NA BEIRADA DO TAIMBÉ
− Venha cá, nhá Candota: perciso
de conversar com você como quem percisa de água pra matar uma bruta sede. Faz muitos dias que
a gente se vê só de longe, e acho eu que o perto é
melhor e de
mais fácil acomodação
pra se entenderem
duas pessoas da nossa
qualidade. Escuite bem escuitado
o que lhe vou dizer e me dê sua reposta já, ou logo, ou no vagar que quiser.
De tal jeito, com palavras
maneirosas e voz sossegada, o Zé Missia estava fazendo chão
para uma planta
que era o
seu lindo sonho
de anos e
anos. Anos e
anos! Resoluto e constante,
afinal topara em nhá Candota, quando não tinha mais o direito de se gabar de
moço, a beleza, a graça e as melhores
qualidades de uma boa companheira diante dos homens e de Deus. E cubiçava-a para si...
Quarentão, mas desempenado, de
tamanho do meio, mas carnudo e enxuto, firme no andar e nas ações, costumava afirmar a quem o
ouvia:
− Minha verdade é que nem a cana
do meu punho – uma só. Hão de custar a trocer o meu braço, a minha verdade é que ninguém será
capaz de trocer!
Não exagerava
nada: sempre foi
forçudo e verdadeiro.
Quase menino ainda,
socou centenas e centenas de
taipa, a cruzado por metro. Crescendo na idade e na sustância, torou e rachou muito pau no mato, fez muita cerca de
madeira e muito cocho, em roças e invernadas. Desde que perdeu a voz de frango e mereceu
mais atenção e respeito, começou a empreitar serviços
de todas as
cores e qualidades:
o feitio de
uma casa de
pau-a-pique, derrubada de tantos
ou tantos alqueires, queimadas, destocamentos, plantações e colheitas. Antes de
chegar aos trinta anos, já tinha uma
caixa de couro com fechadura de segredo e, dentro da caixa, um pacotão de notas graúdas. Lá veio dia em que
pegou nas tais notas, comprou o sítio de fulano Borge
por pouco mais
de nada, criação
de pêlo e
pena, carros e
caçambas; arranjou, de pancada,
tudo quanto se quer no aviamento da lavoura, oito juntas de bois brasinos, que
eram uma boniteza, e até cavalo de
figuração, grande e baio-camurça, que deu panca e fez barulho nas cercanias.
Foi seu maior empenho, sempre e
sempre, não deixar de cumprir promessa alguma. Andavam
por isso de
boca em boca,
afora outros fatos
miúdos, dois de
espavento, que ele gostava de
ver lembrados. Certa
vez, tendo uma
partida de arroz
novo para vender,
fechou negócio com o Xavierzinho
por um conto e duzentos; sabedor disso, veio o Salustiano e lhe ofereceu um conto e quinhentos: ele respondeu
que já não tinha mais o arroz, porque o trato estava feito com outro e só faltava a troca do dinheiro pelo artigo.
Noutra ocasião, deu o sim de soltar uma
casa, que possuía no lugar mais afastado da vila, por cem de cem ao Nato; não havia
escrito, era tudo
conversado só de
beiço: pois apareceu
outro pretendente, o
Maneco Reis,
que pagava doze
contos, ele não
se entusiasmou nem
ficou murcho, e
sustentou a combinação dos dez.
Embora não o tomasse a inchação
da vaidade, pegava algumas veezs em si, pesava-se por dentro e acabava decidindo que era um bom
partido para nhá Candota. Atreveu-se até a apalpar
o assunto, quando
saíam da missa,
num domingo de
Ramos; o povaréu
mexia-se desajeitadamente por
todo o largo
da igreja, nhá
Candota distraía-se com
facilidade, e ele malhou em
ferro frio. Não
perdia vaza, porém:
na mais pequena
aberta de conversação, quando estavam apartados dos outros, encartava
a sua bisca, e uma por uma fazia declarações corteses, mas decididas. Nunca pôde ir muito
adiante: aquele namoro parece que tinha uruca.
Seguiam as
coisas mau rumo
agora. A vila
de São Simão
inteira sabia que
nhá Candota andava
conversando com um tal Chico
Peão, sujeito que
principiou a ser
visto de repente, da noite para o dia, e que não
trouxera apresentação para ninguém. De peão não tinha nada, como ele mesmo confessava: o apelido lhe
viera do pai, que da infância à velhice lidou com
animais, e de
quem nada mais
recebera senão o
apelido. Mais tarde
o município todo entrou
na certeza de que ele não mentia um pingo, quando contava aquilo...
O
Zé Missia atormentou-se. Deu de espreitar
nhá Candota, por
aqui, por ali
e por acolá, de manhã e de tarde, na intenção de
esvaziar o espírito e aliviar o coração. Jurou a si mesmo, por segurança, que acabaria propondo o
casamento, fosse lá como fosse. Um belo dia cercou-lhe a passagem, como quem não queria
estorvar, e só então pôde falar-lhe mais isto e mais aquilo:
− Esse Chico Peão, nhá Candota, é
home’ que tem estampa e nada amais. Arrebentou de supetão na vila, trazendo animais e
qualidade, arreios caros e um camarada sagaz
como quê. Ninguém não sabe quem é
semelhante home’, que o único trabalho que tem feito é jogar carteado com os dinheirosos desta terra. Vejo
dizer, mas de carregação, que dito cujo é ladrão de cavalos e andou fazendo suas últimas
façanhas lá pros confins do Carmo da Franca. Isso vejo
dizer. Pode que
seje errado: não
quero ter contra
a minha alma
um falso testemunho levantado do pé pra mão. Mas contanto que não
hai filho de Deus que de tal Chico Peão possa dar notícia branca ou preta!
Nhá Candota,
moça de boa
tenência, que era
o bate-enxuga na
casa dos pais, trabalhadeira e
de poucas falas,
prestava a melhor
atenção ao Zé
Missia. E o
Zé Missia, ganhando
maior coragem, pegou
a encarreirar os
encartes que imaginara.
Aproveitou a ocasião o mais que pôde; principiou a dar uma
no cravo e duas na ferradura:
− Você é capaz de formar uma
idéia da vida que o Chico Peão lhe perpara, se vier a casar com você? Tendo inté hoje vivido em casa
de pai e mãe, na fartura e na paz, porque a sua gente, e você mesma, veve do trabalho e no
trabalho, você imagina que tudo correrá como inté
hoje? Pois olhe, nhá
Candota: eu não
intimo c’as minhas
propriadades nem c’os
meus haveres, mas você sabe muito
bem que o meu sitinho não deve nada pra ninguém, é rendoso, tem boas águas e caminhos cuidados. Você sabe muito bem, além
disso, que eu faço meus negócios por
fora e tenho botado de banda meia dúzia de patacas. E você sabe muito bem que pissuí,
de poucos meses
pra cá, um
chãozinho na cacunda
do Tijuco Preto:
são quinhentos alqueires, num pedaço de mundo em que o pé de
café, quando se encóva de esquadro, chora por não ter mais espaço e lugar pra onde
estender os braços e abrir as saias...
Nhá Candota não deixou de
impressionar-se. Então havia terra, no mundo, em que o cafeeiro crescia tanto que chegava a querer ir
mais longe que o vizinho? Se os de São Simão, do lado da serra, nas manchas de terra
vermelha, já eram de admirar logo adiante dos campos e cerrados, encorpando com toda a força, então
de que vulto e maneira não seriam aqueles do sertão? O Zé Missia atava o nó:
− O que eu tenho, no fim das
contas, não é meu, nhá Candota: será seu e já é seu, porque eu tenho fá em Deus que você me vai
aceitar pra marido. Não vai?
Ela virou-se para outro lado, por
instantes, como querendo ouvir melhor o cacarejo fino e reiterado de um joão-de-barro que
conversava com a companheira, no galho mais alto do cinzeiro próximo. As mesuras que o
joão-de-barro e a companheira faziam com as asas, cessaram logo: nhá Candota foi obrigada a
voltar-se para o Zé Missia. Deste Zé Missia, afinal, todos gostavam: o pai, a mãe, os irmãos e a
caboclada. Ao passo que só ela, “que não valia uma
pitada de rapé”,
só ela gostava
do Chico Peão! E
as últimas notícias
que lhe haviam chegado nem eram das melhores: à vista de
certas ligeirezas de mão que o tal mostrara, da teima com que algumas cartas só enveredavam
para ele, e de pequeninas unhadas que se viam noutras cartas, o delegado mandara chamá-lo e
lhe dera dois dias para sumir da vila.
O Zé Missia entrara em rumo
diferente:
−
Nhá Candota, você
‘tá mas é
na beirada do
taimbé92. Não hai
nada que lhe sirva
de segurança ou de valência, nessa parage’, se você não se forra fugindo do
perigo. A pedra
é uma só,
muito lisa, sem
cotovelo’ nem lajedo’
pros cantos, porque
não tem canto
nem um. Se
você resbala e
perde o pé,
não hai como
não rode pro
tombador abaixo e não vá direitinho inté o fundo do boqueirão. Não tem
aí grama nem carqueja, que já
por si não
serve’ de nada,
num artigo desses,
pra você pôr
a mão e ‘o menos demorar um
quarto de minuto
a fúria da
caída. No meio
do percipício, você
já nem é mais nhá
Candota, é um
pobre corpo sem
alma que vai
rolando e rolando
pro purgatório...
Reforçou aquele discurso de
pavor:
− Você ‘tá vendo o rebeirão do
Tamanduá, lá em baixo, feito uma fita que num ponto se esconde e noutro se amostra de
repente, não é? Co’a seca braba que tem havido, ele parece que se estrafega de reiva em cada
volta e grita que nem um desesperado na rasoura das
tupavas. O rumor
do rebeirão inté
assusta, e você
daqui nem ‘tá
sentindo nada, não
é? Pois também,
quando a gente
cai no fundo
de um taimbé
desgrenhado, ninguém não ouve nem
não acode...
Despediu-se:
−
Nhá Candota, por
tudo quanto você
estima no mundo,
largue mão do
Chico Peão! Se você não se
aprecata e não arrecua em tempo, aquele anhanga é o seu taimbé!
Mas no dia seguinte, por volta das
oito da manhã, vieram contar
ao Zé Missia que
nhá Candota, em
companhia do Chico
Peão, tinha atravessado
o Tamanduá no clarear. Ele
saiu de si,
buscou o encosto
de um moirão
largado, e só
entendeu, da conversa que se acendeu cada vez mais em roda
do moirão, uma ou duas coisas:
− Pra onde é que aquele
desgracionado vai levando a santinha?
− Pro mundo...
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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