NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO
O altar as
vagas
o dossel a
espuma!
Missas
rezadas pelo vento,
ora pelos
fiéis defuntos que se foram
noutras
vagas.
Ora pelas
barcaças que, uma a uma,
buscaram
as sereias na distância
e se foram
com elas.
Sobre o
altar, entre círios, que não são
os círios
murchos das igrejas velhas
mas o lume
de estrelas,
ELA,
Nossa
Senhora da Apresentação.
Aquela
que não
tem mantos da cor do céu,
nem fios
doiro nos cabelos,
nem anéis
nos dedos;
aquela
que não
traz um menino nos seus braços
porque os
seios mirraram
e já não
têm pão para lhe dar;
aquela
que tem o
corpo negro e sujo
e os ossos
a saltar
da pele
e dos
rasgões da saia e do corpete;
Nossa
Senhora da Apresentação
da
Beira-Mar,
que tem
capelas
em cada
peito de marinheiro,
que morre
e, num instante,
se renova
e que anda
quer nos
engaços do sargaceiro
ou nas
gamelas do pilado
e
palhabotes da Terra Nova.
Aquela
a quem
todos adoram.
Dos
meninos
feitos nos
intervalos das campanhas,
aos
bichanos que limpam de cabeças
e tripas
de pescado
as
muralhas do cais.
O dossel a
espuma.
O altar
das vagas
— e que
altar enorme! —
Entre
círios de estrelas,
Nossa
Senhora da Apresentação
e
Justificação
— a Fome!
OS DOIS SONETOS DE AMOR DA HORA TRISTE
I
Quando eu
morrer — e hei de morrer primeiro
Do que tu
— não deixes de fechar-me os olhos
Meu Amor.
Continua a espelhar-te nos meus olhos
E
ver-te-ás de corpo inteiro.
Como
quando sorrias no meu colo.
E, ao
veres que tenho toda a tua imagem
Dentro de
mim, se, então, tiveres coragem,
Fecha-me
os olhos com um beijo.
(Eu, Marco
Póli)
Farei a
nebulosa travessia
E o rastro
da minha barca
Segui-los-á
em pensamento. Abarca
Nele o mar
inteiro, o porto, a ria...
E, se me
vires chegar ao cais dos céus,
Ver-me-ás,
debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus,
II
Não um
adeus distante
Ou um
adeus de quem não torna cá,
Nem espera
tornar. Um adeus de até já,
Como a
alguém que se espera a cada instante.
Que eu
voltarei. Eu sei que hei de voltar
De novo
para ti, no mesmo barco
Sem remos
e sem velas, pelo charco
Azul do
céu, cansado de lá estar.
E viverei
em ti como um eflúvio, uma recordação.
E não
quero que chores para fora,
Amor, que
tu bem sabes que quem chora
Assim,
mente. E, se quiseres partir e o coração
To peça,
diz-mo. A travessia é longa... Não atino
Talvez na
rota. Que nos importa, aos dois, ir sem destino?
A NAU PERDIDA
Pobre, lá
vai! Que rombo no costado!
Como a
água a penetra aos borbotões!
Açoita-a,
em fúria, o Mar. Adorna ao lado.
Anda à
mercê das vagas, dos tufões!
Mas segue,
segue em frente. O vento a ajuda!
Galga nas
ondas, que doidinha, olhai!...
Julga-se,
ainda, a nau que dantes era,
por levar,
no porão, uma quimera,
por ir, do
vento na refrega aguda,
ovante e
sem saber per'onde vai!
Julga-se,
ainda, a nau que dantes era...
– o que
passa não torna..
Na pobre
nau perdida
a água
entra e a adorna.
Vai sendo,
aos poucos, pelo mar sorvida.
Na agonia
estrebucha. Num desejo
de vida e
luz, arfante, desesperada,
busca
furtar-se ao comprimente beijo
do Mar que
a envolve. – Após, é o Mar e nada...
Doirado
como um astro,
haste
esquecida em campo onde as mondas
colheram
tudo, o topo do seu mastro
fica
esperando ainda sobre as ondas.
Na rota
pelo mundo
– ao
deus-dará na vaga azul e infinda –
nós vamos
– nau perdida em Mar profundo –
joguetes
do tufão;
mas
conservando, ainda,
na última
Esperança a última Ilusão.
VARINA
Eu mudei
de pincel e de paleta
— embora
seja a mesma a tinta com que escrevo —
mas mudei,
que, de repente,
surgiste
diante de mim.
Não é que
me perturbes, mas eu sinto
que alguma
coisa me comove ao ver-te.
Não é que
te examine, porque sei
que me é
quase impossível,
que me é
mesmo impossível descrever-te.
A tua
história, sim? A história que se repete
e é sempre
nova porque há sempre gente
que nunca
a ouviu
ou que não
a quis ouvir.
O cais
viu-te nascer!
Corrias,
loucamente, pelas retas
intermináveis
dos paredões
de cimento
e granito,
e em
caixotes com cheiro de sardinha
fazias
tabogan das linguetas
— o
tabogan dos parques infantis
que não
pudeste ver.
Assim,
faminta e seminua
mas livre
como os peixes
fizeste-te
mulher!
Depois foi
o correr das ruas da cidade,
enrouquecendo
a gritar:
—
"Quem merca os camarões"...
Depois um
que voltou da Terra Nova
e te olhou
como fera sequiosa
de carne,
quando o
lugre, ao chegar, entrou na doca.
Depois o
inevitável!
O luar...
A Senhora
d’Agonia...
A quentura
de Agosto...
E, então,
não era só
o peso da canastra,
era o peso
dum filho
e a fome
de dois para matar,
até que o
lugre voltasse
e se
esquecesse
o calvário
da luta...
Um dia no
intervalo da campanha
o sexo
falou mais alto
e o
coração calou.
Foste dum
outro homem e, depois,
de dois,
de três.
Quando ele
voltou
encontrou-te
perdida
e tu
perdeste-o.
Hoje, num
outro porto, ainda gritas
o teu
pregão.
Quando um
homem te encontra fora de horas,
para ele
foi sempre um bom encontro...
e...
"até mais ver"...
Vês! Eu
sei a tua história...
(Há tantos
que a não sabem!)
E, no
entanto,
Dum homem
só ou de cem,
num porto
do meu país ou num porto de Islândia
Tu
surgiste aos meus olhos
como a
mesma mulher.
***
Senhor! De
que Valeu o Sacrifício?
Quantos
desejam, Senhor,
na calma
de uns seios brandos
ter sonhos
e ter amor...
Os que
mendigam na vida
anseiam
por ser meninos
e
aninhar-se
— depois
da faina de um dia, cansados já de ser homens —
junto dos
seios de alguém.
Senhor! De
que valeu o sacrifício,
se os
seios não se abriram
nem se
deram a ninguém!
DO ALTO MAR
Tripulação!
às gáveas
e às enxárcias;
ao leme e
aos cordames;
atenta à
tempestade
que anda
no Mar
e vai
no nosso
coração.
Tripulação!
Ajuda a
tempestade...
Deixa ruir
o mastro da mesena!
Lança à
boca das ondas o sextante!
Deixa ao
sabor das vagas o navio!
Não tenhas
pena!
Quando
haja só convés ao raso de água:
Tripulação...
Atenta.
---
Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.
Se quando a Morte chegar nos vir aos dois / que nos leve a ambos / ou parta só / porque não há escolha / o Amor não parte./ Apenas dura.
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