quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Ânsia Antiga"

ÂNSIA ANTIGA


O Neco da Prata botou a viola na peitaria e cantou a primeira moda da função. Povo  ficou de boca aberta, em roda dele, admirado. A parceirama estava que nem mexia, com gosto  de escuitar a voz desse peito limpo assim. E como não tinha a mais pequena arage nessa hora,  e  a  animalada  não  fazia  rumor  de  qualidade  alguma,  a  pelenga  ia  morrer  nas  beirinhas  do  ribeirão, enternecida de tudo:

“Todo’ os passos cantam bem
não cantam como a sabiá.
Chó! chó! passarinho,
chó! chó! sabiá:
que eu canto
pra não chorar.”

Só isso, mais nada, mas porém toado dûa maneira que só mesmo o Neco seria capaz  de  arranjar.  O  pinho,  então,  quando  era  pra  acabar  o  verso,  a  mó’  que  gemia  que  nem  um  cristão amaguado. As mulheres escorrupichadas pelos cantos da sala, na escada, na cozinha,  tinham fechado a boca por milagre, falando mal e descortesmente: e punham cada olhos no  folgazão que a gente não sabe como não o espatifavam! A candeia de azeite, pendurada num  mancebo pra uma banda, perto da porta do terreiro, alumiava pouco, já dava uma luz murcha  e tremida, sinal que estava desdeixada: o tempo não chegava pra se ouvir e aprender a moda  nova daquele cantador tão cuera.

Assim  que  o  Neco  rasgou  duma  vez  o  pinho  arrematando  a  cantoria,  houve  um  reboliço,  um  terramote  na  casa.  Aí  que  lembraram  da  vida,  que  cuidaram  na  festa,  nas  lamparinas, na ceia. O dono da casa, um home de muitos anos, pombo devera, seo Romualdo,  saiu do catira e foi lidar c’os trens de  comer:  e  quem reparasse nele havia de ver que dois  pingos  d’água  lhe  paravam  um  numa  ponta,  outro  noutra  do  bigode.  Coisa  que  de  vez  em  quando  sucede:  uma  pessoa  edadosa  recordar-se  do  que  passou,  por  ouvir  um  toquinho  qualquer, e chorar de saudade.

Seo Romualdo tinha feito uma reza, promessa antiga a santa cruz, e depois da reza  deu  essa  festa:  toda  a  rapaziada  da  figueira  e  do  dourado  se  reunira,  os  velhos  também  apareceram,  e  a  gente  ficou  empinhocada  no  terreiro,  perto  da  cruz.  Capelão,  foi  o  Zé  Domingue, que tem um tino onça pra estas cerimônias e conhece rezas como ninguém. Logo  que acabou a devoção, disperaram um dilúvio de salvas de garrucha. Nesse instante, nem mais  e nem menos, levantou-se lá no cocuruto daquele morro a cara da lua, uma lua cor de sangue,  muito  esquisita,  que  depois  foi  ficando  cor  de  rosa  e  afinal  embarqueceu,  que  foi  uma  boniteza.

Êta! Caipirada do matão! Vocês são mesmo de virar e romper pra um divertimento!  Seo  Romualdo,  que  se  pela  por  uma  pândega  dessas,  ria-se  a  toda  hora,  alegre  por  ver  os  convidados alegres, entusiasmado c’a disposição dos mais. Subiu uns três palmos arriba do  chão, c’a moda do Neco da Prata, porque de uns par de meses pra cá não se conheceu lindeza  tamanha, nos pagodes da fazenda e dos arredores. E pegou a remorder a toada, indo e vindo  de um lado pra outro, na cozinha, atabulando a ceia, caceteando a companheira, nhá Tereza,  que não sabia o que fazer, de tão azoretada.

Enquanto se arranjavam os perparos da mesa, o Neco da Prata, que não quis mais  ficar  na  roda  p’r  amór  de  a  laranjada  que  estava  arrebentando,  encostou-se  no  cocão  dum  carro que se via pegado c’a porta, puxou sua faquinha da cinta, alisou uma palha, trouxe um  coto  de  fumo  da  ‘gibeira,  picou,  que  picou,  e  deu  por  pronto  um  cigarro.  Ia  tirar  fogo  da  binga, já apertava a pedra nos dados da mão esquerda, em cima da estopa, e o fuzil na direita,  quando sentiu um vulto mesmo rente consigo, parecido uma visão. A primeira coisa que fez  foi  estremecer  um  bocado;  mas,  da  vereda  que  estremecia,  pressentiu  um  chamado  cochichado, depois dum aceno ligeiro c’um lenço. Caminhou na linha do aceno e topou peito  a peito c’a Maria do Viriato.

Aquele  corpo  da  Maria,  tão  cubiçado,  de  tanto  tempo,  foi  ver  o  calor  de  uma  fogueira, pro Neco, deixou-o bambo, bambo. Ela então ia-lhe explicando que agora estava às  ordes dele, afinal chegara o dia que ele desejava com tamanhas paixões e que ela esperava  com toda a vontade, mas porém com tamanho medo! Porque o Neco bem sabia (continuava a  morena) que o Viriato era um tigre, de zangado: por qualquer miuçalha de nada armava um  barulhão  temeroso,  quanto  mais  se  percebesse  a  enleada!  O  Neco,  aí,  pôs-lhe  as  mãos  nos  ombros e pegou a contemplar os olhos tão pretos que foram a perdição e o desespero da sua  vida, esses meses pra trás: e como a lua ajudasse, passada pelos vãos de uma arve-de-lagarto  debaixo da qual proseavam, ele podia reparar que os beiços dela tremiam que nem os de quem  está com febre assezoada.

Proseavam  longe  da  casa  umas  dez  braças,  pra  uma  banda  do  paiol,  e  só  mesmo  quem  fosse  muito  desconfiado  ou  muito  especula  era  capaz  de  calcular  que  os  dois  se  reuniram tão vizinho c’a festa. O Neco percurava assossegar a amante, mas qual! A Maria era  só  aquela  tremedeira!  Por  último,  vendo  que  ela  estava  assustada  e  medrosa  de  mais,  ele  pregou-lhe um pito acochado:

−  Ah!  Nhá  Maria!  Então  é  assim  que  vancê  me  quer  bem?  Pois  se  me  estima  de  verdade, escusa de ‘tar que nem uma varinha de taquari, bule-bulinho p’r amór de o vento.  Quem  tem  amor,  não  deve  pensar  no  perigo.  Vancê  nunca  ouviu  dizer  que,  quanto  mais  perigoso,  mais  gostoso?  Olhe,  nhá  Maria:  não  se  atemorize  à  toa.  Lembre-se  do  verso  que  fala: um home nasceu pra outro, a sorte Deus é quem dá. Nhô Viriato...
  
Neste repente houve um reboliço macota na sala do fandango. A moça, nem bem lhe  bateu  nos  ouvidos  semelhante  guaiú61,  correu  pra  dentro,  esquipado  e  violento  como  uma  veadinha. O Neco teve tempo só de recambiar o corpo e sumir numa touceira anexa à arve  junto de que se achava: e saiu um pelote de gente pro terreiro, fazendo uma gritaria que não  tinha mais jeito.

Era  uma  briga  séria.  O  Viriato,  que  já  andava  político,  de  dias,  c’um  tal  Serrador,  passou beirando co’ele e puxou pigarro da goela. O Serrador não gostou da leréia, disse-lhe  uma liberdade, o Viriato rebateu-lhe com outra, e a coisada principiou braba de tudo. Num  momento tiveram que romper pra fora, porque a caboclada enrolou-se co’eles num pacote, e  abriu.

No terreiro, a fúria aumentou que foi uma disparidade! O Serrador, que era senhor  dûas  mãos  deste  porte  e  duma  destreza  perigosa,  deu  logo  de  dançar  e  corcovear  perto  do  outro, feito um tamanduá-bandeira no sujo62. E o Viriato, que já se via ocasionado duma vez,  corria  em  riba  dele,  virava,  que  virava,  c’um  refe  na  mão  direita,  mas  em  pura  perda  de  tempo, que o Serrador era mesmo ventana, ver uma cobra.

Mas porém houve uma hora tirana: o Viriato, com certa manha e tramóia, foi levando  o Serrador até junto do carro, que estava entestado c’a parede da casa, encurralou-o a conta  inteira... E ia passar-lhe o refe, sem apelo nem agravo, pois o Serrador tinha só destreza e no  mais  era  um  perrengue,  magricela  e  franzino,  quando  o  Neco  da  Prata  pulou  no  meio  da  história, falando acelerado:

− Ora já se viu que desmancho sem propósito! Vocês vêm pra festa de seo Romualdo  e armam um banzé deste feitio? Quem quer rixa escora o parceiro na estrada, não é na casa  dos mais, principalmente se está de favor, como agora. Larguem mão disso, é melhor!

O Viriato buzinou, que foi uma tristeza. Disse as do cabo pro Neco, arreliou-se em  demasiado. E o Neco, assim que não pôde mais, assim que viu que nem um companheiro lhe  assistia, apaziguando o brigador, não teve remédio senão recuar dois passos pra trás, segurar  um  fueiro  do  carro  e  descê-lo  com  vontade  nas  munhecas  do  Viriato:  uma  das  pauladas  acertou-lhe no chato da cabeça, e o Viriato caiu redondo no chão, feito um macuco, apesar  que inda revolvia o refe pro ar.

Tudo  ficou  ali  num  silêncio  que  dava  altura  de  se  ouvir  ûa  mosca.  Mal  apena  o   ofendido  gemia  um  pouco;  pra  mais  longe,  sim,  os  animais  disparavam,  relinchando,  espaventados. Foi preciso que o próprio Neco falasse:

−  Home,  vocês  não  serviram  pra  apartar  as  dúvidas,  sirvam  ao  menos  pra  me  prender, que eu ‘tou na alçada da justiça, reconheço.

E os moleirões dos fandanguistas, corridos, envergonhados, chegaram pra perto dele,  passaram-lhe uma corda nos braços, amarraram-no, imediato, no tronco da mesma árve-de-lagarto  à  sombra  da  qual  ele  tinha  conversado,  fazia  poucas  horas,  c’a  Maria,  a  sua  tão  querida,  tão  desejada  Maria,  que  agora  o  olhava  da  porta,  co’a  suspiração  tomada,  quase  louca.

Trataram de levar o preso no sofragante. Ele perpassou pela Maria, deu-lhe adeus:

− Adeus , nhá Maria, vancê me desculpe, sim?

A Maria sentiu um nó na garganta, não pôde arresponder-lhe.

Ele falou mais baixico, assim meio resmungado: 

− Nhá Maria, pode-me esperar, que eu faço logo a minha livração e volto. O caboclo  morre, não tem como não morra. E eu escolhi uma casião muito boa, vancê bem viu...

Depois, quando a comitiva garrou chão, ele foi cantando, cantando, até desaparecer  na dobra do morro. Dobraram o morro, e a Maria ainda escuitou, muito tempo, o finzinho da  moda:


“que eu canto
    pra não chorar.”


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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007   

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