quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Paixão de Raiz"

PAIXÃO DE RAIZ

−  Aquilo  é  que  era  mulher  (dizia  o  Agostinho,  do  Mandaguari):  nem  bem  o  dia   clareava, já lá ia pro terreiro tratar das galinhas e do resto da criação. Dormia comigo na cama,  e amanhecia c’os porcos no chiqueiro! Muitas vezes, quando eu acordava,  e o sol ainda se via  a uma altura pequena, já o café ‘tava pronto, a casa varrida e o feijão no fogo. Aquilo é que  era mulher!

Foi realmente  grande perda, a morte de nhá Gertrude: quem a conheceu, há de até  hoje repetir que era de dar tristeza um acontecimento assim. Apesar de terem já passado uns  três  anos,  o  pessoal  do  Mandaguari  ainda  a  pranteava.  Nhá  Gertrude  deixou  umas  quatro dúzias de comadres esparramadas pelo mundo: umas que a procuravam meio às escondidas, pra lhe pedirem que batizasse o pobre dum anjinho que não tinha pai; outras, que mandavam  os  filhos  já  viçosos  à  casa  dela  dizer  que  a  queriam  por  madrinha:  outras,  afinal,  que  propunham no meio duma conversa, como se visse por acaso de talho:

− E não é que nhá Gertrude bem podia levar o meu caçula pra pia?

Ora se levava, isso nem havia dúvida! Pois porque é que não havia então de levar? 

Uma  coisa  tão  fácil  que  nem  mudar  uma  palha!  E  as  mães  das  crianças  ficavam  muito  satisfeitas, muito alegres: esta nhá Gertrude era deveras uma alma de santa! No seu coração  batia decerto um pouquinho do coração de Nossa Senhora!

E  pra  dar  esmolas?  Parece  que  trabalhava  só  pro  gosto  de  no  domingo  repartir  as  economias com os pobres que viajavam pelo sítio. Até aí por volta das duas da tarde, quem  chegasse ia servido dalgum dinheiro, tão certo como três e dois serem cinco. Depois, o cobre  ficava vasqueiro e por fim sumia, que ela também não era uma ricaça. Mas nunca foi capaz de  cantar pra um pedinte: − Vá-se com Deus , agora não se tem! – Nunca! Dava-lhe então de  comer, dava-lhe qualquer peça de roupa, dava-lhe quitandas, dava-lhe caninha. Ninguém saía  descontente.

Boca  abençoada  era  a  da  nhá  Gertrude.  Não  falava  da  vida  alheia,  quando  a  murmuração  era  coisa  bem  correntia  até,  nos  costumes  da  vizinhança!  Se  estavam  tosando uma pessoa ausente, ela barganhava de conversa tão logo, que os maldizentes estuporavam de  vexame. Morder na honra das famílias foi malvadez que nunca ninguém conseguiu perto dela,  porque, se principiava o nhe-nhe-nhe, no mesmo instante ela recordava: − Olhe, seu fulano,  que vancê tem mulher e tem filhas! Ninguém ‘tá livre dûa mal-falada! – E o tal sujeito ficava  na embatucação.

Pois  bem:  morreu...  Está  morta:  o  que  se  há  de  fazer?  Quem  pode  tudo  assim  determinou:  resta  que  a  gente  se  conforme  com  as  vontades  de  quem  pode  tudo,  principalmente porque não há outro caminho a seguir. Pra que tamanhas lamentações, agora?  Diz que o chorar alivia, e é certo, mas o queixar-se e o lamuriar é que não adianta nada. Que  rumor então era esse que o Agostinho andava levantando, volta e meia, com dizer que aquilo é  que era mulher? Glória a Deus nas alturas, e paz aos homens e às mulheres que estão na terra  e debaixo da terra! Por estas falas, mais ou menos, é que o Rodrigo aplacava as choradeiras do  Agostinho, todo santo dia.

E o Agostinho não arredava pé daquele triste costume. Se lhe contavam que a porca  de um tal tinha parido tantos leitões, que eram muito bonitos, ele recordava que nhá Gertrude,  pra cuidar duma barrigada de leitões, estava sozinha; se lhe noticiavam que a peste de gogo  deu na galinha carijó da filha mais moça, ele suspirava, dizendo, ato contínuo, que em vida de  sua defunta mulher nunca tinha acontecido isso no galinheiro do sítio, onde os cochos de pau-santo  viviam  então  sempre  cheinhos  d’água;  se  via  passar  a  égua  lobuna,  lembrava-se  na  mesma  hora  de  nhá  Gertrude  (não  haja  trocas  de  sentido!),  porque  nhá  Gertrude,  quando  montava  na  supradita  égua,  estava  satisfeita  que  nem  uma  santa  no  altar,  ainda  que  semelhança  seja  meia  hereje.  A  égua  saía  numa  guinilha  miúda  e  muito  engraçada  e  nhá  Gertrude ia só cambeando o corpo em riba dela! Ai! Tempo, tempo que não havia de voltar  mais!

Não lhe dissessem que dona Sicrana era boa, que dona Beltrana era decidida, porque  no mesmo repente ele contestava:

− Qual história! Qual nada! Como nhá Gertrude nunca há de vir outra a este vale de  lágrimas!

E pra provar que este vale de lágrimas é realmente de lágrimas, um punhado delas  corria  devagar  e  devagarzinho  por  aquelas  rugas  compridas,  que  se  tinham  formado  em  continuação  das  olheiras;  passava  a  cacunda  da  mão  direita  pra  enxugar  a  água  amarga,  e  fincava  o  olhar  em  qualquer  ponto  da  casa,  como  se  estivesse  querendo  ver  uma  coisa  que  ninguém via, com ânsia ecom desespero.

Mas apareceu-lhe um casamento. E quem não havia de ser a noiva? – a filha mais   cresçuda  do  próprio  Rodrigo,  uma  chibantona  e  tanto,  que  dava  sota  e  basto  nas  funções  daquele pedaço de mundo. O Rodrigo, quando lhe praticou em tal assunto, foi logo explicando  as coisas tim-tim por tim-tim, dando o nome aos bois, como dizia:

−  Você,  seo  Agostinho,  já  não  é  criança,  isso  é  verdade.  Com  certeza  já  anda  nos  corenta e cinco, pra mais, que não pra menos. Mas isto não osta: a Malvina também já não ‘tá  mais nos cueiros, é coisinha mais nova que a Antonia, e a Antonia, por ser simple, como você  sabe, não se pôde arranjar até agora, com vinte e oito que já tem. Pra você viver sozinho neste   canto, ‘tá aí o que não dá certo: um home, seja como for, percisa sempre duma companheira, e  companheira de virar e romper. Se você entender que a Malvina lhe serve, eu não contrario o  casamento.

Fez-se tudo em pouco tempo: o Agostinho foi-se acostumando a olhar pra noiva com  bons olhos, reparando-lhe nos modos desempenados e na prosa larga, e muito mais em certo  luxinho que a moça fazia nas sobrancelhas, quando parecia duvidar do que se lhe afirmava.  Era  uma  tentação!  Depois,  arrumadeira  da  vida:  sabia  moquear  um  peixe  como  ninguém,  serzir com todo o cuidado a meia mais puída, cortar e costurar, dar o melhor ponto a um arroz,  plantar e quebrar um milho com destreza, e até (ninguém nunca o tinha visto, mas era coisa  afirmada  de  certeza  pelo  Agostinho)  fazia  rendas  entusiasmadas,  como  essas  que  os  turcos  vendem com faixas de papel vermelho.

Moveu-se o bairro em peso, pra assistir ao casamento. Foram chamadas umas moças  dos Campos, as mais cumbas que havia no sertão pra dança da quadrilha, que não se sabia por  estes  mambembes;  veio  o  sanfonista  melhor  que  morava  na  vila,  pra  tocar  a  música  da  tal  dança; apareceu a rapaziada mais afiada pro fandango, e cada violeiro levado do sarro; não  faltou a negraria que esquenta os sambas por perto da Ilha Grande, e o maior tocador de caixa  dos arredores, o João Velho: e até, pra ficar tudo completo, mexeram da Onça uns homens que  inventaram agora um folguedo diferente, muito vagaroso e esquisito, a dança do corvo.

Lugar houvesse pra tanto povo! As moças dos campos de par a par c’uns rapazinhos  engravatados que também surgiram como por maravilha, encheram os olhos da gente da casa  e do bairro: dançaram depois umas rodadas, coisa de admirar! Um cantador do Capivara, que  pegava no pinho com maneiras muito macias, encarreou nada menos que uma dúzia de modas  desconhecidas;  cantou  algumas  pelengas  sentado,  fez  o  que  quis  da  viola  e  da  caipirada,  passarandagens  difíceis,  cada  sorte  de  assustar:  ponteava  que  era  um  encanto,  e  chegou  a  apresentar  certos  toques  que  nunca  se  tinham  ouvido,  com  batido  de  papilotes  na  caixa  do  instrumento e voz ensurdecida de cordas.

Não faltou nada bom na festança. O Rodrigo, que era um sujeito de melúria, jeitoso  como ele só, teve artes de justar um doutor na vila, pra fazer um discurso: e veio o doutor, e  fez  um  discurso  bem  arranjado,  gabando  o  mais  que  podia  o  noivo  e  a  noiva,  falando  em  felicidades  e  flores,  palavras  muito  bonitas  e  que  caíram  muito  direito  naquela  ocasião.  O  coreto que se cantou depois do discurso, esse então nem se fale! – foi de arripiar os cabelos: o   Agostinho, que é um homem de coração maneiro, como ele mesmo sempre conta, ficou até  c’os olhos cheios d’água.

A noiva estava numa puba em demasia: tinha vestido cor de rosa (diz que as noivas  agora  não  precisam  mais  trazer  vestido  branco),  uma  capela  grande  de  flores  de  laranjeira,  tanto das que vêm da loja como das apanhadas no pomar, uns brincos de ouro e lequinho de  penas também cor de rosa mais claro, sapatos de cetim, cheios de histórias... Uma boniteza!

O Agostinho, pra dizer que estava muito senhor dom, não estava: mas encomendou  roupas novas, botou-se todo na estica, de barba aparada e cabelo repartido no meio, c’um par  de  botinas  que  alumiava,  e,  no  peito  da  camisa,  dois  botões  de  brilhantes  tão  grandes,  que  pareciam aquelas últimas estrelas que se apagam quando o dia vem rompendo.

Chegou  a  hora  dos  noivos  se  acomodarem.  Mas  muito  tempo,  ainda  muito  tempo,  enquanto não clareou, o sapateado do fandango e o rufo louco da caixa bateu sem parar e em  cheio nas covancas e arrastou-se bem longe pelo embromado escuro das capoeiras.

O  Agostinho  não  esperou,  na  casa  do  sogro,  que  passassem  os  três  dias  de  hospedagem. Mandou logo cedo arrear a tropa. A neblina era grande, mas viu-se, daí a um  pouco, o primeiro raio de sol, como uma fina lança de fogo, atravessar a cerração: e ouvia-se  ainda a moda última do João Velho, na roda do samba, quando se levantou na estrada o rumor  da ferragem dos animais em marcha.

Ia  a  Malvina  montada  num  baio  açafranado,  um  cavalinho  marchador  e  faceiro,  manso como um cachorro e engraçado no pisar como não se achava outro na comitiva. 

A par c’o Agostinho caminhava um fulano Lope, seu compadre e amigo desde moço,  que lhe falava bem da Malvina e ao mesmo tempo lembrava as boas qualidades da defunta  Gertrude:

− Coiração delicado ‘tava ali, não hai dúvida mas contanto que sá Malvina também é  ûa moça às direitas. Já se vê que você que você tirou duas vezes a sorte grande!

Depois,  como  dobrassem  o  espigão  e  o  pendente  da  outra  banda  fosse  mais  forte,  agarrou o baio da Malvina uma andadura esquipada, muito bonita e doce, que fazia dançar  dum belo jeito o roupão da cavaleira. O Lope virou de conversa:

− Agora, falando um pouco de verdade, o Rodrigo não fez cainhage nem ridiqueza  c’a filha: aprontou-lhe uma rica festa, vestiu-a feito uma rainha, e ainda por cima de tudo lhe  dá de presente um cavalo daquele feitio! Bom cavalo, compadre, repare bem: é tocar-lhe um  pouco  na  rédea,  pega  num  picado  lindo  que  dá  gosto;  é  afrouxar  a  mão  outro  pouco  e  descansar-lhe  o  corpo  em  riba,  sai-se  desvirilhando  numa  balancinha  que  parece  uma  rede.  Não dá trabalho nem um, tem todo o preceito!

Mas o Agostinho ficara ainda em nhá Gertrude. E foi c’uma voz carregada de tristeza  que ele respondeu ao outro:

− Qual! Como a Gertrude não hai! Aquilo é que era mulher! 


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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007   

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