![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEirX8JRE4Y5EahMVsnXRGl1PVwylHKttp8i0fHDSpOTa9_k5QWZ0sqbfwk5NgRcbsjPBELVsJr_RC84yW1z86WbkPy5otArxTBsykQqdQ3ttTvibPiVrbWqCkLTHWilKleiYV3rcR-gg_hC/s1600/hd-taja-contos-trindade-680.jpg)
VAE VICTIS!
Não
estava ninguém na fonte, quando a Luísa, de cântaro deitado sobre a cabeça, ali
chegou. Ninguém. Debaixo do sol risonho, ao murmúrio da água da bica,
derivando, viva e clara, de um pedaço de telha partida, naquele socalco de
pequeno cabeço em cujo topo, à roda da igreja branca, a aldeia negrejava,
parecia tudo adormecido. Verdegavam perto os lameiros; iam viçosos, nos
quintais e hortejos, os renques dos legumes, e já nos ramos das árvores,
inteiramente vestidos de folha, picavam as primeiras flores.
Quase
sem horizonte, porque outros cabeços o fechavam perto, esse recanto onde
borbulhava a fonte parecia ali como escondido. Próximo, um ribeiro passava,
além de umas paredes baixas, onde as mulheres costumavam lavar.
Mas
não vinha dessa banda, àquela hora, o mínimo rumor de vozes, nem se ouvia, como
noutros dias, bater a roupa nos lavadouros. Como nas doces aguarelas, uma
atitude de êxtase imobilizava ali todas as coisas, tocando-as de uma pontinha
de sono - e as coisas, como as crianças, pareciam, sorrindo, deixar-se
adormecer...
Tomada
do mesmo espasmo, a Luísa quedara-se abstrata junto da bica, esperando que se
enchesse o cântaro; - mas agora, ao ruído monótono do fio de água, escoando-se,
lentamente, no bojo do barro insaciável, como que lhe acordara nos ouvidos,
onde lhe tinha ficado encantada, e com todo o relevo da voz do Tônio, essa
pergunta que ele lhe fizera:
-
Dás-me um beijo, Luísa?
Estava
mesmo a ver o rapaz quando lhe dirigira a inesperada pergunta. Fora no adro, um
domingo de tarde. Os homens, em descanso, conversavam de lavouras, sentados por
cima do muro; as mulheres tagarelavam em grupos, de cocarinhas no terreiro
sagrado; e ela, com outras da sua igualha, chasqueava, à porta da igreja, dos
moços que jogavam a barra.
Fingindo
uma coisa séria, o Tônio, que entrava no jogo, viera para ela em mangas de
camisa, o chapéu deitado para trás, num instante em que lhe não pertencia
atirar o ferro. Da violência do exercício, trazia o sangue a espirrar-lhe da
pele e muito vivos os olhos azuis.
-
Ó Luísa! - dissera-lhe ele chamando-a de parte. - Fazes favor de uma palavra?
Ela
fora, na boa fé, e quase sem o pensar. Senão quando, chegando-se como para um
segredo, perguntara-lhe com a voz muito quente:
-
Dás-me um beijo, Luísa?
Não
tivera tempo de lhe responder, nem saberia tampouco; e ele mesmo, chamado para
o “tiro” que lhe competia, desandara lesto e sem se voltar, deixando-a,
incoerente, a pensar na atrevida pergunta:
-
Dás-me um beijo, Luísa?
Já
o cântaro ia quase cheio, mas ela nem dava fé. Sempre que podia fechar-se num
pensamento, nas suas horas de suave remanso, era naquele pensamento que ela se
fechava; e muitas vezes, ao adormecer, a esperança de o prolongar em sonhos
fazia-a pegar no sono quase a sorrir. Viera-lhe daí o que parecia às outras
melancolia, mas que era para ela um gozo suave - o prazer de estar sozinha, de
não ver nem ouvir ninguém, de devanear, ela só, naquele tema sempre
constante...
E
de tanto que repetia a pergunta em pensamentos, chegara a recear repeti-la alto;
e aos seus olhos era assim como um lindo quadro, cheio de luz e realidade, esse
querido domingo de tarde, no adro, em que ele, o Tônio, lhe fizera ao ouvido
aquela pergunta:
-
Dás-me um beijo, Luísa?
Parecia-lhe
haver acordado então de um grande sono que durara toda a sua vida passada, de
que mal se lembrava agora; e essa tarde no adro, que podia ter sido, para ela,
tão indiferente como foram tantas, era agora como a sua primeira hora de
existência, - essa tarde em que o Tônio, chegando-lhe os lábios quase ao
ouvido, lhe perguntara numa voz muito quente:
-
Dás-me um beijo, Luísa?
Parecia-lhe
mesmo estar a ouvi-lo: a sua voz como que ficara viva dentro dela, - e esse
doce, misterioso ritmo em que se fundira, causava-lhe, de cada vez que o
escutava, um encanto novo...
Recolhida,
suspensa como num voo, num êxtase de toda a sua vida, outras vezes era ela
mesma que a invocava... E de ouvido muito fito, os olhos semicerrados, um
arroubo todo espiritual elevando-lhe os seios da alma, aquela voz descia do
céu:
-
Dás-me um beijo, Luísa?
Voavam-lhe
as horas neste enlevo, entre as paredes do seu tear; e o mundo, a felicidade, a
alegria, o próprio Deus, residia tudo dentro dela, - na doce, enternecida
recordação daquela tarde, no adro, quando o Tônio, sem ela o esperar, lhe
fizera ao ouvido essa pergunta:
-
Dás-me um beijo, Luísa?
E
no entanto, não lho dera então, nem lho daria ainda hoje, esse beijo que lhe
pedira o Tônio. Porquê? Nem ela o sabia: mas só de o pensar, as faces
purpurejavam- -lhe, e a luz que desde essa tarde a envolvia toda, parece que
tinha, de repente, um espasmo de intermitência...
Isso,
porém, acontecia muito raras vezes, e quando sucedia era passageiro; pois que,
sondada bem no íntimo, dela se pode dizer que vivia apenas, extasiada, de um êxtase
da sua memória, e que a sua memória, semelhante a um estado imóvel, nada mais
podia refletir do que a cena desse domingo de tarde, no adro, quando o Tônio,
sem ela o esperar, viera segredar-lhe mesmo ao ouvido:
-
Dás-me um beijo, Luísa?
Tudo
o mais era-lhe indiferente na vida, e como que o tinha esquecido; e para as
coisas e fatos de ocasião, em que não havia remédio senão reparar, tinha agora
uma benevolência quase risonha que repartia também com os outros, e que se
convertera, para com os pobres, numa caridade cheia de ternura. Como o tear
ficava na casa térrea de entrada, os pedintes era a ela que se dirigiam, uns da
porta, outros da janelinha, e alguns havia já a horas certas. Parava de tecer a
Luísa, e elevando a voz chamava pela mãe:
-
Ó minha mãe! Faça favor de trazer um bocadinho de pão, que está aqui um
pobrezinho.
E
se a mãe replicava com o perdão - “Dá-lhe o perdão, que não pode ser” - ela
mesmo, dali a pouco, ia-se ao pão e cortava-lhe um pedaço, dizendo às vezes que
era para ela.
A
mãe, que percebera, dissera-lhe a rir de uma dessas vezes:
-
Tanto pão! tanto pão, rapariga! Ora aí está porque tens essa cor, que é mesmo
da cor do centeio!
Mas
era uma esmolinha que dava, e um desejo que satisfazia; - e só ela, afinal, não
tinha que pedir nem que desejar! Graças a Deus, o trabalho sobrava-lhe, e não
tinha mãos a medir; e quanto a ambições, isso que ela ouvia que todos tinham,
não as sentia de casta nenhuma. No entanto, essa mesma felicidade era para ela
um fato inconsciente e derivava, sem dar fé, da obsessão deliciosa daquele
domingo de tarde, no adro, em que o Tônio lhe dissera ao ouvido:
-
Dás-me um beijo, Luísa?
Depois
dessa tarde, sem contar as vezes que se salvaram, apenas uma ocasião tinham
falado. Quase sem intenção, o Tônio chegara-se à janelinha do tear, e,
assomando a cabeça loira entre os dois cacos de manjericos, pusera-se a falar
com ela. Tinham conversado um pouco de tudo; primeiro de coisas simples da
vida, e por fim, sem bem saberem como, de casamentos: uns que tinham gorado,
outros que prometiam fazer-se, a sorte doutros que se tinham feito...
Nesta
parte da conversa ainda a viúva interviera, e os três tinham rido o seu bocado.
O Tônio andava em dia com os amores de toda a aldeia, e tinha um modo de dizer
as coisas, e principalmente de se referir a pessoas, que fazia rir a mãe e a
filha.
-
E tu, ó Tônio, - dissera a viúva em certo ponto, - diz’ lá tu quem é que
derriças?
Como
dois floretes muito subtis, que se cruzam sem se tocar, os olhares dos dois, da
Luísa mais do Tônio, haviam-se cruzado repentinamente. Ambos notaram isso, e
ambos, no íntimo, ficaram como surpreendidos…
-
Ora, ti Ana! eu penso lá nessas coisas! - acudiu o rapaz.
E
como a Luísa se pusesse a tecer, e o ruído do tear abafasse as palavras,
levantou a voz para que o ouvissem:
-
Nem quero!
Mas
a viúva objetou:
-
Olha quem! Não queres! Põe lá que se te saíres a teu pai... - E com intentos de
lhe puxar pela língua, perguntou: - Seguro que não botaste no S. João os teus
papelinhos, ó Tônio?...
-
Ora! - fez logo o rapaz sem ligar importância. - Mas isso toda a gente! - E
para arredar alguma pergunta indiscreta, acrescentou: - Aposto que até
vossemecê?!
Riu-se
a viúva com muita vontade:
-
Ai, filho, não! Olha eu! Algum tempo, algum tempo! Mas onde isso vai se bem correr!
E
como uns laregos entrassem pela casa dentro, de focinho a rabuscarem o chão,
correu a viúva a enxotá-los - “Coch'qui, inimigos! Coch’qui!” - enquanto os
olhares do Tônio e da Luísa, rápidos como dois relâmpagos, segunda vez se
cruzavam no ar...
-
Vou-me que são horas, ti Ana! - disse logo o Tônio. - Até logo. - E não olhando
já para a tecedeira, despediu-se também:
-
Adeus, Luísa.
…Depois,
mais nada. E aquilo mesmo, que podia ter sido, afinal, sem intenção, quase se
lhe diluíra a ela da lembrança, - e aí persistira só, num fundo claro de
madrepérola e num relevo cada vez mais vivo, aquela cena de domingo de tarde,
no adro, quando o Tônio, sem ela o esperar, quebrara, nessa pergunta, o
virginal encanto da sua adolescência, - fazendo-a acordar na puberdade:
-
Dás-me um beijo, Luísa?
Na
fonte, enquanto o cântaro levou a encher-se, não surgira sombra de gente. A
mesma sonolência morna adormentava à roda todas as coisas, e só no azul do ar,
muito fino, que o brando sol da manhã diluía numa luz suave, passavam, tocados
de opala, os pássaros chilreadores. Na superfície do pequeno tanque adjacente,
forrado de musgo, onde os animais costumavam beber, o céu espelhava-se límpido,
muito fundo, com o ligeiro algodão de uma nuvem quebrando-lhe a um canto a
monotonia; e já a água borbulhava do cântaro como em fervura, e a Luísa parecia
esquecida, - quando um casal de borboletas brancas, interceptando, num voo
sereno, a linha perdida do seu olhar, veio, imperceptivelmente, evocá-la de
novo à realidade...
Reparou
então que estava cheio o cântaro, e já a transbordar; mas indo a pegar-lhe para
se ir embora, viu, de repente, assomar o Tônio num deslado, - como se o
pensamento dela o evocara...
Tiveram
ambos, naquele momento, o mesmo abalo de viva surpresa, durante o qual se fixaram
muito um ao outro, a averiguar se lhes mentiam os olhos; - e com a certeza de
que lhes não mentiam, adveio aos dois, no mesmo instante, a sensação entre
perturbadora e deliciosa do isolamento em que se encontravam...
Sem refletir, parece que cedendo a um impulso estranho, dirigiu-se o Tônio para a banda da fonte; mas adivinhando nos modos da Luísa a turbação que a enervava, sem também saber a razão os passos hesitaram-lhe...
De
repente, como se a cumplicidade do lugar e do silêncio o estimulasse, - e ela,
abandonada, parecesse agora provocá-lo - apertou-a nos braços o rapaz; - e
colando-lhe na boca os lábios frementes, como se lhe fora a sorver a vida,
beijou-a num frenesi.
Ao
mesmo tempo, numa vibração de rumor que vai a apagar-se, aquela voz deliciosa
do Tônio, tão viva, desde esse domingo, como um canto de rouxinol, parecia
agora, quase extinta, fugir e despedir-se da sua memória:
-...“
Dás-me um beijo, Luísa?...”
---
Fonte:
Fonte:
Contos Portugueses - Volume I. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário