A NOITE DO NATAL
Corria a noite de vinte e quatro de Dezembro,
e dez horas acabavam de soar na freguesia de uma aldeia da província do Minho.
Era uma destas noites como as produz Dezembro
nas províncias do Norte de Portugal; serena, mas fria de regelar: a geada caía
a flocos em abundância.
De além das cumeadas da serrania, sobranceira
à aldeia, lá começa a aparecer uma claridade alvacenta, como véu diáfano que se
dilata, e que pouco a pouco envolve o baço fulgor das estrelas.
É a Lua que vai nascer.
A pálida e melancólica rainha da noite ergue
a custo a cara, anuviada pelos gélidos vapores que o Inverno depositara nos
cumes da serra. É como um espírito aéreo de Ossian, percorrendo em níveas
vestes as montanhas de Morven.
Quão sublime é o nascer da Lua, quando a
noite já vai adiantada! É nessa hora de tranquilidade profunda e meditação
solene, que a alma, animada por essa centelha que ao mundo desferiu a Divindade
— a poesia, solta voos temerários, sendo-lhe estreita a imensidade do espaço
para dar largas aos pensamentos que inspira o astro melancólico da noite.
Sereno e modesto planeta, quanto simpatizo
contigo! És o meu enlevo nas belas noites estivas, em que brilhas no nosso tão
poético hemisfério, desferindo um olhar cheio de mistérios. Sem o querer, pelo
teu aspeto acho-me embevecido, sem de ti desfitar. Olhando-te, minha alma
parece desprender-se das suas ligações terrenas e voar pelo espaço,
engolfando-se na deslumbrante cópia de maravilhas, que o silêncio imperturbável
da noite nos patenteia, e que tu, como um facho inextinguível que luz entre o
homem e Deus, iluminas e esclareces! Tu és como um fanal misterioso, que, nas
horas em que tudo jaz adormecido, fazes resplandecer as páginas do livro da
sabedoria eterna — a natureza!...
O nordeste começara de soprar rijo, varrendo
com as suas asas da amplidão do espaço os tênues nevoeiros que a noite
acumulara; e açoitando em rajadas a encosta da montanha, envergava os
pinheirais, que, erguidos na lombada das colinas, se projetavam no horizonte
como fantasmas negros que, ao som do vento, que, gemebundo, percorria pelos
vales, dançassem danças grotescas e bárbaras.
A noite foi alimpando, pondo-se bela e clara
com a saída da lua, que, já desassombrada de vapores no seio da atmosfera, pura
e serena, fulgurava como broche de ouro no meio de um vasto manto de cetim. À
sua claridade os objetos confusos e indistintos, pelas sombras da noite,
tinham-se estremado e tornado perceptíveis. No pendor da serra, quase a
dependurar-se por entre os ramais verde-negro dos arvoredos frondosos, começara
a surgir, alvejando ao luar, a aldeia, cujo campanário, ainda havia pouco,
fizera soar dez horas.
Entre nós, gente da corte, dez horas é apenas
o começo da noite: é a hora de dar entrada num baile; é a hora em que um
peralta vai para o teatro; é a hora em que se faz a abertura de um sarau,
segundo as prescrições do código do bom-tom; é, enfim, a hora destinada, nos
ritos da tafularia, para se começar tudo o que respeita ao mundo elegante,
depois que o Sol deixa de nos iluminar. Mas, no campo, dez horas é uma hora
adiantada: é a hora em que um honrado e positivo lavrador tem já dormido o seu
sono, e muito bem estirado; porque os habitantes do campo, como lapônios e
pouco ilustrados que são — coitados! — preferem a luz de um belo sol, que os
ilumine e lhes dê vigor e energia, à luz artificial de alguns resplandecentes
lustres de gás; e por isso se deitam ao anoitecer, e erguem-se com a aurora,
gozando do inexplicável espetáculo do acordar da natureza. São gostos. Pois
fique cada qual com o seu, que eu, apesar das pinturas dos poetas e das
descrições lisonjeiras da gente da província, nunca morri de amores por
madrugar. Prefiro antes que o sol me veja erguer a mim, do que eu o veja erguer
a ele. Há nisto talvez até descortesia para com o rei dos astros; mas que
querem? Uma madrugada, acompanhada do seu cortejo de gelos e calafrios, foi
sempre para mim mais assunto de muito bocejo e espreguiçamento, do que de
encantadoras e atrativas seduções. O mau gosto é de certo da minha parte; mas
antes assim. Suporte-se ainda mesmo a reputação de sensaborão, contanto que não
se troque uma cama, fofa e quente, por uma madrugada fria e áspera.
No campo, como íamos dizendo, dez horas, que
são horas de tudo jazer já adormecido, nesta noite, porém, parecia ter exceção,
a atentar bem na nossa aldeia, por cujas fisgas das portas e janelas de algumas
habitações, bruxuleavam luzes, como pirilampos fulgurando num brejo,
ouvindo-se, interrompido e intermitente de vez em quando, o ruído confuso de um
vozear alegre, como cantares, ao que parece, de gente que festejava.
E alegrava-se, sim; porque esta era uma das
noites de exceção por excelência para aquelas boas gentes: esta era a noite de
24 de Dezembro; era véspera do dia de Natal, em que tudo na província festeja, risonha,
tange, canta, come e bebe, já se sabe, devotamente, depois de ter ido ouvir a
missa do Galo. Esta era a razão da novidade que ocorria na aldeia, cujos
habitantes já ansiosos e alegres suspiravam pela duodécima badalada do sino da
freguesia, para envergarem capotes e gibões, e porem-se a caminho para a
igreja.
De repente o sussurro de vozes, que era
trazido ou levado pelas esfuziadas do vento que assobiava pelos estevais,
dobrando as piteiras dos valados, foi cortado pelos latidos agudos de um cão, o
qual parecia estar dentro de uma casa de melhor aparência, que ficava afastada
da aldeia, para a baixa da serra.
Os latidos do cão vinham com efeito do
interior desta casa; e o motivo parecia a aproximação de um vulto negro, como
de homem embuçado, que saíra detrás de um grupo de choupos, e se acercara da
porta da casa, como pondo-se à escuta. O ladrar do cão ao princípio não atraiu
o reparo da gente que lá dentro andava acesa em festas; mas tanto que este
avançou à porta, raspando nela, como que entrevendo o vulto que estava de fora,
que uma voz de homem bradou de dentro:
— Ó Francisco, vê porque ladra aquele cão.
Ao soar da voz, o embuçado desaferrou da
porta, e correu a esconder-se com os choupos.
A porta abriu-se; e um homem, tendo mão num
formidável rafeiro, que, sacudindo a cauda, tudo era querer partir para o lado
onde o faro lhe denunciava o estranho, apareceu, deitando a cabeça de fora.
— Ora o que há de ser! — diz o rapaz — não é
nada: é o Diamante, que sentiu bulir a porta com o vento, e por isso ladrou.
— Qual carapuça! — exclamou o outro homem de
dentro.
— Se ele ladra, é porque anda por aí gente.
O Diamante não se engana assim. Anda gente, e
gente a quem ele tem gana: essa também eu te juro.
— Eu cá não enxergo vivalma, tio Jerônimo —
replicou Francisco. — Ouço o vento que assobia nos valados, e mais nada. Pois
olhe que a noite está clara como de dia.
— É verdade; que bela noite! — exclamou uma
voz feminina, sonora e meiga. — Parece uma noite de Estio; ora que nem de
propósito se pôs assim.
A esta fala, o cão soltou-se das mãos do
rapaz, e voltou-se para a recém-chegada, que era uma camponesa, jovem e gentil,
segundo da parte de fora se podia ver, e se pôs a lambê-la e a afagá-la.
— Acomoda-te, Diamante: tens andado hoje tão
inquieto! Terá fome, talvez. Vai dar-lhe de comer, Francisco, anda — disse ela
desenvencilhando-se do cão, e indo para dentro.
Neste comenos, os choupos tremeram, e
Diamante, pilhando Francisco desapercebido, avançou ladrando com a fúria de um
leão. Nisto as árvores buliram mais, e uma pancada surda, como de arma que erra
fogo, fez-se ouvir.
— Que é isso?... Foge, Diamante, que te
matam! — grita o jovem, correndo a desviar o cão.
A esta exclamação do criado, toda a gente da
casa chegou à porta, alvoroçada.
— Quem é que me quer matar o cão? — bradou um
homem que vinha à frente, adiantando-se, e brandindo um varapau com uma choupa
numa das pontas.
A resposta foi o lampejo de escorva que
ardeu, sem disparar a arma, entre os choupos.
— Tira-te, Antônio, que foi espingarda que
dispararam dali — grita a camponesa, que já tinha aparecido, empecendo ao homem
do varapau de prosseguir na direção das árvores; mas este, desembaraçando-se
dela, replicou-lhe com brandura:
— Não tenhas medo, Emília. Sempre quero ver
quem é o gatuno, que assim me quer matar o cão: hei de lhe arrancar as barbas,
uma por uma!
O homem que assim falava era um rapaz de
vinte e oito anos para trinta: alto, robusto e bem posto. Ainda que não fosse
belo, o seu todo era simpático, e tinha umas maneiras em que se revelava a
franqueza aldeã, espontânea e incuidosa, mas acompanhada da resolução do homem
decidido.
Com ele tinham saído mais alguns rapazes
camponeses, uns poucos de lapônios, que eram os jovens da aldeia, e um homem já
de idade avançada.
— Que fazes? — gritou este, dirigindo-se a Antônio.
— Não te arrisques assim. Sabe-se lá o que será!
— Ora o que há de ser? — retrucou o jovem
aldeão. — Algum ratonei.ro, que está à espreita que vamos para a freguesia,
para nos entrar em casa.
— Dizes bem, nem é outra coisa — acrescenta o
velho, dando alguns passos para o meio da viela.
— Sim, mas deixem-se estar — insistiu Emília,
segurando pelo braço Antônio.
— Qual! Hei de ver-lhe a cara — ateimou este,
adiantando-se para os choupos e mais alguns aldeões. Mas ainda não tinha chegado
próximo, quando uma sombra se escoou por detrás das árvores, e se viu
distintamente o vulto de um homem de capote escuro saltar o valado com a
ligeireza de um gamo, e desaparecer súbito.
— A ele, Diamante, vai-te a ele! — brada Antônio,
arremessando o cajado ao vulto que fugia, e correndo após ele com a
impetuosidade de um tigre.
O cão, enraivado à voz do dono, correu com a
velocidade do raio, galgando o valado de um pulo. Quase todos os homens
avançaram para o lado por onde fora Antônio, e em breve desapareceram também.
— Vão-me buscar a minha caçadeira! — bradou o
velho para os jovens, que estavam espavoridos e estupefatos, enquanto que as
mulheres rompiam em alaridos. — Vocês não ouvem, gente do diabo? Vão-me buscar
a minha espingarda, ou não? — disse o velho agastado.
— Aonde queres tu ir, Jerônimo? Tu
enlouqueceste?... Tu perdeste a cabeça?... — grita uma velha, de voz rouquenha
e gritadeira, excessivamente gorda, mas desembaraçada e resoluta, saindo da
mesma casa, e travando com o braço o tio Jerônimo, a quem o risco da aventura
estimulava ainda os brios de rapaz.
O empuxão da velha, forte como a abalroação
de uma charrua dinamarquesa, deteve nos seus ímpetos o tio Jerônimo.
— Aonde quero eu ir? — replica ele. — Quero
saber quem é o patife que, escondido naquelas moitas, teve a fraqueza de
desfechar à queima-roupa sobre o bom do nosso Antônio.
— Olhe, minha mãe, indo o pai armado, não tem
dúvida... — ia dizendo Emília, quando a velha, arregalando os olhos, com as
faces acesas em ira e as palavras atropelando-se pela cólera, lhe bradou num
tom atroador:
— Que dizes tu, tola?... Tens medo que te
bulam no machacaz, e por isso queres meter também o pai na alhada? Vai tu. Tu
não me fazes falta; ele sim. Que me dizem à rapariga!
Quer que lhe guardem o bonifrate! Que se
defenda ele. Já tem idade para isso. E que me importa a mim o cão do Antônio?...
É o que faltam são cães. E, para além do mais, o cão não é nosso.
— Mas é como se o fora, porque é de Antônio,
e é muito seu estimado — respondeu Emília com interesse.
— E que tenho eu que ele o estime, ou não? —
continua a velha, cada vez mais incendiada, e dispondo-se a arremeter para
Emília.
— O caso é outro — atalhou Jerônimo,
metendo-se de permeio. — Agora não se trata de cães, nem meios cães; o caso é
mais sério. Trata-se de saber quem foi o melro que estava posto à capa detrás
dos choupos, e que depois se esgueirou lá para a quebrada da serra. Não era
para matar um cão que ele ali estava. Este é que é o caso.
— E verdade; este é que é o caso — acudiu
Emília, fazendo coro com o pai.
— Será esse o caso, senhora espevitada; mas
se o cão não estivesse a farejar e a arranhar na porta, já não era nada disto —
retorquiu a velha, que era uma espécie de deputado de oposição sistemática.
— Eles lá vêm! Eles lá vêm! — disseram os
jovens que tinham ficado.
Efetivamente assim era.
Antônio chegou, e os mais camponeses e
criados que o tinham seguido, todos cansados e esbaforidos.
— Então que era? — foi a pergunta que saiu da
boca de todos.
— O que era?... Era um homem — respondeu Antônio
com ar taciturno —; mas agora quem!... Aí é que está o busílis. Vão lá
perguntar-lho.
— Vão lá perguntar-lho!!... Ora essa! Pois
não viram, indo-lhe quase na peugada?!... — exclamou Catarina pasmada.
— Qual! — disse Antônio com um sorriso sardônico.
— Parece que ia montado no diabo! Pois Diamante galga terreno, mas não foi para
o seu dente podê-lo apanhar.
— E que direção tomou? — pergunta o tio Jerônimo,
tomado de pasmo.
— Atravessou as terras do moinho: galgou a
lombada da serra, e depois meteu-se na vinha do André da Charneca. Daí por
diante ninguém mais lhe pôs a vista cm cima.
Isto respondeu um camponês, porque Antônio
estava entregue a pensamentos profundos, como que alheio do que se passava.
— Está bom; como não aconteceu desgraça, Deus
louvado, ainda o caso foi bem. Ora andem, agora vamos para dentro — diz
Catarina. — Parece que querem ficar aqui... Não pensem mais nisso. Isso era
algum larápio, ou, agora me lembra, talvez fosse o abegão em que nos falou a
Josefa da Horta; porque, bem pensado, estarem-lhe aqui quase com as mãos em
cima, e ninguém lhe poder ser bom, manda obra do demo. Eu te arrenego, Satanás!
— exclamou a velha fazendo o sinal da cruz. — Então isto já é de mais: vamos
para dentro, ou não?... Parece que ficaram todos apegados ao chão.
E assim era. A estranheza da aventura tinha
infundido o espanto em todos.
Antônio, com os olhos pregados no chão,
encostado ao varapau, e verrumando a terra com ele, parecia entregue a um
pensar penoso; ou, para melhor dizer, lidava para combinar fatos que a memória
lhe esquivava.
Um pressentimento indecifrável lhe escurecia
as ideias, povoando-lhe de imagens tristes todo o seu imaginar. O aparecimento
do estranho acordava-lhe pensamentos confusos, mas através dos quais lhe
parecia ver despontar lembranças, que bem amargamente lhe tinham dilacerado a
alma noutra época.
Emília chegara-se para ele, e mostrava que as
mesmas sensações a atenuavam; estava triste e pensativa como ele.
O tio Jerônimo também pensava, mas o seu
pensamento era outro. Reflexões nascidas das circunstâncias singulares do
acontecimento, e influídas pela superstição, feição proeminente do caráter
camponês, lhe faziam encarar o ocorrido pelo lado maravilhoso. Um lobisomem não
se atrevia a afirmar que fosse o desconhecido, porque a configuração era
humana, e não assentava as quatro patas no chão; mas coisa boa não a reputava
ele de certo.
Assim estavam todos, quando um sonoro repique
de sinos, travando os ares e repercutindo-se em todos os montes e vales
vizinhos, acordou os ecos da serrania, e arrancou os vales desta espécie de
letargo.
— Ai! Que já toca à missa, e nós aqui! —
exclamou Catarina, saltando como tocada da pilha voltaica.
— É verdade — dizem todos em chusma.
— Toca para a missa, rapaziada — bradou Jerônimo.
— Deixemos os maus pensamentos. Não nos lembremos mais disto. O que for soará.
Anda, Antônio: pareces uma estátua.
— Eu cá não vou à missa — resmungou Antônio.
— Quê?!... Tu não vais à missa?... Ora essa
tinha que ver. Já para a freguesia, meu pachola! — brada Catarina dando-lhe uma
palmada nas costas, capaz de fazer aluir uma torre.
— Ora era o que faltava, se tu não ias à
missa do Galo! Vai-te daí, tolo, que estás a parafusar? Pareces-me um piegas.
Já a ninguém lembra tal coisa, e ainda tu estás com os olhos cravados no chão,
que pareces um estafermo. Anda, vamos daí.
— Anda, Antônio, disse Emília em tom meigo.
Então não queres ir conosco à missa do galo?
— Pois vamos lá — respondeu enfim ele, que a
esta voz pareceu desagarrar-se do seu ruminar.
— Toca a aprontar tudo, rapazes, para irmos
para a missa! — grita o tio Jerônimo; o que foi respondido pela frase geral:
— Vamos para a missa.
Toda a família entrou para dentro da casa, e
depois de alguns momentos saíram todos, mas já amantalhados e encapotados, e
tomaram o caminho da freguesia.
— Fecha bem a porta — disse Catarina a um dos
jovens que dava volta à chave, visto que temos quem nos ronde a casa.
O rancho alongou-se.
As vozes, em práticas festivas, por entre as
quais surdiam as gargalhadas esganiçadas e estridentes das raparigas, foram
ressoando ao longe por algum tempo, deixando de se distinguir, e formando por
último um alarido confuso, que se perdia ou multiplicava à proporção das
anfractuosidades da encosta que iam correndo.
Em breve não se ouviu já senão o som surdo e
compassado dos tamancos dos jovens nas calçadas das quelhas da aldeia: este
mesmo ruído extinguiu-se pouco a pouco; mas foi substituído por outro,
semelhante à restolhada que fazem as folhas secas pisadas.
Eram passos de alguém que se aproximava cauteloso.
O vulto negro do embuçado apareceu de novo;
mas desta vez vinha da traseira da casa; e cosendo-se com a parede dela, tomou
também o caminho da freguesia, porém sempre esquivando-se, retraindo-se ou
cosendo-se com a sombra, até que desapareceu de todo.
***
A missa do Galo é uma das boas instituições
religiosas do catolicismo, bem como todas as instituições que são propriamente
nacionais, e em que o povo pode tomar o seu quinhão de alegria, sem sair do seu
verdadeiro caráter. São estas festividades o relevo, ou esmalte da monótona
vida das classes laboriosas: é por elas que o homem do povo mede os horizontes
da sua existência, que marca os capítulos de ventura da sua história íntima, os
quais firma e consagra com as afeições sinceras da sua alma, tomando estas
épocas como balizas ou marcos miliários que avultam no caminho dos anos
decorridos ou por decorrer, fazendo-lhes anexar, aos já passados, a lembrança
penosa das suas afeições, ou das saudades que o coração desflorara sobre a
memória de um ente querido; aos futuros um desejo de bem ou uma esperança que
poucas vezes a sorte enflora.
Estas e outras festividades, umas originais
da religião, outras derivadas de usanças e tradições imemoriais, são as
verdadeiras flores do mundo ideal de qualquer povo; são as circunstâncias que
concorrem para lhe dar um caráter próprio, uma fisionomia particular, e um
aspeto distinto; são as origens que lhe suscitam as crenças, as usanças e
tradições de que matiza, de que inspira e anima o seu viver íntimo e as suas
convicções morais e religiosas.
Delas nascem formosas lendas, em que a poesia
da superstição popular engrandece o culto religioso, firmando-o com a fé, na
memória dos velhos, e com o mistério, na imaginação juvenil. Os hábitos e
crenças do povo recebem destes fatos, consagrados pela igreja, ou solenizados
pela tradição, um distintivo, que importa conservar e perpetuar, porque nisso é
que residem as suas feições nacionais.
A literatura, a verdadeira expressão da
sociedade, na concisa frase de Bonald, bebe nestas fontes as suas mais nativas
c puras inspirações.
A unidade e conservação do caráter moral de
um povo subsistem nas suas convicções religiosas e populares. Tirai a qualquer
nação as suas crenças e superstições, seus usos c costumes, e vereis o que
fica. Um conjunto de homens de um viver excêntrico, positivo, e bisonho, sem
mundo ideal, que brilhe e ria à fantasia, sem perspectivas de atrativo encanto
que inspirem a alma e a convidem a largos voos por horizontes sem fim. Seria a
aridez moral, sem uma saudade, mas também sem uma esperança que, vicejante e
virente, reflorisse perpetuamente voltada para o futuro dos nossos desejos.
É por estas razões que, se despirdes os anos
das suas galas c louçanias, as épocas festivas; se arraigardes estas das suas
práticas e costumes; e se, enfim, lançardes tudo no olvido, e desprezardes tais
práticas e costumes, fica a existência social reduzida a uma série de dias,
insuportavelmente uniformes, insípidos, monótonos, estirados, apenas
preenchidos de fadigas e trabalhos, e distintos por um terremoto, por um aguaceiro
ou por um eclipse.
Voltemos agora à nossa aldeia.
O repique dos sinos, que fora como toque de
rebate para a família do bom do nosso tio Jerônimo, tivera a virtude da voz do
anjo, bradando das alturas aos adormecidos pastores de Belém: Erguei-vos, que
nasceu o Filho de Deus. Todos os habitantes da aldeia se puseram em movimento.
Por toda a parte começaram a aparecer e desaparecer luzinhas, e o ruído de
fechar e abrir portas fez-se ouvir em todas as habitações. Em breve os aldeões,
entre risadas e festas, com a alegria e a esperança no íntimo, o sorriso nos
lábios e o fervor no coração, se dirigiram à freguesia.
Pudéramos agora narrar mil episódios
ocorridos, e peculiares a estas tão almejadas noites de Natal: mas não o
faremos. A discrição cerra-nos a boca; e a pena, mais discreta que a própria
discrição, pára, recusando-se à tarefa de perscrutar amores, e analisar muitas
cenas de picante sainete cômico. Continue o mistério a envolver todas essas
anedotas, historietas e lances, em que todos, mais ou menos, temos figurado de
heróis. Calemos por interesse próprio. Agora tomemos o fio da narração de mais
alto, para boa inteligência dela, começando por dizer quem era o tio Jerônimo,
e a sua família.
O nosso tio Jerônimo era o que se pode chamar
um verdadeiro tipo dos nossos aldeões de província. Era um homem que tinha o
peito franco e a bolsa descerrada para todos; que só via caras e não corações;
que acreditava nas palavras sem descortinar interiores. Mas sentido com ele em
não lhe pregar a primeira, que então ia tudo em vaza-barris, e não lhe pregavam
a segunda; porque ainda que lhe fossem depois pregar evangelhos, era malhar em
ferro frio, pois que ele seguia o adágio: cesteiro que faz um cesto, faz um
cento.
Na sua juventude, o tio Jerônimo fora
moleiro, porque a perda dos seus pais, sendo ainda pequeno, o obrigou a tomar
este rumo: porém, pela morte do padrinho, que era o lar que ele no presente
possuía e com quem habitava, ficaram-lhe umas vinhas e umas terras de pão, que
se estendiam por toda a serra do lado, que entestava o nascente. Já se vê que
senhor de tão rica propriedade, o nosso tio Jerônimo tratou de se estabelecer e
de tomar estado. Efetivamente fez-se lavrador, e chegou em pouco a ser o mais
abastado do sítio. Quanto a estado, Jerônimo já andava de amores, havia tempo,
com Catarina, filha de um carpinteiro de carros da aldeia; o que não era bem
olhado pelo pai da rapariga, que não queria que a sua Catarina casasse com um
rapaz de mulas, como ele chamava a Jerônimo. Todavia tanto que este, por morte
do padrinho, tomou posse dos bens, o negócio mudou de face, e o rapaz de mulas
começou a ser tratado com urbanidade pelo futuro sogro. Em fim, o casamento
efetuou-se; e depois de dois anos, o amor e esperanças dos dois esposos foram
coroados pelo nascimento de uma filha, a quem puseram o nome de Emília, por ser
o da mãe de Catarina, sendo padrinho de batismo o padre da aldeia.
Emília logo desde criança foi o enlevo do seu
pai; e conquanto sua mãe, na aparência, a tratasse de rompante, ela fazia o que
queria de Catarina; porque Catarina tinha o terrível defeito de estar em
oposição com todos; de pôr tudo a ferro e fogo na fazendo encanzinar; de não
suportar contrariedade de espécie alguma sem romper em berreiros atroadores,
realçados por um gesticular petulante e ameaçador; mas ao cabo de tudo, a pobre
mulher era uma pomba sem fel, e afadigava-se por fazer bem a todos, não
querendo mal a ninguém.
Os tempos correram, e Emília foi crescendo em
gentileza e formosura. Todos na aldeia simpatizavam com ela: os velhos viam
nela um anjo de paz; a indigência contemplava-a como o seu esteio; e a
juventude adorava-a vendo nela a sua esperança; enfim chegou a tanto o
entusiasmo dos jovens aldeões, que lhe puseram o nome de Flor da Serra.
Emília, porém, pagava com gratidão estas
demonstrações ternas, mas seu peito ainda não palpitava de amor.
Entre os jovens da terra, que a requestavam,
havia um chamado Pedro, filho do cirurgião da aldeia, o qual mais se fazia
notar pela insistência dos seus extremos e declarações; e que lhe parecia
impossível que a indiferença de Emília o compreendesse, porque se julgava com
direito ao seu amor em consequência de ser filho de uma das notabilidades da
terra.
Este Pedro era um rapaz de caráter impetuoso
e vingativo; de um temperamento ardente e irascível. Ele calava no fundo da
alma o desprezo com que Emília o tratava; mas quem nele atentasse perceberia,
pelo torvo do seu aspeto e maneiras retraídas, que naquele coração, a par de
muito amor, existia outro sentimento, não menos forte, que não era a
resignação; sentimento que, à medida que o seu amor lhe era repulsado pela
indiferença constante da filha de Jerônimo, recrescia e se ateava de dia para
dia. O peito de Pedro era comparável a um vulcão; aguardava só pela boca
predestinada para rebentar em explosão.
Um acontecimento veio livrar Emília deste
amante, que ela mais temia que prezava. A obrigação em que estava a aldeia de
dar um homem para o recrutamento, fez com que Pedro fosse sorteado, e que nele
caísse a sorte; sendo por conseguinte obrigado a ausentar-se da terra, e ir
para o regimento que lhe foi destinado.
Passados dois anos, apareceu de novo na
aldeia, já feito segundo sargento; e sem consultar Emília, atreveu-se a pedi-la
aos seus pais. Catarina, deslumbrada pelo posto do jovem militar, esteve quase
tentada a dar o seu assentimento; mas Jerônimo quis que a sua filha fosse
ouvida, visto que o negócio lhe dizia diretamente respeito; esta recusou
imediatamente. O novo militar, respirando mais raiva do que amor, despediu-se
da família; e apertando a mão de Emília, disse-lhe com um acento terrível estas
palavras, que sempre lhe ficaram gravadas na memória: Emília, pensa bem quanto
pode um amor desprezado; e fica certa que Pedro, assim como te soube amar,
também saberá vingar-se.
Assim iam as coisas, quando aconteceu morrer
um irmão a Jerônimo na província da Beira. Este irmão era um lavrador abastado
e solteiro, mas que tinha um rapaz na sua companhia, que criara de pequeno, e a
quem queria como a um filho. As más-línguas asseveravam que ele verdadeiramente
o era, o que nós não sabemos ao certo; o que sabemos é que o bom velho o chamou
à hora da sua morte, e lhe disse:
— Antônio — que assim se chamava o rapaz —,
tanto que eu feche os olhos, trata de pôr tudo que me pertence em arranjo; e
depois irás procurar meu irmão Jerônimo, que tu aqui já viste por várias vezes,
e lhe entregarás um maço de papéis, que está dentro daquele bufete, e esta
carta. O meu irmão é um homem honrado; tu tens sido sempre bom rapaz: creio que
não hás de ficar mal com ele.
No dia seguinte o bom do homem morreu; e Antônio,
depois de chorar sinceramente a sua morte, fez as suas disposições, e pôs-se a
caminho para a aldeia do tio Jerônimo, ao qual se apresentou. Este recebeu Antônio
como o seu bom natural lho pedia; e tendo mutuamente lamentado, um a perda de
um irmão, outro a de um homem de quem recebera os extremos de pai, Jerônimo leu
a carta e os restantes papéis, dizendo depois:
— E a ideia que ele sempre teve; ela não é
má; o caso está que não fique só em desejos!
— E porque há de ficar só em desejos, tio Jerônimo?
— pergunta Antônio, sem saber de que se tratava —; se é uma ideia boa, e é,
para além do mais, do seu irmão, que nos há de empecer de a levar avante?
— O tempo te dará a resposta, meu Antônio —,
volveu Jerônimo. — Por enquanto contenta-te de saber que ficas na nossa
companhia, que não podes ficar melhor, porque neste particular não hás de
sentir a falta do meu irmão.
Antônio, que efetivamente era um bom rapaz,
esteve por tudo; e em breve, pelas suas qualidades estimáveis, granjeou a
estima de toda a família.
Todavia, Antônio, decorrido tempo, começou a
andar de modo preocupado e cabisbaixo. Todos o estranhavam; ele que era tão
jovial e alegre; que sempre fora o primeiro nas danças da aldeia, e o mais
afamado improvisador ao desafio! E para que lhe havia de dar? Para andar
desviado da mais gente, como ovelha tresmalhada; ou para se ir sentar ao pé do
poço que estava junto do moinho do tio Jerônimo, e aí levar horas esquecidas a
pensar, de olhos fitos num rosal, para onde Emília, ao pôr-do-sol, costumava ir
refocilar da lida do dia.
Uma tarde, em que Antônio estava no seu posto
do costume, mais embevecido do que nunca no seu pensamento profundo, foi
despertado de súbito por uma pequena pancada no ombro; virou-se, e deu com
Emília, que com um papel na mão, entre sorrindo-se, lhe disse:
— Estás sempre tão pensativo, Antônio. A modo
que dantes não eras tão triste. Isso são por certo saudades da tua terra, não é
assim?
— Saudades? — retorquiu Antônio, olhando-a
com prazer.
— De quem as hei de eu ter, a não ser daquele
que me tratou sempre como pai?
— Não; essas saudades, que te trazem tão
pesaroso, não são de gente morta — disse Emília com malignidade.
— Pois de outrem não as tenho — respondeu Antônio
com decisão.
— Então é outro sentimento que te consome;
porque, se fosse saudade do meu tio, devia diminuir com o tempo, que tudo
gasta, e não aumentar; salvo se cá em casa te quisessem mal; mas tu és tão bem
tratado como eu; não é assim?
— Oh! Por certo.
— Então é outro motivo.
— E bem diverso.
— Bem diverso?... — replica Emília com
curiosidade. — Então porque te não abres conosco, Antônio? Não seremos nós
capazes de te guardar um segredo, e de te minorar qualquer mal, quando esteja na
nossa mão?
Antônio pareceu lutar consigo mesmo;
entreabriu os lábios, como para articular uma resposta, mas depois ficou
silencioso.
Emília quase que entreviu o que nele se
passava; e com um tom meigo e gesto afável, lhe disse:
— Ora diz, Antônio, diz o que tens.
— O que é, sabê-lo tu melhor que ninguém —
disse ele por fim, como arrancando a si uma confissão, que lhe enleava a alma.
— Eu?! — exclama a ingênua camponesa
maravilhada. — Se nunca ninguém mo disse; tu também nunca mo disseste, como o
hei de eu saber?
— Diz-to a minha perturbação; dizem-to os
meus olhos; diz-to esse próprio papel, que tens na mão; e tenho-to eu dito
muitas vezes, pelas minhas maneiras e palavras; tu é que não me queres entender
— clamou Antônio com energia, por fim, erguendo-se.
— Pois foste tu que escreveste este papel? —
perguntou Emília, sorrindo.
— Fui sim — respondeu o jovem entusiasmado.
— E que diz ele — atalhou uma voz, dentre o arvoredo
próximo, que se conheceu logo ser a do tio Jerônimo, o qual apareceu de súbito
entre os dois jovens camponeses, lançando mão do papel, e lendo o que se segue:
De entre as rosas do rosal
És Emília, a mais formosa;
Respiras o seu perfume,
És como elas viçosa.
Quem dera poder colher-te
Já que o meu peito ferido
De tua negra esquivança
A ti já está rendido.
— Cáspite! Mais claro só água —, acrescentou Jerônimo, depois de haver lido, olhando para os dois com uma expressão galhofeira. — Uma declaração de amor, e em verso magnífico!... Então onde achaste tu este papel, Emília? — pergunta-lhe ele com um sorriso sardônico.
Antônio e Emília, conquanto soubessem que Jerônimo
não era pessoa capaz de supor mal deles, porque a fundo conhecia a probidade de
um e a virtude da outra, no primeiro instante ficaram estupefatos e corridos de
se verem apanhados num lance inteiramente novo para eles.
— Então não me respondes, Emília? — repetiu o
velho. — Estás com os olhos cravados no chão, e vermelha como uma romã. Achar
um papel não é crime. Em que lugar o achaste, diz?
— Naquele rosal, onde me costumo sentar às
tardes — respondeu por fim a bela camponesa, sem erguer a vista.
— E foste tu que o escreveste, Antônio? —
continuou Jerônimo.
— Fui, tio Jerônimo — acudiu o jovem com
resolução. O velho, a esta afirmativa, rompe numa gargalhada estrondosa; os
dois ficaram cheios de pasmo; mas ele os tirou deste embaraço, falando assim a Antônio:
— Não te disse eu, que a ideia do meu irmão
havia de ser o tempo que ta revelasse, hein?
— Assim é, tio Jerônimo — respondeu aquele,
quase adivinhando já.
— Pois aí está o tempo, que ta revelou. Os
meus filhos — continuou o bom do aldeão, estendendo-lhes a mão — vocês
estimam-se, e não hei de ser eu, nem tão-pouco Catarina, que levemos a mal
isso. O meu irmão, que para ti foi pai — prosseguiu ele virando-se para Antônio
que o ouvia absorto —, assim o desejava. Ele não quis prejudicar a amizade, nem
o parentesco; porque, fazendo-te seu herdeiro, era eu lesado; não dispondo as
coisas ao teu favor, mal terminava a sua amizade para contigo, pois te deixava
ao deus-dará: assim combinou tudo, desejando que vocês se unissem, porque era a
única maneira de tudo ficar em casa. Eu, porém, é que não quis que isso se
fizesse à virga-férrea; porque, ainda que se diz, que o casamento e a mortalha
no céu se talha, eu cá digo que é uma coisa que deve ser muito da livre vontade
de cada um; e por isso quis espreitar primeiro a sua inclinação. Agora já sei
qual é. Confesso que fiz um papel avesso ao meu gênio, e feio, em estar à
escuta por detrás daquelas árvores; mas como foi para bom fim, não me arrependo.
Ora, pois, meus filhos, alegrem-se que brevemente serão um do outro.
Emília e Antônio saltaram ao pescoço do velho
aos abraços, na maior efusão de ternura, a que ele correspondeu com afeto,
acabando assim este colóquio. Em seguida foram todos dali dar parte do
acontecido a Catarina, que, desta vez, não tez oposição.
Mas eis que os aldeões já vêm saindo da
freguesia. Pois quê! Acabaria já a missa do Galo? Parece impossível. Ou o padre
a disse muito depressa, ou nós nos demoramos excessivamente a esmiuçar os
particulares da família do nosso tio Jerônimo. Há de ser uma das coisas, porque
efetivamente os camponeses já enchem as quelhas da aldeia, e clareiras da
serra, em demanda das suas casas, ledos e ansiosos por se irem lançar à
consoada que os aguarda.
***
Estamos numa vasta quadra, coberta de telha
vã, a que o pai de Emília tem concedido a honra cumulativa de sala, antessala,
câmara, casa de jantar e saleta de espera. A um lado vê-se uma ampla lareira,
com um bom fogo, onde arde, crepitando em estalidos intermitentes, o
cepo-do-natal.
O cepo-do-natal é uma antiga e devota usança
adotada pelos povos de algumas das nossas províncias: e não é só nossa, porque
Christien, no seu estudo crítico sobre os costumes dos caledônios, diz que os
antigos escoceses queimavam, em todas as suas festas, um grande carvalho, a que
chamavam o tronco-da-festa. Em Portugal, esta usança pratica-se da maneira
seguinte.
Pelas vésperas do Natal, os lavradores
abastados e devotos mandam cortar do pinheiro mais virente e robusto, que
avulta nos seus pinheirais, um tronco, que é solene e festivamente trazido à
sua morada, e depositado sobre a lareira. Na noite do Natal acende-se e arde
até pela manhã, guardando-se devotamente o que escapa das chamas; pois, segundo
creem os bons camponeses, tem o condão de afugentar os raios e preservar deles,
e muitas outras miríficas propriedades e virtudes, como a palma benta, as
campainhas de Roma e os círios das Endoenças.
O cepo-do-natal, que ardia sobre a lareira do
tio Jerônimo, havia-o cortado Antônio, na véspera, de um ingente e frondoso
pinheiro, que altivo campeava na assomada da serra, à sombra do qual muitas
vezes o mesmo Antônio se sentara com a sua querida Emília. Tinha sido o
confidente dos seus amores; era bem que assistisse às suas bodas. A rapaziada
da aldeia havia-o ajudado a trazer até ali, o que para ela fora grande
contentamento; e a boa tia Catarina já se achava abarbada de pedidos, feitos
pelas aldeãs, que queriam que o ramo milagroso se repartisse por elas, à laia
de santo-lenho, porque estavam quase certas de que o tronco misterioso, que
fora guarida de amores, sacrário de segredos de ternura, e agora cepo-do-natal,
teria mais virtude ainda de atrair corações, do que de afugentar raios.
Mas ponhamos de banda os desejos femininos da
aldeia, e continuemos o esboço da casa do velho Jerônimo.
Em roda da lareira está o bom do velho,
alegre em tecer apoteoses aos passados tempos, com o padre da aldeia, ancião
respeitável, querido de todos pelos dotes do seu caráter verdadeiramente
apostólico, e o boticário da terra, a quem o dono da casa havia convidado para
fazerem a meia-noite com ele, como pessoas muito da sua particular estima.
Junto deles vê-se Diamante estirado, aquecendo-se ao calor da lareira, seguindo
com os olhos os menores gestos dos três; e ora espetando as orelhas, ora açoitando
as ancas com a cauda, resmoneia, olhando de lado o boticário, criatura com quem
embirra figadalmente. Do teto pende um lampião de ferro, projetando uma
claridade vacilante e baça em todo o recinto, que está apinhado de raparigas da
aldeia, muito guapas e garridas, com as suas galas e donaires estreados de
novo; e da flor dos jovens aldeões, amigos de Antônio, com quem travam práticas
festivas, brincam, chacoteiam e riem, formando diversos grupos, os quais,
exagerados pelos lampejos intermitentes da lareira, que, ora aclarando a casa
toda, os diminui como pigmeus, ora, quase extinguindo-se os aumenta, tomam
formas rasgadas, descomunais, grotescas e fantásticas.
A alegria transuda nos rostos de todos; mas
uma alegria franca e sincera, sem retração nem embaimentos. Cada boca é um
intérprete de alma; cada olhar um reflexo de sensações íntimas; cada palavra a
manifestação singela de um pensamento puro; e essas expressões, conquanto
enérgicas, veementes e até mesmo rudes, são, contudo, ingênuas e chãs, como a
existência simples e laboriosa daquelas pobres gentes. Pode-se dizer que a cena
que se passa em casa do tio Jerônimo é um verdadeiro episódio da alegre e
honrada vida campestre, com toda a sua aparência tosca, simples, lhana, e
primitiva, mas com o verdadeiro fundo que distingue um entretenimento desta
ordem — a sinceridade, de um sarau hipócrita de gente palaciana. Enfim, é um
quadro como nunca o produzira o pincel flamengo nas suas inspirações mais naturais
e animadas da vida patriarcal dos campos. Teniers enriquecera ali a fantasia de
episódios, que só a existência, compreendida nos seus acidentes, pode revelar;
e Hogarth alegrara-se por poder reproduzir com a mesma vida e colorido o
conjunto que lhe se oferecia à vista.
Este contentamento, porém, já de si tão
buliçoso e expansivo, era ainda mais atiçado pela substanciosa consoada, que
fumegava em cima de uma grande banca, a um canto da casa, para a qual olhava de
vez em quando, com vistas ávidas, o boticário, mais forte na gastromania do que
na farmácia, e que, ao cabo de muito pensar, tinha decidido para si que o
primeiro e mais cabal princípio higiênico era comer bem, e sobretudo à custa
alheia. Catarina, pelo seu lado, não cabia em si de contente; o que ela
demonstrava pela maneira, nada equívoca, de variados e infindos berreiros,
dirigidos em todos os tons, desde o mais roufenho até ao mais gritadeiro e
espevitado, contra os maloios dos criados, que a faziam levar da breca por
desazados e broncos. Antônio, já esquecido da aparição do desconhecido, estava
também entregue à geral festa: só Emília lidava por simular rosto prazenteiro;
mas conhecia-se que dentro a ralava pesar, que ela mal podia reprimir. Emília
efetivamente tinha saído mais satisfeita do que viera da missa do Galo; e o
motivo parecia ser um pequeno bilhete, que ela já por mais vezes lera
furtivamente à claridade da lareira. Mas isto, na confusão, não era notado, nem
até o seria por Antônio, a não sobrevir um acidente.
Mais por comprazer com as aldeãs, suas
amigas, do que por boa vontade, Emília entretinha-se a bailar com algumas
delas: no conflito do brinquedo saltou-lhe do seio o misterioso papel, que tão
preocupada a trazia: as camponesas julgando ser alguma carta de Antônio,
lançaram-se sobre ele de roldão querendo-o tomar nas mãos; porém Emília com
presteza o apanhou; mas não tão rápido, que não fosse vista por Antônio, que,
chegando-se a ela, lhe disse:
— Parece-me que saíste mais alegre do que
entraste. Terás acaso algum feitiço que te dessem nesse papel?
— Feitiço?! Ora tens coisas, Antônio! Isto
é... É... — E Emília balbuciou algumas palavras, sem que atinasse com resposta.
— Olha, Antônio — continuou ela, puxando-o de parte: — eu devo estar certa de
que confias no meu amor, não é assim?
— E quem o duvida? — acudiu Antônio, agastado
pela estranheza da pergunta.
— Pois então asseguro-te que este papel em
nada pode alterar a nossa estima; mas peço-te só que o não queiras ver antes de
nos recebermos...
— Antes de nos recebermos!... E porque mo não
deixas ver hoje, agora mesmo? — porfiou Antônio, levado da singularidade da
exigência.
— E dizes tu que não duvide eu de que me
estimas?! Se assim fosse, não teimarias em ver o papel. E que desconfias de mim
— continuou Emília, tomando um ar pesaroso, e pregando os olhos no chão.
— Não, minha Emília; não é desconfiança, é só
curiosidade, mas nem essa já tenho — acrescentou com ternura o camponês,
lançando-lhe um braço em torno da cintura —; já até nem quero ver esse maldito
papel que foi a causa de tu te agastares comigo.
— Agastar-me contigo? Estás a brincar —
replicou-lhe Emília, dando-lhe a mão que apertou com afeto.
— Vamos para a mesa, rapazes — grita a velha
Catarina, com voz de estentor: — toca a consoar. Aqui não há guisados, mas o
que há é de boa vontade. Sô
padre-cura... O Jerônimo!, conduz o sô
padre-cura.
Aos gritos de Catarina, Diamante empinou-se,
e todos se dirigem para a mesa.
Jerônimo conduziu o padre e o boticário, os
quais tomaram assento; e os restantes, ao seu exemplo, fizeram o mesmo.
A mesa vergava com o peso de uma taleiga
ingente, atolada de chispes de porco e nabiças, que estavam que os anjos os
podiam comer, segundo a frase da boa da dona da casa: ao lado campeavam dois
avultados canjirões de vinho da lavra do tio Jerônimo, que amiúde se foram
despejando nos canecos parciais, que giravam em contradança sucessiva pelas
mãos dos convivas. Uma ampla escudela, cheia de bolos de festa, completava a
guarnição e atiçava os olhares do boticário, que já se fazia com terra de engolir
a sua meia dúzia, e sepultar outra meia nas amplas algibeiras do sobretudo.
— Cá os bolos de festa são obra de Emília,
padre-cura — disse Jerônimo, oferecendo-os ao padre, e revendo-se na filha.
— Deus a abençoe, e faça tão feliz com Antônio,
como têm sido seus pais, já que têm as boas qualidades deles — respondeu o
padre, afagando a jovem camponesa, que lhe retribuiu, beijando-lhe a mão.
Antônio, durante a ceia, não tirara os olhos
dela, mal podendo deixar de lhe dar reparo da sua visível tristeza. Emília bem
o tinha percebido, e por isso lutava consigo por aparentar de distraída e
satisfeita; mas debalde porque o pesar oculto, que lhe confrangia o peito,
transpirava manifestamente no seu rosto. Antônio conhecia a fundo a pureza
daquela alma, e amava-a como se pode amar uma mulher; todavia, não lhe querer
ela mostrar aquele sinistro papel, estar triste e preocupada na véspera do seu
noivado, quando importava estar mais alegre do que nunca, era uma coisa cuja
explicação ele não achava, por mais que ruminasse: e ainda estaria a pensar
nisto, se não fosse um berro estrondoso da tia Catarina, que se dirigia aos
aldeões nestes termos:
— Então, rapazes, parece que estão mais para
dormir do que para comer. Fortes piscos, não bolem com os queixos senão para
dar à taramela. Eu bem sei o que vocês querem... Não estejam a olhar para mim
de boca aberta, que eu bem os entendo... Aposto que querem ir na brincadeira?!
Hein?
— É verdade, tia Catarina; queremos, queremos
— romperam todos os aldeões, erguendo-se, como maioria de câmaras legislativas
ao aceno ministerial.
— Pois dancem e brinquem com a breca; mas
olhem que eu ainda quero um resto da noite para dormir, ouviram? — disse o tio Jerônimo,
erguendo-se da mesa, depois de ter dado graças, e haver recebido a bênção, que
o padre deitou a todos.
Os aldeões, acesos em alegria, saltaram para
o meio da casa, e dispuseram-se a formar danças buscando os seus pares válidos.
Antônio travou do braço de Emília, dizendo-lhe:
— Isso é mentira.
— O quê, Antônio?
— O que estás a pensar.
— Assim Deus o quisesse — exclamou ela,
volvendo um olhar a Antônio, onde se pintava a angústia.
— Mas que tens tu, Emília? Olha que me
preocupas, ainda que eu o não queira — replica-lhe o jovem aflito.
— Pois não falemos mais nisto. Sabes que
mais, vamos dançar — diz ela desviando adrede o fio da conversa; e nisto lhe
enfiou o braço, esforçando-se por se mostrar contente e incitando-o a dançar.
Antônio quase que compelido por Emília
chegou-se com ela para junto dos aldeões, que formavam rodas, ou coreias,
bailando em círculo, de mãos dadas, as quais soltavam, tomando o braço aos
pares, e andando assim em volta, quando em chusma respondiam, cantando, a
quadra, que um, a solo, havia entoado.
À chegada dos noivos, uma aldeã mocetona,
gentil e morena, que tentara seus requebros a respeito do amante de Emília,
rompeu nesta cantiga:
Janelas avarandadas
Longe deitam as biqueiras:
Não há vida mais feliz
Que a das raparigas solteiras.
Os camponeses andando em roda, responderam em chusma:
Ó giralda, giraldinha,
Toca, toca o giraldar,
Meia volta, uma volta
Outra volta eu quero dar.
A primeira quadra era uma luva lançada a terreiro: Emília logo percebeu onde ia bater a pedrada, e por isso respondeu:
O que pinheiro tão alto,
O que pinhas tão douradas;
Não há vida mais feliz
Que a das mulheres casadas.
A resposta foi acolhida com aplausos; porque quase todos percebiam a alusão; e Antônio, que a percebia melhor do que ninguém, olhando Emília, entoou a seguinte copla:
A laranja, quando nasce,
Logo nasce redondinha:
Também tu, quando nasceste,
Logo foi para ser minha...
Um uivo agudíssimo, lúgubre e prolongado, cortou a toada. Fora Diamante que o soltara, erguendo-se de um salto de ao pé da lareira, fitando a porta, com o pêlo hirto, os olhos em fogo, e açoitando as espáduas com a cauda, como que preparando-se a arremeter um inimigo invisível.
No mesmo instante uma voz rouca e cava, mais
infernal do que humana, entoou, da parte de fora da casa, esta quadra, que
parecia responder à de Antônio:
O limão tira o fastio:
A laranja o bem-querer
Tira tu dela o sentido,
Que tua não pode ser.
— Isto é demais! — brada Antônio, aceso em cólera, arremetendo ao canto da casa, onde estava o seu varapau.
— Jesus! Santo nome de Jesus — exclamaram as
mulheres.
A porta foi aberta, e todos os homens, menos
o padre e o boticário, saíram armados do que acharam à mão. Antônio os
precedia, levando-lhes grande dianteira; e Diamante, espumando de sanha,
pulava-lhes na frente.
Catarina, enfiada, agarrou-se ao padre
gritando-lhe:
— Em nome do bento Jesus, sô padre-cura; detenha o meu Jerônimo —
mas o padre, desembaraçando-se dela, correu para Emília, que baqueava no chão,
sem sentidos.
— Algum espírito para esta pequena cheirar —
brada o boticário, dirigindo-se às aldeãs, que aterradas cercavam Emília.
— Ai! A minha filha, que está morta! —
exclamou a tia Catarina, lançando-se sobre ela.
— Olhe que a sufoca, tia Catarina — diz-lhe o
padre, separando-as. — Está só desmaiada. O melhor é desapertá-la.
— Desapertem-lhe as roupinhas, que eu não sei
de mim — diz Catarina às raparigas, que esfregavam os pulsos e as fontes a
Emília com vinagre sete-ladrões, e lhe faziam respirar mostarda. Que papel é
esse? — continuou ela, pegando no misterioso bilhete, que saltara do seio de
Emília ao desapertarem-na. — Veja lá, sô
padre-cura, que eu disso nada entendo.
O padre tirou os óculos, e dispunha-se a
lê-lo, quando um clamor de vozes, vindo da parte de fora, distraiu a atenção a
todos.
— Que desgraça! Que desgraça! — exclamou o
tio Jerônimo entrando, e atirando consigo para cima de um banco, e depois
desatando a chorar, como uma criança.
— Que foi? — pergunta Catarina, toda cheia de
espanto — que foi que aconteceu, Jerônimo?
— Assassinaram o nosso Antônio!
Um grito de terror saiu da boca de todos.
— Assassinaram Antônio?!... E quem foi o
assassino?!... — pergunta o padre, tomado da mais viva aflição — Onde está? Não
o prenderam?
— Qual prender! Isso é bom de dizer —
respondeu um dos rapazes da aldeia. — Vá lá prendê-lo à corrente onde ele se
atirou da quebrada da serra.
— Mas como foi isso? — interroga o boticário.
— Ora como foi? — continua o mesmo rapaz. — Antônio
saiu daqui, e adiantou-se de nós: lá em baixo ao voltar, quase ao pé da
encruzilhada, aí é que me parece que foi que o meliante o assaltou, pois foi aí
que o encontramos estirado com a cabeça aberta, e o corpo feito num crivo de
facadas.
— Santo nome de Jesus! — gritaram todos.
— Que fatalidade! — disse o padre, erguendo
as mãos ao céu. — E como souberam que o malfeitor se despenhou na corrente? —
continuou o padre.
— Porque Diamante se lançou a ele com unhas e
dentes — prosseguiu o aldeão. — Nós ainda o vimos, na subida da encosta a lutar
com o matador de Antônio; mas não pudemos ser bons para aquele patife; porque,
assim que nos acercamos mais, vimos cair o pobre do cão, e o homem a seguir
para o lado da quebrada. Diamante estava cosido a facadas. Nós, quando vimos
tanta maldade, seguimos todos aquela alma danada dispostos a arrancar-lhe as
entranhas pela boca, ainda que fosse o demo em pessoa; mas ele tirou-nos este
trabalho; porque, ao chegar à quebrada, lançou-se à corrente...
Uma risada esganiçada, estridente, nervosa e
aguda, interrompeu o aldeão.
Era Emília que, voltando a si, entreouvira a
narração da morte de Antônio; e que, desvairada pelos terríveis acontecimentos
daquela noite, soltara aquela gargalhada.
Todos espavoridos e pasmados a rodearam.
— Foste tu! — clama ela, pálida, convulsa, e
enviesando os olhos. — Foste tu, malvado, que o mataste? E porquê?!... Porque
sempre te tive ódio... Ódio! Sim, ódio, e muito ódio!... O meu coração já o
adivinhava... Mas porque não avisei eu Antônio?!... Tu já me tinhas dito neste
papel que o havias de matar... Oh! Neste papel, que tu me entregaste, por entre
o tumulto, ao sair da freguesia!... E eu aceitei-o!... Julgando que era Antônio,
que me apertava a mão!... Mas ele ali está!... Está ali a devorar-me com os
olhos!... — continuou ela com um tom de indizível raiva, apontando para o velho
Jerônimo, que a soluçar a olhava, debulhado em lágrimas; depois contorcendo-se,
como possessa de espírito mau, caiu em novo desmaio.
— Minha filha! Minha querida filha! — clamou
Catarina de joelhos, junto dela.
— Mas que papel é esse, de que fala ela? —
diz Jerônimo.
— Talvez seja o que o padre tem na mão, que
foi achado no seio de Emília — responde uma aldeã.
— Ai! Nem de tal me lembrava já — diz o
padre. — Estou como fora de mim. Vamos a ver se o papel explica alguma coisa. O
padre leu o seguinte:
“Emília,
pensa bem quanto pode um amor desprezado; e fica certa de que Pedro, assim como
te soube amar, também saberá vingar-se.”
Eram as terríveis palavras que Pedro, o
militar, proferiu ao despedir-se de Emília, quando a fora pedir para esposa aos
seus pais, e ela o recusara.
O seu infernal protesto de vingança fora
cumprido.
***
Tinham decorrido dois anos, o aspeto da
aldeia tinha mudado: era triste e árido. A família de Jerônimo, que fora o
centro da alegria, em torno da qual gravitavam os pobres camponeses, estava
curtida de pesares e angústias.
Era uma tarde ao pôr-do-sol: o tio Jerônimo,
encanecido e curvado, estava sentado à porta da sua habitação, olhando fito o
horizonte, onde ele contemplava o astro do dia findando a sua carreira, como
para ele já tinha findado a sua ventura. Era a imagem da sua sorte! Duas
lágrimas deslizavam pelas faces do pobre velho.
Catarina, magra, dobrada, e como demente,
rezava ao pé do seu marido.
No meio da estrada, junto de uma
encruzilhada, via-se uma camponesa de poucos anos, sentadinha num valado,
próximo de uma cruz tosca de madeira, que se erguia de entre as piteiras. Uma
palidez mortal, como véu mortuário, cobria-lhe o rosto. Os seus olhos, posto
que formosos, divagavam errantes e sem intenção. Os olhos são os núncios da
inteligência; neles não havia expressão, porque na mísera aldeã não havia
entendimento. Era a louca da aldeia; a mal-aventurada Emília; aquela que dantes
fora chamada Flor da Serra e o sítio onde ela estava, o lugar em que tinham
assassinado Antônio, o esposo do seu coração.
Seis horas soaram no campanário da freguesia.
O som triste e pesado do sino pareceu arrancar dolorosas recordações à pobre
doida; levantou a cabeça e ergueu-se, olhou a aldeia, e depois tomou pela
estrada, para o lado da freguesia, e desapareceu.
Deram sete horas, deram oito, e Emília ainda
não aparecia em casa; deram oito e meia; deram em fim nove, e ela sem aparecer.
— Vão-me procurar a minha filha! A minha
querida Emília! — grita Jerônimo, cheio de inquietação.
— Ela aqui está — lhe respondem uns aldeões
que traziam Emília em braços, pálida e fria. — Foi encontrada no cemitério,
sobre uma sepultura semeada de flores.
Era a sepultura de Antônio.
Emília tinha voado para ele.
---
In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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