MOÇA DO FANDANGO
Na bocaina do campo, já perto da
mata, é que o Armando foi alcançado pela Rosinha. Voltou-se, admirado, e sentiu logo um baque no
coração, vendo-a toda demudada de feições, com os olhos a chamejarem e um grande rubor de
fúria nas lindas faces cor de rosa.
Não foi preciso dizer-lhe nada.
Ela tentou compor os cabelos da testa, que o vento desvairava,
como a fúria
lhe desvairava a
expressão do olhar,
e falou-lhe apressada,
entre hesitações de gagueira
nervosa e repentinos chuviscos de lágrimas:
− Adonde é que você vai p’r este
caminho? Nem percisa arresponder, que a reposta eu bem vejo naquela volta, pra arriba dos
araticuns! Você assentou, duma vez, de me fazer de chá de canela p’r amór de uma bugra à toa? Já
‘tá cansado de mim, quer-me apinchar pra uma banda?
O Armando entrou a sossegá-la:
− Mas, Rosinha, que maluquice
antão é essa? Pois a estrada não é pública? Antão eu não posso trocar um carreiro, só porque sea
Fulana ou sea Beltrana assiste naquele chão? Vou pra cidade, vou com pressa, não tenho tempo de
‘tar escolhendo estrada.
− E garra logo a estrada mais
comprida? É ansim que você ‘tá com pressa? Pois olhe: não tenha tanta; quem vai devagar é que chega
mais cedo.
− Rosinha, eu tenho sido um poço
de paciência, não posso mais. Você me traz num langará dos dianhos a troco desta ciumeira
desatinada! Agora pega a falar nûa moça que eu nem sei se é gorda ou se é magra, se é bonita
ou se é feia. E eu hei de aturar de boca fechada um desespero de vida ansim? Nem que eu não
tivesse um pingo de vergonha...
− É, você tem rezão, tem sempre
rezão. A coitada de mim que fique encantoada em casa, chorando por seu respeito, passando
amarguras velhas, enquanto o meu senhor dão vai viver umas horas arregaladas c’a chavantinha
chimbeva!
Houve, no rosto do Armando, uma
grande movimentação de impaciência. Como um arapaçu, que andava a trepar ligeiramente pelo
tronco rugoso de uma sucupira, garganteasse, de alegre, ao saltar para o entrecruzamento
dos galhos, onde ferviam cupins em arranjos de casa, o Armando olhou-o, como se nunca
houvesse visto semelhante pássaro. Pacificou-se:
− Isso não é verdade, meu bem. Você não aprova
que eu tenha feito pó na porta da Gabriela.
Isso é pura canelage!
A Rosinha passou a manga direita
nos olhos alagados de pranto:
− Mas já me tenham dito que você
gosta da trigueira, e você pra mim não tem mesmo muito
créito, porque olha
pra uma e
pra outra, volta
e meia, como
quem quer a
china e a descascada,
a guarapuava e a Nanica, e redondinha e a espigada...
− E eu é que tenho obrigação de
agüentar o que você me quiser dizer, desaforos de todo o porte, xingamentos e malcriações, como
se eu fizesse algum crime contra você? Donde foi que você me veio, sea Rosinha: foi do céu
ou foi do inferno?
− Foi do inferno... Isso foi!
Ela sentou-se num solais do
caminho. Os cajueiros e as pitangas em flor, ficando-lhe sobranceiros,
cobriam-na de uma
brancura de sonho.
E foi quase
recostada entre as
hastes frágeis, que a Rosinha,
toda arquejante e cheia de arrepios pelo corpo formoso e pequenino, começou a soluçar.
O Armando, agora, contemplava-a.
Tinha-lhe pena. Se lhe pudesse ter amor! Quando foi
embrandecendo a tempestade
de choro, ele
chegou a preparar-lhe,
como quem prepara uma cama leve e cheirosa, frases de carícia e
de mimo. Mas a Rosinha ergueu o rosto.
−
Eu era ruim,
não era, Armando?
Eu ‘tava na
desgraceira? Mas antão
não fiquei boa? Se eu já fui diabo e agora sou santo,
você não devera de me dizer uma palavra tão doída, que me corta ansim o meu coiração! Eu não era
mesmo boa, mas tive amor por você, salvei-me dos meus pecados, caindo nos seus
braços e querendo ser tudo que é direito no mundo, só porque lhe quero bem!
Ainda lhe vinham soluços.
Venceu-os, porém:
− Você não tem medo de Deus,
Armando? Não acha que é falta de piadade largar à toa ûa mulher que se arrependeu de seus
passados como quem se arrepende da morte? Olhe, Armando: não vá p’r esse caminho, de caridade,
que isso me faz um desespero no fundo da minh’alma!
− Ora isso vou: pois eu hei de
agora trocer meu rumo por causa de uma libuzia sem pé nem cabeça? Vou.
− Vá, pois vá! Você bem sabe o
que faz...
Ele pôs-se a caminho, a toda a
pressa. Não tornou para vê-la. Não quis ouvi-la mais. O cheiro vivo das gabirobas atordoava-o,
fazia-lhe uma quase vertigem o zumbir desordenado das mamangavas e dos inchus errantes.
( −... Vá, que você nunca mais
não me há de fazer outra, marvado!)
E um monótono grasnar de
caracarás, perseguidos pela passarinhada miúda, pouco a pouco o afastava de toda a lembrança destas
coisas, para desejos novos, para alegrias novas, para esperanças novas.
Quando chegou, entretanto, ao fim
da grande reta onde a estrada se partia, voltou-se. A Rosinha sumira-se. Ao longe, bem ao longe,
em toda a extensão percorrida, para trás donde a deixara, ninguém. Nem a poeira, que anuncia
ou trai uma vinda ou uma retirada, pairava no ar...
Torou então
a moita de
capoeiras. Apenas um
leve rasto acusava
a passagem da moça. Seguindo-o,
internou-se algumas braças
na frescura da
mata. Viu-a logo
de longe, ajoelhada. Chegou-se-lhe diante: viu que pedia
de um laço de cipó-cambira trançado à pressa, e toda se arroxeava no começo do
estrangulamento. Cortou-o de repente: e o corpo, entregue a si mesmo, caiu entre as folhas tenras de uma
samambaínha nova.
O Armando, a agitá-la, a
sacudi-la revocando-a à vida, murmurava ansiado:
− Ah! Senhor Deus do céu! Que ûa
mulher ansim é um perigo! Inda quando a gente quer bem...
Lá se
foi ela, um
dia, muito triste,
a cavalo e com dois
camaradas e com
animais adestros, muito bem
tratada, e cheia de esperança porque ia esperá-lo em outra terra, onde não morasse a Gabriela, nem outra igual que lhe
fizesse sombra e lh’o tirasse.
Ia desaparecendo na dobrada do
morro, e o Armando falou pra quem o quis ouvir:
− Não é mesmo? O que é que a
gente há de fazer, senão mandar s’embora pra ûa mulher do fandango?
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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