onde também não
estava; mas ali os cães pegaram com força no rasto, e em baixo no vale achamos-lhe
as saídas frescas. Sempre na esperança de o encontrar, batemos terceira e
quarta mancha, e fomos de cerro em cerro, e de vale em vale, até que, quando
nos decidimos a voltar - sem ter visto um pelo do porco - estávamos a duas
léguas, e léguas de serra áspera das Pedras Alvas. Era em Dezembro, já ao cair
da tarde. Começava a chover, e as nuvens grossas, correndo do lado do sul,
anunciavam uma noite de água.
-
Nós com um tempo destes não deitamos às Pedras Alvas senão alta noite - disse o
mestre Domingos.
-
Não deitamos é certo! -respondeu o malhadeiro.
-
Má raios partam o porco! - acrescentou, para se consolar.
-
Mas que há a fazer?
-
Podíamos ir à malhada da Crespa, que é daqui meia légua. O Tio João sempre há
de ter alguma coisa que se coma, e um lume prá gente se enxugar.
-
Pois vamos lá.
As
nuvens negras tinham-se fundido num tom cinzento. A chuva engrossava. Batida
com força pelo vento, passava em linhas claras, apertadas, quase horizontais,
sobre o verde negro dos cerros. O malhadeiro abria caminho a corta-mato, e o
mestre Domingos e eu seguíamos, abaixando a cabeça, fugindo às rajadas de chuva
que nos açoitavam a cara. Em fila atrás dos nossos calcanhares vinham os cães,
tristes, de orelha caída. O mato escorria. Nos vales, cheios de erva densa, a
terra ensopada cedia fofa debaixo dos pés; e as pegadas, marcadas no musgo
verde, enchiam-se logo da água que ressumava. À luz tênue da tarde algumas
poças maiores brilhavam, com reflexos frios de prata polida. Duas galinholas
saltaram-nos aos pés, sacudindo com a ponta
da
asa as gotas cintilantes, presas às folhas viscosas das estevas; mas as
espingardas estavam carregadas de bala, bem comodadas debaixo do braço, com as
fecharias tapadas pelas abas dos jalecos, e nenhum de nós ia de humor para
atirar a galinholas.
-
Má raios partam o porco! - dizia de vez em quando o malhadeiro.
Era
noite fechada, quando os perfis confusos de umas azinheiras grandes se
desenharam diante de nós no clarão baço do céu. Ouvimos ladrar os cães -
estávamos na Crespa. O Tio João veio à porta, conheceu a voz do outro
malhadeiro e abriu logo. Estava só em casa com a nora e os netos pequenos; o
filho andava trabalhando longe dali, e não recolhera.
Improvisou-se
rapidamente uma ceia pobre, que nos pareceu excelente. Duas braçadas de lenha
seca de azinho estalavam na enorme chaminé, com uma chama clara, muito alegre.
E quando acabamos de cear e nos chegamos para o lume, acendendo os cigarros,
penetrou-nos uma grande sensação de bem-estar. Lá fora ouvia-se o cair monótono
da chuva, e as lufadas do sul, assobiando na telha-vã da malhada.
Naturalmente
falou-se de caça - o ferreiro e os dois malhadeiros eram os três primeiros
caçadores da serra.
-
Oh! Tio João, você é que fez uma caçaria melhor que todas essas? - disse o
ferreiro depois de se contarem muitos casos de mortes de porcos e de veados.
-
Fiz... fiz... - disse o velho como quem meditava.
-
Você devia-nos contar esse caso esta noite.
-
Ó mestre Domingos, eu não gosto de falar nisso.
-
Ora, uma vez não são vezes... Eu sei do caso, mas nunca lho ouvi contar bem a
preceito como ele foi, e os mais que aqui estão não o sabem.
-
Pois conto - respondeu o malhadeiro, abaixando-se para acender o cigarro a uma
brasa. Estava sentado defronte de mim, dentro da chaminé, ao lado da nora. A
luz crua da labareda iluminava-lhe brutalmente a cara, enérgica, sulcada de
rugas fundas, muito queimada. Entre os joelhos tinha o neto, uma criança de
sete ou oito anos, com uma cabecita redonda, bem encabelada, e uns olhinhos
pretos, vivos, em que a chama punha pontos brilhantes. De vez em quando a mão
negra, muito dura, do velho passava sobre a cabeça do pequeno, com um toque
suave, de uma doçura infinita. Diante do lume, o ferreiro e o Joaquim do Vale
Fundo, estendiam para o brasido os sapatos grossos e as polainas, que ainda
fumavam. A chama, levantando e abaixando, projetava-lhes as sombras, desmesuradamente
grandes, na parede caiada do fundo, fazendo-as dançar de um modo fantástico. -
Isto por aqui no tempo dos franceses esteve mau... muito mau! - começou o
malhadeiro. - Passaram aí duas vezes. Quando passaram juntos, em tropa, bem
foi; mas depois, quando iam na retirada, sem respeito lá aos seus comandantes,
nem a ninguém, queimavam e roubavam tudo. Os montes, nos barros, estavam todos
desertos; e mesmo cá na serra, nas malhadas mais perto das estradas, não ficou
viva alma. Todos fugiam, levando alguma coisa melhorzita que tinham. Meu pai
quis aqui ficar.
-
Pra onde há de a gente ir? - dizia ele. - E depois isto é cá desviado, não vêm
cá.
Eu,
ao tempo, era rapazote, ia nos meus dezessete.
Estava
aqui com meu pai e as minhas duas irmãs; a Inês, a mais nova, que ainda vive,
era mais velha do que eu um ano; e a Mariana, Deus lhe perdoe, teria então os
seus vinte ou vinte e um.
Passou
tempo, sem os franceses aparecerem. A gente sabia que passavam tropas, aí pelas
estradas, direitas a Espanha; mas cá na serra já estava descuidada. Quando uma
manhã, que eu andava lavrando com a parelha ali no farrejal, e meu pai estava
falquejando umas alvecas aqui na empena, a Inês que tinha ido à fonte... à
fontinha
lá abaixo na úmbria, sabes Joaquim?... a Inês veio fugindo ladeira acima, e
chegou aí esfalfada, dizendo: Aí vêm... aí vêm!
E
vinham. Aquilo sorte é que se tinham desviado da estrada, perderam-se e vieram
a corta-mato, direitos à casa, que viam aqui na altura. Eram oito. Vinham muito
rotos, com os sapatos em frangalhos, atados com trapos. Um - estou-o vendo - um
alto, magro, com o nariz grande e o bigode caído aos cantos da boca, trazia um
lenço branco, sujo, com grandes manchas de sangue, atado à roda da cabeça.
Meu
pai bradou-me, e quando eu vim correndo, disse-me baixo:
-
Esconde as espingardas.
Fui
àquele canto onde elas sempre têm estado, peguei-lhes, passei à porta de trás,
e fui metê-las na palha da arramada. Quando voltei já os franceses estavam
dentro de casa. Não se percebia nada do que diziam, senão - vino... vino... - e
faziam sinal que queriam comer. O pai disse às moças que lhes dessem o que
havia; mas eles não esperavam, abriam as arcas e traziam o que achavam pra cima
dessa mesa. Meu pai tinha-se sentado naquele banco...
O
velho indicava os lugares com o gesto, que o Joaquim e o mestre Domingos
seguiam no movimento de atenção dos olhos; e assim contada, naquela casa, que
não tinha mudado nos últimos sessenta anos, onde ainda se viam as espingardas
encostadas ao mesmo canto, e o banco tosco ao lado da porta, a história
adquiria uma intensidade de vida, uma atualidade singular.
-
Os franceses - prosseguiu o Tio João - comeram, beberam, estavam já alegres,
rindo e gritando. Um deles, um loiro, que tinha um galão e parecia mandar
alguma coisa nos outros, quando a minha Inês passou ao pé dele, deitou-lhe um
braço à cintura, sentou-a à força nos joelhos e deu-lhe um beijo.
Eu
vi isto, e no mesmo instante vi meu pai de pé, e um machado de cortar azinho
direito à cabeça do francês. O francês era leve, furtou-se; e quatro ou cinco
deles agarraram-se a meu pai e depois de uma luta deitaram-no no chão. Eu tinha
levado uma coronhada pelos peitos, e estava encostado àquela arca, seguro por
outros dois. O loiro ria-se, com um riso mau, mas dizia - quis-me a mim parecer
- que nos não fizessem mal, que nos atassem. Estava aí uma corda grande de
enquirir, com que eles ataram o pai de pés e mãos. A mim ataram-me com um
baraço e com a minha cinta.
Às
moças... arrastaram-nas para a casa de dentro, gritando e chorando...
À
mesa ficaram dois franceses, bebendo.
Eu
ouvia minhas irmãs chorar lá dentro, chamando-nos, que lhes acudíssemos; e via
o pai deitado no chão, com a camisa rasgada, e as mãos atadas atrás das costas.
Na
luta, quando caiu, partiu a cabeça na esquina do banco. Um fio delgado de
sangue corria-lhe da testa até às suíças brancas, e, dos olhos muito fitos, vi
correrem-lhe as lágrimas, que se misturavam com o sangue. Não posso dizer o
tempo que isto durou; mas pareceu-me muito. - Quando os franceses saíram, rindo
e metendo nos bornais o pão e uns queijinhos que tinham sobejado, nem olharam
para o pai; a mim pegaram-me, e, assim mesmo atado como estava, levaram-me à
porta para lhes ensinar o caminho. Não sei o que me lembrou; mas em lugar de
lhes mostrar a trocha que vai direita à estrada, mostrei-lhes a que desce para
a ribeira. Essa trocha era a mais seguida das duas - eles não desconfiaram,
deitaram as espingardas ao ombro, e desceram vale abaixo.
A Inês não dava acordo de si; mas a Mariana, muito branca, muito enfiada, veio cá fora desatar o pai. Ele não falava, e, quando a Mariana me desatou, disse-me só:
-
As espingardas.
Fui
à arramada buscá-las, e quando vim já o pai tinha o polvorinho a tiracolo;
apontou para o outro polvorinho que eu enfiei, e, tirando da arca o saco das
balas, esteve-as dividindo, deu-me um punhado delas e meteu as outras na
algibeira. Saímos sem ele dizer uma palavra à Mariana. Fez-lhe sinal que
chamasse e fechasse os cães. Só deixou ir uma podenga velha vermelha; mas a podenga
era - salvo seja - como uma criatura; quando estava numa porta nem latia, nem
mexia um cabelo. À ponta dos farrejais abaixou-se; desafivelou a coleira do
chocalho da cadela e deitou-a fora.
Nós
íamos devagar. Entendi eu que meu pai os queria deixar meter bem para os vales
mais ásperos. Lá abaixo, aos matões do barranco do Alendroal é que os apanhamos.
Vimo-los de longe numa volta da trocha. Meu pai não falava, fez-me sinal que
fosse à meia encosta da úmbria, que ele ia pela soalheira, e quando nos apartamos,
numa voz ainda trêmula, disse-me só estas palavras:
-
Não atires, sem eu atirar.
Eu
meti à encosta, de gatas, por baixo das estevas.
Era
uma criança ainda, mas não me lembrei de ter medo.
Fui...
fui, até que cheguei bem a tiro. Já nesse tempo atirava bem. Desde pequeno que
andava com meu pai, e você ainda se lembra como ele atirava, mestre Domingos?
-
Era a primeira espingarda da serra, a chumbo e a bala! - afirmou o ferreiro.- E
era! - continuou o velho. - Eu não o via; mas sabia que ele ia na outra
encosta. Os franceses iam em baixo no vale, todos numa linha porque a trocha
era estreita. Numa volta do vale, ouvi um tiro; e o francês, o loiro, que ia
adiante, abriu os braços, e caiu de bruços.
Os
outros pararam; eu apontei bem um, dei ao dedo, e ele caiu, redondo. Ao segundo
tiro viraram-se para o meu lado; então o pai - para me livrar - apareceu-lhes
no mato. Atiraram-lhe todos, e eu vi as estevas cortadas pelas balas em volta
dele; mas não lhe deram. Os homens ainda quiseram avançar pela encosta direito
a ele, mas era um bastio de mato muito forte, não puderam romper, e, deixando
os dois mortos, abalaram a correr pelo vale. O pai chamou-me e fomos juntos
sempre pelo fio da altura, a ver o caminho que tomavam. Acho que se arrecearam
de ir pelo vale, que era cada vez mais estreito, e meteram a uns matos ralos,
de umas queimadas que se tinham feito nesse ano, direito à porta-baixa do
Sovereiral.
Quando
os topamos foi já no barranco do Algeriz, ali ò açude do Moinho Velho.
Estávamos metidos nos medronhais altos, e eles vieram sair no claro do areal do
barranco - mesmo onde tu mataste-la porca grande a semana passada, Joaquim. Era
quase à queima-roupa; caíram dois. Os homens eram valentes. Os quatro que
restavam ficaram direitos, encostados uns aos outros. Atiraram para o mato, na
direção do sítio em que tinham visto o fumo, e uma bala cortou um ramo por cima
da minha cabeça. Nós separamo-nos, e mesmo de rastos por baixo do mato, fomos
carregando. Quando atiramos, eu precipitei-me e errei; mas o pai não errou...
nem errava! Os três perderam coragem e fugiram para o mato. Era já escuro,
perdemo-los.
Fomos
para um cabeço e ficamos ali toda a noite.
Eu
estava cansado, era uma criança, pra ali me deitei.
Mas
o pai nunca dormiu; e quando eu de noite acordava com o frio e com a fome,
via-o sentado numa pedra, direito, encostado à espingarda.
Logo
ao romper da manhã abalamos. Os três franceses tinham tido toda a noite para
fugir; mas aqui na serra quem não é prático, jamais de noite, não avança
caminho.
Pode
um homem andar uma noite toda, e de manhã achar-se no mesmo sítio. Ainda assim
deram-nos trabalho; atalaiamos pelos cerros; rastejamos os vales e as passagens
dos barrancos, como se a gente andasse à busca de um javardo ou de um veado;
até a cadela - Deus me perdoe - já lhes pegava no rasto. Seria meio-dia quando
os vimos lá muito em baixo, nos areais da ribeira. Tinham ido à água. Dali a
duas horas estavam mortos todos três.
Quando
voltamos para a malhada, já os grifos andavam no ar às voltas, às voltas, por
cima do vale, onde ficaram os dois primeiros.
Meu
pai ao entrar em casa não disse nada; mas agarrou as filhas e teve-as muito
tempo abraçadas, e nunca até à hora da sua morte o ouvi falar no que tinha
sucedido.
O
lume ia-se apagando, sem que - presos à narração nos lembrássemos de o atiçar;
e o vasto brasido, onde ainda corriam umas chamas incertas, azuladas,
iluminavam vagamente a figura austera do velho, que amparava com muito cuidado
sobre os joelhos o pequenito adormecido.
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Fonte:
Fonte:
Contos Portugueses - Volume I. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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