quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Quebrante"

QUEBRANTE
  
Que  vontade  a  Maria  Peneireira  não  tinha  de  ter  um  filho!  Vivia  rezando  pra  São  Bento não fazia conta dela, a mó’ que. Promessa e mais promessa, jejuns em louvor de quanto  santo conhecia, resguardo e rejume louco, dava tudo em água de barrela, dizendo, verdade era  que  dentro  de  três  anos  nada  tinha  arranjarava.  Andava  caindo  no  desânimo,  duma  vez,  quando,  em  razão  duns  barulhos  caseiros,  largou  do  Nastácio  e  foi  campear  a  querência  antiga, a casa dos pais.

Foi pouquinho, o tempo que passou na querência antiga. Pissuía um coração mole,  enrabichou-se de repente por um tropeiro que navegava dos três ranchos pra cá e de cá pros  três  ranchos,  por  nome  de  Juquinha  Hortênsio.  Bateu  as  asas,  um  belo  dia,  e  arranjaram  o  ninho ali pro Chico Marques, mais pra ali, mais pra além, por aí assim. Ê lá vida boa, a que  eles gozaram! Só Deus c’os anjos poderão saborear uma vida semelhante!

As orações da Maria Peneireira na certeza tiveram mais favor, dês que ela pegou de  amores c’o Juquinha Hortênsio: na certeza, porque, revirados poucos meses, ela pricinpiou a  sentir  enjôos  de  estômago,  entojo  por  quanta  coisa  havia,  tonturas  e  outros  sinais  de  esperança;  revirados  mais  uns  dias,  mais  uns  poucos  de  meses,  deu  de  engordar  à  vista  de  todos;  correram  trinta  dias  por  um  mês,  mais  um,  mais  outro,  e  São  Bento  afinal  teve  compaixão da Maria, mandando-lhe um filho bonitinho que era ûa maravilha.

Aconteceu  o  que  havia  de  acontecer:  a  criança  foi  levada  à  igreja,  batizada  por  Bento, mas não chorou quando o padre lhe botou sal na boca. A mãe, que estava junto, sentiu  um baque no coração, porque é ruim quando a que vai pra pia não estranha o amargo do sal.  Mas  o  sacramento  chegou  ao  fim,  ela  segurou  o  filhinho,  beijou-o,  beijou-o  um  dilúvio  de  vezes, e troteou pra casa, que não era tão nas vizinhanças, pois uma légua e um quarto não se  vencem c’a ponta dos beiços. O menino, enrolado numa roupa muito linda e enfeitada de fitas  de quase todas as cores, nem mexia, parecia ir dormindo.

Quando frontearam a venda que tem pro lado esquerdo, na encruzilhada, a irmã da  Maria Peneireira, que estava ali se pouso, chamou-a, e desejou ver o nenê. A Maria bem quis  dizer: qual, Valência, é melhor deixar o coitado dormir seu sono sossegado −, mas não teve  ânimo,  e  entregou-o  dormindo  à  Valência.  A  outra  desembrulhou  o  chale  que  o  encobria,  reparou firme no rosto mimoso, fez uma cara alegre e risonha, e disse:

− Ah! Que belezinha, Maria, que belezinha! Eu, se tivesse um capanga assim, até me  contemplava a mais feliz de todas as mulheres! E tem um dormido tão mando! Ah! Que graça,  que encanto!

Ora,  quando  a  Maria  Peneireira  entrou  em  casa  e  foi  pôr  o  pequetito  na  cama,  o  pequetito ficou co’a  cabeça descaída pra um lado, amolengada e sem jeito. Ela cuidou que  fosse o sono, arranjou o travesseirinho, amaciou a colcha, deitou-o: mas a cabeça pendeu pra  uma banda, que nem um trapo meio pesado, os olhos entortaram-se, a boca franziou-se dum  modo esquisito. E aí a pobre da mãe, desatinada, clamou a céus e terra que o Bento ‘tava nas  últimas, morre-não-morre, e que aquilo não passava de quebrante.

Por  volta  da  meia-noite,  mais  ou  menos,  a  criança  fechou  pra  sempre  os  olhos,  passando  desta  vida  pra  outra  feito  um  cuitelinho.  A  Maria,  a  princípio,  não  sabia  que  pensamento havia de escolher, dentre tantos que lhe alvoroçavam o espírito aloucado de dor:  mas quando, mas quando, tendo posto mais atenção no vulto do filho morto, viu ainda aquela  triste cabeça como que desconjuntada, começou a chorar e saluçar alto, perdidamente.

Os galos já estavam violando, a noite era de lua. Ela conservara-se de pé junto da  cama,  tremendo  como  um  ramo  de  folhas  noviças,  que  o  vento  sacode,  cada  vez  que  os  gemidos  a  queriam  estrangular.  Aí  então  afastou-se  de  soco,  c’os  cabelos  arrepiados  e  um  fogo temeroso nos olhos, gritando:

− Foi aquela desgraçada da Valência que botou quebrante no meu filho! Foi aquela  bica  à  toa,  aquela  juruveva,  aquela  potranca  danada!  Mas  há  de  me  pagar,  há  de  me  pagar  tamanha desventura que me dá.

Tomou o filho morto nas mãos, saiu pela estrada, sozinha, corre-que-corre. Ninguém  pôde ter mão dela, a violência era de mais. Seguiram-na de longe. Assim que se aproximava  da venda da encruzilhada, já ia aos brados chamando pela irmã:

- Ó Valência! Valência!

A  Valência,  acordada  assim  fora  de  horas,  atemorizou-se,  escondeu-se  bem  nas  cobertas. Mas logo que reconheceu a voz da irmã, voz cortada de lágrimas, saltou da cama,  pichou um chale na cabeça, rompeu na porta.

A lua ia empalidecendo, queria enfiar a cabeça no seio da montanha mais alta que se  via duas léguas em roda. E a Valência, vendo o jeito desmantelado da irmã, cujos peitos se  levantavam  e  baixavam  a  todo  instante  como  se  fossem  dois  polmões  que  estivessem  latejando,  chegou  pra  perto  dela.  O  Juquinha  Hortênsio  e  as  mais  pessoas  que  tinham  acompanhado ainda vinham a umas cem braças.

Neste artigo a Maria Peneireira, pondo com muito cuidado o filhinho em riba dum  pranchão  rente  da  casa,  atirou-se  à  Valência,  agarrando-a  pelo  pescoço,  apertando-lh’o,  c’umas unhas que pareciam tão afiadas como as do canguçu. E rugia, que rugia:

−  Você  deitou  quebrante  no  meu  filho,  ordinária!  Você  botou  quebrante  no  meu  filho, lagacha!

A  Valência  debateu-se,  sufocada,  tremeu,  estremeceu,  endireitou-se  toda,  ficou  depois toda convulsa, depois rija que era ver um defunto.

E assim que o Juquinha Hortênsio puxou a Maria, contendo-a pela força bruta, ela  fez menção de ajoelhar-se, rogando:

− Pelo amor de Deus , deixe que eu mate aquela malfadada!

Arrastaram-na para longe. E de longe ela gritava ainda, até desaparecer na baixada  do caminho:

− Ah! Piguancha sem sangue, você botou quebrante no meu filho!

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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007   

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