quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Moça do Fandango"

MOÇA DO FANDANGO

Na bocaina do campo, já perto da mata, é que o Armando foi alcançado pela Rosinha.  Voltou-se, admirado, e sentiu logo um baque no coração, vendo-a toda demudada de feições,  com os olhos a chamejarem e um grande rubor de fúria nas lindas faces cor de rosa.

Não foi preciso dizer-lhe nada. Ela tentou compor os cabelos da testa, que o vento  desvairava,  como  a  fúria  lhe  desvairava  a  expressão  do  olhar,  e  falou-lhe  apressada,  entre  hesitações de gagueira nervosa e repentinos chuviscos de lágrimas:

− Adonde é que você vai p’r este caminho? Nem percisa arresponder, que a reposta  eu bem vejo naquela volta, pra arriba dos araticuns! Você assentou, duma vez, de me fazer de  chá de canela p’r amór de uma bugra à toa? Já ‘tá cansado de mim, quer-me apinchar pra uma  banda?

O Armando entrou a sossegá-la:

− Mas, Rosinha, que maluquice antão é essa? Pois a estrada não é pública? Antão eu  não posso trocar um carreiro, só porque sea Fulana ou sea Beltrana assiste naquele chão? Vou  pra cidade, vou com pressa, não tenho tempo de ‘tar escolhendo estrada.

− E garra logo a estrada mais comprida? É ansim que você ‘tá com pressa? Pois olhe:  não tenha tanta; quem vai devagar é que chega mais cedo.

− Rosinha, eu tenho sido um poço de paciência, não posso mais. Você me traz num  langará dos dianhos a troco desta ciumeira desatinada! Agora pega a falar nûa moça que eu  nem sei se é gorda ou se é magra, se é bonita ou se é feia. E eu hei de aturar de boca fechada  um desespero de vida ansim? Nem que eu não tivesse um pingo de vergonha...

− É, você tem rezão, tem sempre rezão. A coitada de mim que fique encantoada em  casa, chorando por seu respeito, passando amarguras velhas, enquanto o meu senhor dão vai  viver umas horas arregaladas c’a chavantinha chimbeva!

Houve, no rosto do Armando, uma grande movimentação de impaciência. Como um  arapaçu, que andava a trepar ligeiramente pelo tronco rugoso de uma sucupira, garganteasse,  de alegre, ao saltar para o entrecruzamento dos galhos, onde ferviam cupins em arranjos de  casa, o Armando olhou-o, como se nunca houvesse visto semelhante pássaro. Pacificou-se:

 − Isso não é verdade, meu bem. Você não aprova que eu tenha feito pó na porta da  Gabriela. Isso é pura canelage!

A Rosinha passou a manga direita nos olhos alagados de pranto:

− Mas já me tenham dito que você gosta da trigueira, e você pra mim não tem mesmo  muito  créito,  porque  olha  pra  uma  e  pra  outra,  volta  e  meia,  como  quem  quer  a  china  e  a  descascada, a guarapuava e a Nanica, e redondinha e a espigada...

− E eu é que tenho obrigação de agüentar o que você me quiser dizer, desaforos de  todo o porte, xingamentos e malcriações, como se eu fizesse algum crime contra você? Donde  foi que você me veio, sea Rosinha: foi do céu ou foi do inferno?

− Foi do inferno... Isso foi!

Ela sentou-se num solais do caminho. Os cajueiros e as pitangas em flor, ficando-lhe  sobranceiros,  cobriam-na  de  uma  brancura  de  sonho.  E  foi  quase  recostada  entre  as  hastes  frágeis, que a Rosinha, toda arquejante e cheia de arrepios pelo corpo formoso e pequenino,  começou a soluçar.

O Armando, agora, contemplava-a. Tinha-lhe pena. Se lhe pudesse ter amor! Quando  foi  embrandecendo  a  tempestade  de  choro,  ele  chegou  a  preparar-lhe,  como  quem  prepara  uma cama leve e cheirosa, frases de carícia e de mimo. Mas a Rosinha ergueu o rosto.

−  Eu  era  ruim,  não  era,  Armando?  Eu  ‘tava  na  desgraceira?  Mas  antão  não  fiquei  boa? Se eu já fui diabo e agora sou santo, você não devera de me dizer uma palavra tão doída,  que me corta ansim o meu coiração! Eu não era mesmo boa, mas tive amor por você, salvei-me dos meus pecados, caindo nos seus braços e querendo ser tudo que é direito no mundo, só  porque lhe quero bem!

Ainda lhe vinham soluços. Venceu-os, porém:

− Você não tem medo de Deus, Armando? Não acha que é falta de piadade largar à  toa ûa mulher que se arrependeu de seus passados como quem se arrepende da morte? Olhe,  Armando: não vá p’r esse caminho, de caridade, que isso me faz um desespero no fundo da  minh’alma!

− Ora isso vou: pois eu hei de agora trocer meu rumo por causa de uma libuzia sem  pé nem cabeça? Vou.

− Vá, pois vá! Você bem sabe o que faz...

Ele pôs-se a caminho, a toda a pressa. Não tornou para vê-la. Não quis ouvi-la mais.  O cheiro vivo das gabirobas atordoava-o, fazia-lhe uma quase vertigem o zumbir desordenado  das mamangavas e dos inchus errantes.

( −... Vá, que você nunca mais não me há de fazer outra, marvado!)

E um monótono grasnar de caracarás, perseguidos pela passarinhada miúda, pouco a  pouco o afastava de toda a lembrança destas coisas, para desejos novos, para alegrias novas,  para esperanças novas.

Quando chegou, entretanto, ao fim da grande reta onde a estrada se partia, voltou-se.  A Rosinha sumira-se. Ao longe, bem ao longe, em toda a extensão percorrida, para trás donde  a deixara, ninguém. Nem a poeira, que anuncia ou trai uma vinda ou uma retirada, pairava no  ar...

Torou  então  a  moita  de  capoeiras.  Apenas  um  leve  rasto  acusava  a  passagem  da  moça.  Seguindo-o,  internou-se  algumas  braças  na  frescura  da  mata.  Viu-a  logo  de  longe,  ajoelhada. Chegou-se-lhe diante: viu que pedia de um laço de cipó-cambira trançado à pressa,  e toda se arroxeava no começo do estrangulamento. Cortou-o de repente: e o corpo, entregue a  si mesmo, caiu entre as folhas tenras de uma samambaínha nova.

O Armando, a agitá-la, a sacudi-la revocando-a à vida, murmurava ansiado:

− Ah! Senhor Deus do céu! Que ûa mulher ansim é um perigo! Inda quando a gente  quer bem...

Lá  se  foi  ela,  um  dia,  muito  triste,  a  cavalo  e  com  dois  camaradas  e  com  animais  adestros, muito bem tratada, e cheia de esperança porque ia esperá-lo em outra terra, onde não  morasse a Gabriela, nem outra igual que lhe fizesse sombra e lh’o tirasse.

Ia desaparecendo na dobrada do morro, e o Armando falou pra quem o quis ouvir:  

− Não  é mesmo? O que é que  a  gente há de fazer, senão mandar s’embora pra ûa  mulher do fandango?

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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007  

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