quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "João Maçarico"

  JOÃO MAÇARICO

   se  viu  só?  Pois  o  João  Maçarico,  um  homem  de  respeito,  que  vivia  no  ermo,  mourejando  como  lhe  permitiam  as  forças  dos  cinqüenta  anos,  foi  dar  então  em  velho  gaiteiro? Este mundo anda de pernas pro ar, não tem dúvida! Quem havia de dizer que um  filho de Deus  ajuizado como ele, que nunca  apreciou as folias do  arraial, nem as do mato,  virou pândego e saído feito um moço de pouca idade? Se não foi feitiçaria que lhe fizeram,  sem dúvida não passava de tramóia do coisa-ruim.

Magro e seco desde menino, meio arcado até, com um senhor nariz que parecia um  peixe campineiro, fino e espontado, mereceu o apelido do monjolinho, um pássaro tísico por  natureza e de andar duvidoso como o de João mesmo. E esse ditado dum cearense, que teve  com  ele  uma  rusga  onça,  mas  contudo  só  bate-boca,  ficou-lhe  agarrado  nas  costas  e  nunca  mais largou. Também, de certo prazo pra diante, o dono do nome a mó’ que não se importava  mais  que  lhe  chamasse  por  tal  jeito.  Quando  gritavam  de  longe:  ó  João  Maçarico?  –  ele  voltava logo a cara escorrupichada, atendendo. Afinal um conhecimento assim não é que faz  dor na gente!

Nunca teve pensão de casa, quando se achou de ponto: olhava as moças do tempo com  certa maneira de desprezo, desdenhando, não porque fosse um grande sujeito, rico ou muito  bonito,  mas  porque  não  encontrava  nem  uma  da  sua  simpatia;  acrescentava  que  isto  de  se  amarrar  um  a  uma  por  toda  a  vida  é  acontecimento  que  nasce  de  gostos  iguais.  Embora  houvesse um tal Nico da Venda, que lhe queria empurrar a filha, uma morena escanelada de  olhos  espertos  de  mais,  e  a  viúva  de  um  Chico  Mogango  que  punha  em  riba  dele  vista  cobiçosa de tudo, não ganhou rumo, não tinha embocadura, e ladeou que nem um lambari no  açude, nem bem se vai pôr a mão n’água.

O Nico da Venda, morador por ali assim onde hoje é a água espraiada, quando trazia o  seu pra capela, aos domingos e dias santificados, aconselhava-o sempre:

− Olhe, nhô João: um homem que quer ter sossego e paz na vida, só casado: ‘tá livre  de  apanhar  uma  chumbada,  em  autos  alheios,  ou  de  fazer  uma  mal-feita  numa  casa  de  qualquer  picanha  à  toa.  Despois,  chegando  a  velhice,  fica-se  adoentado,  sem  força  e  quase  sempre sem corage, e é uma boa mulher que serve de alívio e consolo, conversando com a  gente, arranjando uma mezinha, um caldo, um pires de arroz-doce.

Mas o danado foi sempre cabeçudo: respondia pro outro que isso era muita verdade,  muito  certo,  e  no  entretanto  que,  pra  se  dar  semelhante  passo,  é  preciso  ter  bons  haveres,  algum  peculiozinho  guardado  pras  horas  de  percisão,  que  vêm  mesmo,  mais  cedo  ou  mais  tarde.  Embirrinchou,  pode-se  dizer,  estaqueou  naquela  resolução,  e  não  campeou  noiva,  apesar que, segundo o que afiançava por aqui um fulano Tucunduva, mulher é mais barato  que égua – porque não hai cabocla que não case e poucos hai que tenham posses pra comprar  uma catirina. E não houve na praça de São Pedro, nem nas cercanias, caboclo que conseguisse  amolecer aquele coração de pedra.

Ora quem fala paga. O João Maçarico tinha-se gabado que não havia de tomar banhos  de igreja, a mó’ que pissuía reza encoberta para essa tenção, agora chegou-lhe a vez: viajando  pelo cinza abaixo, em canoa, caçando as antas e os veados do sertão fundo, contou-lhe um bugre  velho,  um  caiuá  manso,  que  o  poder  da  mocidade  voltava  com  uma  estúcia  muito  simple. E ensinou-lhe que tanto ou não tendo os cinqüenta anos justos, ele João  Maçarico  visse uma pataca de ovos (tempo em que os ovos custavam três por vintém!), batesse todos  numa gamela, até levantar escumarada, depois chegasse de assento pra só sentir a bafage, e  nada mais: com esta estúcia, dizia o caiuá, o homem mais cansado agüentava três viajadas por  noite.

O João Maçarico comeu, que comeu carne de anta, de macaco e de onça, que afirmam  serem todas de alta sustância: principalmente moqueava os bugios e os monos, e lambia os  beiços, c’o petisco: demorou quarenta dias na expedição, matando jacutinga pros barreiros,  que  era  uma  barbaridade;  (agora  jacutinga  é  mesmo  um  pássaro  bisonho,  abobado,  que  se  mata por brincadeira nesses caçadões da mataria); voltou remoçado, com sangue na guelra,  viveza  nas  meninas  dos  olhos  e  firmeza  nas  juntas:  e  logo  que  se  viu  no  retiro,  a  par  c’o  ribeirão da Canjarana, pertico de São Pedro, tratou de aprontar a receita do bugre do cinza.

Aquilo foi uma coisa em demasiado! O freguês ficou mais sacudido que um rapaz de  espora curta, valente que até dava medo, comendo que nem tinha altura, trabalhando com uns  talentos de espantar, uma maravilha! Todos os vizinhos reparavam na mudança, e paravam de  boca aberta: um homem que andava percurando o chão pra se enterrar,  de tanta fraqueza e  desânimo, avivado e forte assim!

Pois pra encurtar razões, entende-se c’os pais da Salustiana, uma china de espavento,  e, preparados os papéis e feitos os pregões, casou-se um belo dia. A Salustiana era uma moça  avariada, conforme rosnavam cartas línguas malinas da redondeza, e os pais alegraram-se por  de mais, quando se descartaram dela: aquele marido pra filha caíra-lhes do céu! Depois, um  cristão que não tinha boca pra ofender seu semelhante, com um gênio manso de verdade; era  edadoso, isso era – mas o estrago que a noite tinha penderia por igual o lado duma balança, se  fossem e peso as duas qualidades.

A  princípio,  muito  que  bem!  Tudo  ocorreu  em  santa  paz,  a  gosto  e  prazimento  de  todos, até as Salustiana, que se espantava de ver um velho teso naquela proporção: parecia um  mico, mal comparando. Mas o que é bom logo acaba, o João Maçarico desmereceu outra vez,  perdendo as carnes e o brilho das meninas, cobrindo-se de pés-de-galinha mais fundos pelo  rosto, uma tristura!

Trabalhava no ofício, não pôde mais suster-se pé em frente ao banco da carpintage,  escolheu outra profissão, que foi a de lenhador. E daí em seguida varava quase que os dias  inteiros  na  capoeirada,  ou  na  mata-virge,  aprontando  os  feixarrões  de  crindiúva54,  ou  de  caiúia, ou de ceboleiro, ou de embira-de-sapo que levava de encomenda pras fazedeiras de  sabão, por serem esses paus muito bons pra cinza de barrela; os manojos macotas de tapiá, de  guapeva,  de  guamirim,  de  pindaíva56,  pros  fugões;  as  braçadas  de  varas  de  canjarana,  ou  toradas de coração-de-negro, de taiúva, de canelão, pras cercas: e ia ganhando a vida por essa
forma. 

A  Salustiana,  de  primeiro,  não  desgarrou,  foi  fiel  pro  seu  marido,  foi  de  todo  o  cuidado: mas uma china como a Salustiana, ché! Não pode deixar de não se esquecer das suas  obrigações, dês que não tem amor ou não tem medo ao seu companheiro. E um dia... Nem foi  um dia, foram logo uns par de dias duma vereda só, marcou lugar de encontro pro Zeca do  Pica-pau, e enlouqueceu de tudo.

O  Zeca  do  Pica-pau,  passada  a  soneira  do  repente,  largou  dela;  e  a  Salustiana  arrecebeu o Manequinho, o Valentim, o Zé Ricardo, um dilúvio deles, um por um. Caiu, que  foi um desespero! E o pobre coitado do João Maçarico estava só serenando na labuta se sol a  sol, pra sustentar a malvada da sirigaita.

O rumor da senvergonheira foi bater até aos ouvidos de seo vigário. Seo vigário, um  padre muito direito, não gostava que as ovelhas do seu rebanho (assim falava nas práticas do  domingo) se perdessem que nem a Salustiana. Por isso, querendo sugigar o mal e prevenir o  futuro, e encontrando-se uma vez com o João Maçarico, que vinha embodocado por debaixo  dum mundão de coivaras, mandou que ele apinchasse pro chão a pausaria, e quis puxar com  ele uma prosa por estas palavras:

−  Ah!  João  Maçarico,  como  é  então  que  você  pode  trabalhar  agüentando  tamanhas  galharadas?

− Trabalho, seo padre,  − respopndeu-lhe o outro: trabalho, e bem satisfeito da vida,  com favor de Deus!

Seo vigário, que não calculava que um cristão não sabe de certos acontecimentos da  casa, que certos acontecimentos correm sempre em segredo, saiu resmungando:

− Pois se é do seu gosto, arrume-se: o que é de gosto regala a vida.

E desapareceu na volta da rua que leva pra igreja, com as orelhas quentes e brabo, que  ia tinindo! 


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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007   

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