ÂNSIA ANTIGA
O Neco da Prata botou a viola na
peitaria e cantou a primeira moda da função. Povo ficou de boca aberta, em roda dele, admirado.
A parceirama estava que nem mexia, com gosto
de escuitar a voz desse peito limpo assim. E como não tinha a mais
pequena arage nessa hora, e a
animalada não fazia
rumor de qualidade
alguma, a pelenga
ia morrer nas
beirinhas do ribeirão, enternecida de tudo:
“Todo’ os passos cantam bem
não cantam como a sabiá.
Chó! chó! passarinho,
chó! chó! sabiá:
que eu canto
pra não chorar.”
Só isso, mais nada, mas porém
toado dûa maneira que só mesmo o Neco seria capaz de
arranjar. O pinho,
então, quando era
pra acabar o
verso, a mó’
que gemia que
nem um cristão amaguado. As mulheres escorrupichadas
pelos cantos da sala, na escada, na cozinha,
tinham fechado a boca por milagre, falando mal e descortesmente: e
punham cada olhos no folgazão que a
gente não sabe como não o espatifavam! A candeia de azeite, pendurada num mancebo pra uma banda, perto da porta do
terreiro, alumiava pouco, já dava uma luz murcha e tremida, sinal que estava desdeixada: o
tempo não chegava pra se ouvir e aprender a moda nova daquele cantador tão cuera.
Assim que
o Neco rasgou
duma vez o
pinho arrematando a
cantoria, houve um
reboliço, um terramote
na casa. Aí
que lembraram da
vida, que cuidaram
na festa, nas
lamparinas, na ceia. O dono da casa, um home de muitos anos, pombo
devera, seo Romualdo, saiu do catira e
foi lidar c’os trens de comer: e quem
reparasse nele havia de ver que dois
pingos d’água lhe
paravam um numa
ponta, outro noutra
do bigode. Coisa
que de vez
em quando sucede:
uma pessoa edadosa
recordar-se do que
passou, por ouvir
um toquinho qualquer, e chorar de saudade.
Seo Romualdo tinha feito uma
reza, promessa antiga a santa cruz, e depois da reza deu
essa festa: toda
a rapaziada da
figueira e do
dourado se reunira,
os velhos também
apareceram, e a
gente ficou empinhocada
no terreiro, perto
da cruz. Capelão,
foi o Zé
Domingue, que tem um tino onça pra estas cerimônias e conhece rezas como
ninguém. Logo que acabou a devoção,
disperaram um dilúvio de salvas de garrucha. Nesse instante, nem mais e nem menos, levantou-se lá no cocuruto
daquele morro a cara da lua, uma lua cor de sangue, muito
esquisita, que depois
foi ficando cor
de rosa e
afinal embarqueceu, que
foi uma boniteza.
Êta! Caipirada do matão! Vocês
são mesmo de virar e romper pra um divertimento! Seo
Romualdo, que se
pela por uma
pândega dessas, ria-se
a toda hora,
alegre por ver
os convidados alegres,
entusiasmado c’a disposição dos mais. Subiu uns três palmos arriba do chão, c’a moda do Neco da Prata, porque de
uns par de meses pra cá não se conheceu lindeza
tamanha, nos pagodes da fazenda e dos arredores. E pegou a remorder a
toada, indo e vindo de um lado pra
outro, na cozinha, atabulando a ceia, caceteando a companheira, nhá
Tereza, que não sabia o que fazer, de
tão azoretada.
Enquanto se arranjavam os
perparos da mesa, o Neco da Prata, que não quis mais ficar
na roda p’r
amór de a
laranjada que estava
arrebentando, encostou-se no
cocão dum carro que se via pegado c’a porta, puxou sua
faquinha da cinta, alisou uma palha, trouxe um
coto de fumo
da ‘gibeira, picou,
que picou, e
deu por pronto
um cigarro. Ia
tirar fogo da
binga, já apertava a pedra nos dados da mão esquerda, em cima da estopa,
e o fuzil na direita, quando sentiu um
vulto mesmo rente consigo, parecido uma visão. A primeira coisa que fez foi
estremecer um bocado;
mas, da vereda
que estremecia, pressentiu
um chamado cochichado, depois dum aceno ligeiro c’um
lenço. Caminhou na linha do aceno e topou peito
a peito c’a Maria do Viriato.
Aquele corpo
da Maria, tão
cubiçado, de tanto
tempo, foi ver
o calor de
uma fogueira, pro Neco, deixou-o
bambo, bambo. Ela então ia-lhe explicando que agora estava às ordes dele, afinal chegara o dia que ele
desejava com tamanhas paixões e que ela esperava com toda a vontade, mas porém com tamanho
medo! Porque o Neco bem sabia (continuava a
morena) que o Viriato era um tigre, de zangado: por qualquer miuçalha de
nada armava um barulhão temeroso,
quanto mais se
percebesse a enleada!
O Neco, aí,
pôs-lhe as mãos
nos ombros e pegou a contemplar
os olhos tão pretos que foram a perdição e o desespero da sua vida, esses meses pra trás: e como a lua
ajudasse, passada pelos vãos de uma arve-de-lagarto debaixo da qual proseavam, ele podia reparar
que os beiços dela tremiam que nem os de quem
está com febre assezoada.
Proseavam longe
da casa umas
dez braças, pra
uma banda do
paiol, e só
mesmo quem fosse
muito desconfiado ou
muito especula era
capaz de calcular
que os dois
se reuniram tão vizinho c’a
festa. O Neco percurava assossegar a amante, mas qual! A Maria era só
aquela tremedeira! Por
último, vendo que
ela estava assustada
e medrosa de
mais, ele pregou-lhe um pito acochado:
−
Ah! Nhá Maria!
Então é assim
que vancê me
quer bem? Pois
se me estima
de verdade, escusa de ‘tar que
nem uma varinha de taquari, bule-bulinho p’r amór de o vento. Quem
tem amor, não
deve pensar no
perigo. Vancê nunca
ouviu dizer que,
quanto mais perigoso,
mais gostoso? Olhe,
nhá Maria: não
se atemorize à
toa. Lembre-se do
verso que fala: um home nasceu pra outro, a sorte Deus
é quem dá. Nhô Viriato...
Neste repente houve um reboliço
macota na sala do fandango. A moça, nem bem lhe
bateu nos ouvidos
semelhante guaiú61, correu
pra dentro, esquipado
e violento como
uma veadinha. O Neco teve tempo
só de recambiar o corpo e sumir numa touceira anexa à arve junto de que se achava: e saiu um pelote de
gente pro terreiro, fazendo uma gritaria que não tinha mais jeito.
Era uma
briga séria. O
Viriato, que já
andava político, de
dias, c’um tal
Serrador, passou beirando co’ele
e puxou pigarro da goela. O Serrador não gostou da leréia, disse-lhe uma liberdade, o Viriato rebateu-lhe com
outra, e a coisada principiou braba de tudo. Num momento tiveram que romper pra fora, porque a
caboclada enrolou-se co’eles num pacote, e
abriu.
No terreiro, a fúria aumentou que
foi uma disparidade! O Serrador, que era senhor
dûas mãos deste
porte e duma
destreza perigosa, deu
logo de dançar
e corcovear perto
do outro, feito um
tamanduá-bandeira no sujo62. E o Viriato, que já se via ocasionado duma
vez, corria em
riba dele, virava,
que virava, c’um
refe na mão
direita, mas em
pura perda de
tempo, que o Serrador era mesmo ventana, ver uma cobra.
Mas porém houve uma hora tirana:
o Viriato, com certa manha e tramóia, foi levando o Serrador até junto do carro, que estava
entestado c’a parede da casa, encurralou-o a conta inteira... E ia passar-lhe o refe, sem apelo
nem agravo, pois o Serrador tinha só destreza e no mais
era um perrengue,
magricela e franzino,
quando o Neco
da Prata pulou
no meio da
história, falando acelerado:
− Ora já se viu que desmancho sem
propósito! Vocês vêm pra festa de seo Romualdo
e armam um banzé deste feitio? Quem quer rixa escora o parceiro na
estrada, não é na casa dos mais,
principalmente se está de favor, como agora. Larguem mão disso, é melhor!
O Viriato buzinou, que foi uma
tristeza. Disse as do cabo pro Neco, arreliou-se em demasiado. E o Neco, assim que não pôde mais,
assim que viu que nem um companheiro lhe
assistia, apaziguando o brigador, não teve remédio senão recuar dois
passos pra trás, segurar um fueiro
do carro e
descê-lo com vontade
nas munhecas do
Viriato: uma das
pauladas acertou-lhe no chato da
cabeça, e o Viriato caiu redondo no chão, feito um macuco, apesar que inda revolvia o refe pro ar.
Tudo ficou
ali num silêncio
que dava altura
de se ouvir
ûa mosca. Mal
apena o ofendido
gemia um pouco;
pra mais longe,
sim, os animais
disparavam, relinchando, espaventados. Foi preciso que o próprio Neco
falasse:
−
Home, vocês não
serviram pra apartar
as dúvidas, sirvam
ao menos pra
me prender, que eu ‘tou na alçada
da justiça, reconheço.
E os moleirões dos fandanguistas,
corridos, envergonhados, chegaram pra perto dele, passaram-lhe uma corda nos braços,
amarraram-no, imediato, no tronco da mesma árve-de-lagarto à
sombra da qual
ele tinha conversado,
fazia poucas horas,
c’a Maria, a
sua tão querida,
tão desejada Maria,
que agora o
olhava da porta,
co’a suspiração tomada,
quase louca.
Trataram de levar o preso no
sofragante. Ele perpassou pela Maria, deu-lhe adeus:
− Adeus , nhá Maria, vancê me
desculpe, sim?
A Maria sentiu um nó na garganta,
não pôde arresponder-lhe.
Ele falou mais baixico, assim
meio resmungado:
− Nhá Maria, pode-me esperar, que
eu faço logo a minha livração e volto. O caboclo morre, não tem como não morra. E eu escolhi
uma casião muito boa, vancê bem viu...
Depois, quando a comitiva garrou
chão, ele foi cantando, cantando, até desaparecer na dobra do morro. Dobraram o morro, e a
Maria ainda escuitou, muito tempo, o finzinho da moda:
“que eu canto
pra não chorar.”
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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