SOBERBIA
Assim que
apareceu no povoado
a Chiquinha Araçá,
vinda lá desses
recantos do sertão do Panema, e que foi assistir nûa
meiágua estrangolada ali beirando o rio, sinh’Ana do Ozébio não se conteve, de tanta ira, e saiu
dizendo pra quanto vizinho havia que aquilo era
uma pouca vergonha, uma coisa sem pé nem cabeça, um desperpósito. Onde é
que já se viu agora ûa sojeita da vida
vir morar no meio das famílias, bem concha c’o seu galheiro, como se tudo fosse muito direito? Aquilo não podia
continuar!
Sinh’Ana, desde
pequetita, segundo todo o povo
falava, fora uma
soberbona de marca maior. Filha dum pai que tinha de seu
fazendas e mais fazendas, culturas, criações em
demasiado, não percurava as pobres, na escola, e só fazia companhia c’as
das mesmas posses que ela; filha dûa mãe
bonita e de bem que nem uma santa: falando mal, não era capaz de se avir c’as meninas que não tinham pais
conhecidos à vista da santa igreja. De sorte que andava quase
sozinha, repimpada nos
seus vestidos cheios
de folhos e
rendas, alegre dos
seus babadouros largos, de
cambraia, e dos pentes de tartaruga que fincava nos cabelos.
Depois, em casando, a mó’ que
ficou mais pior ainda, assim diziam nos arredores: então só se agradava das mulheres que tinham
marido legítimo e eram ricaças ou remediadas;
as outras, essas
vivessem lá como
a Deus fosse
servido. Agora o
que é verdade
é que ninguém nunca não teve corage de romper duma
vez c’a sinh’Ana: parece que a riqueza dos
outros entope a
boca dos pobres,
e nem uma
neta de Eva
não disse em
tempo algum liberdades a tão malvada criatura. Sinh’Ana
mandava seis meses no bairro, principalmente na
gente de saia.
Ora a Chiquinha Araçá, morena bem
sossegada, afinal, que teve por sina cair como
tantas outras, a princípio não botava atenção em nada, nem em ninguém
dos arredores; mais tarde reparou
que aquela dona,
cada vez que
a via, fechava
carranca, saía da
porta ou da
janela, batendo-a com
fúria, e, se
estava na rua,
virava-lhe as costas
no mesmo instante;
pensou de si
consigo que decerto
já as línguas
enredeiras tinham aprontado
alguma, e deu
tempo ao tempo. Contou o causo ao galheiro, um tal Zé Benedito, e o
galheiro arrespondeu-lhe que não se importasse, porque, quando fossem pôr o
feijão no fogo, não haviam de o pedir à
dita dona. E ficou tudo nisto.
Paulista desempenado era o Zé
Benedito, ê lá paulista! Por seu respeito um dilúvio de raparigas
andavam de coração sangrando, aí
nesse mundo louco donde eles vieram; uns
tempos ele foi o susto das casas sérias, transtornando o sossego de
muita rolinha solteira, e causando o
desespero de muitos casais; viveu mexe-mexendo pelas capelas, anos e
anos, e aprendeu uma
pelintrage que bulia
c’o sentido das
tais, fazendo-as enlouquecer
de tudo: arrodeava uma delas, arrastava a asa, chegava... E logo sumia pros braços de outra,
voluve que nem uma borboleta. Mas garrou
rabicho de couro cru pela Chiquinha Araçá, viúva novica que
morava de favor
duns tios, conduziu
co’ela pro Salto,
num batelão, e
veio pra esta
terrinha do Andrade: e daí pra cá o Zé Benedito ficou outro, bem se via.
Pegou logo c’a santa vida
daquelas furnas lá de longe. Como violeiro, Jesus! − era cumba; cantava cada verso tão bonito, pra
encarrear as modas, que até o povo que escutava
era só pedir,
pedir pra ele
cantar mais um,
mais um; quando
rompia daquela garganta
ûa pelenga das que ele usava, bem
toada, bem afinada como ele sabia, as pedras eram capazes de arrebentar, principalmente pelo amanhecer.
Assim falavam todos os fandangueiros daquelas
furnas: e em santa cruz a mesma fama cresceu depressa, aumentou, pra
dizer mal, que nem as pragas em pasto
praguejado.
Mandou o
Delfino do Ribeirão
fazer-lhe uma viola
de pinho; e
se bem mandou,
melhor o Delfino
fez: cada hora
que o Zé
Benedito rasgava o
pinho, dum jeito
novo que ninguém
não tinha visto
ainda, um meio
arrepio passava p’lo
corpo de quem
estava perto. Depois, pra pontear uma dança qualquer, pra
tocar uma quadrilha ou a valsa-viana,
andava sozinho. Gente principiou
a descer da serra pra ver o violeiro descanhotado que fazia o que queria do instrumento.
A Chiquinha, então, sentia-se
alegre deveras, por ver que o tafulo ganhava rumo na praça: porque a melhor maneira de se começar
direito um negócio é agradar bem primeiro o
freguês: e quando ele quisesse meter cara nessas invernadas, comprar
seus bois magros pra engorda e venda mais
tarde, barganhar seus caracus gigantes c’uns par desses chinas do córte, havia de encontrar simpatia por toda a parte.
(Chiquinha Araçá, você tinha proporção de uma
pura mulher: foi uma desgraça você desgarrar assim sem mais nem menos!
Agora...)
Só o que não dava certo era o
semblante sempre fechado da sinh’Ana do Ozébio. Um dia
que se encontraram
por acaso no
cochicholo dûa mulher
chamada a Mineira,
pertico mesmo do
rio, sinh’Ana afastou-se
pra dentro do
quarto da dona,
fazendo o sinal
da cruz; outra vez que a Chiquinha topou co’ ela no
porto em que lavava roupa, a sinh’Ana escondeu o rosto
num lenço de
cabeça, e saiu
ventando por ali
fora; ultimamente, na
reza dum tal
Bonifácio, lá d’outra
banda, a sinh’Ana
deu adeus pra
todos que se
achavam na sala,
e, passando pela Chiquinha, virou
o frontispício e não lhe estendeu amão.
Valeu isso botar-se a pobre da
moça pra casa, já no meio da noite denegrida, atirar-se a um catre e prantear que nem uma demente.
Fazia exclamação que Deus devia tê-la matado
no instante em que aconteceu pra ela tamanha infelicidade, que as outras
viviam na satisfação de todos
e que ela,
a bem dizer,
andava escorraçada. E
como Zé Benedito
entrasse nesta intendência e pusesse atenção naquelas
lástimas, respondeu-lhe por estas palavras:
− Ora, Chiquinha, isso não paga a
pena! Pois p’r amór de a sinh’Ana do Ozébio você toma tamanha tristeza? Olhe que ela nem
merece essas lamúrias! Você vai conhecer que relé de gente ‘tá ali: espere pela pancada. No
frigir dos ovos é que se vê a manteiga que sobra.
A Chiquinha araçá achou-se mais
consolada. Foi-se repondo, pouco a pouco, e ficou tudo nisto.
Não há nada mais certo: quem
fala, paga. Outros proseiam que pela boca morre o peixe. O que é mesmo verdade é que ninguém
deve dizer: desta água não beberei.
O Ozébio, que tinha umas terras
na fazenda de São Domingos, a tal que verte pro rio Pardo, compra antiga que fez dum fulano Esaú,
arrasara mato, nessas eras pra trás, fizera cada derrubada e tanto, plantara cada roça de encher
os olhos. Nunca lhe faltara milho num paiol
de cinqüenta carros,
por derradeiro foi
preciso até fazer
um puxado no
dito paiol, pra
dar cabida a mais uns trinta;
arroz, era um despotismo; feijão, ché! Ninguém colhia a quarta parte do que ele colhia; abobras; pepinos, maxixes,
jacutupé, tudo se via com abondância naquela
casa: e a pinga de vinte graus que fabricava, sempre firme e de boa
fama, varava ano e mais ano, a mó’ que
sem acabar nunca. Fartura semelhante, é coisa por demais!
Mas a resto veio a medição da
fazenda. Os homes que requereram a divisa reviraram quanto cartório havia por aí fora, por
Lançóis, Itapetininga, Santa Bárbara e
Botucatu, e os papéis da gente conhecida
pelo nome de Esaú ficaram não valendo nada. Houve réiva, quase saiu pancadas e morte, e quem ficou devera na
derrama foi o pobre do Ozébio, sem um palmo
de chão de seu. Nem bem soube que o negócio estava desse feitio, tão mal
parado, o Ozébio esfregou as
mãos na cabeça,
c’um desespero de
mantecato, e disse
que ou havia
de passar uma chumbada no Baltazar e no Chico Gracía
que chamaram a divisa da fazenda, ou morria sem apelo nem agravo.
Não aconteceu tão depressa, mas
aconteceu o que ele porferiu. O Ozébio o que sim fez foi desmerecer de repente; ficou logo nas
espinhas, de magro, e banzativo e soronga que
dava que pensar. Saiu dia, voltou dia, até que chegou o último daquele
filho de Deus; contam que morreu de mal
de engasgo, mas qual! Foi tristura, desânimo, falta de confiança nos braços e na cachola. Na madrugada em que esticou os
cambitos, o miserave inda resmungava, por
jeito que todo povo que o arrodeava escuitou: que assim ficava melhor,
sumir-se duma vez deste mundo, pra não
agüentar mais o peso de tamanha desgraceira.
Sinh’Ana, pra dizer que pranteou
em demasiado, isso não: choramingou seu pouco,
enxugou suas lágrimas pra um canto, fez por consolar-se, que enfim o que
está feito já não está por fazer. E na
missa do sétimo dia levou um senhor vestido de seda cheio de histórias, e um crepe na cabeça que mais parecia esses
veuzinhos de luxo das moças. É pra mecês verem
o quanto vale a firmeza de certas mulheres!
Quando chegou o tempo de aliviar
o luto, já a sinh’Ana estava aliviada de tudo, no coração: deu de usar uns vestidos maneiros,
brancos e só c’uns respingos pretos, umas saias
escuras e uns casaquinhos cor de pomba de casa, pegou a ficar numa ponta
que até era de pôr a gente admirada. Povo
garrou logo a dizer que a sinh’Ana estava atirando o anzol pra algum frango novo, senão não havia de andar assim
nos trinques, entusiasmada, sem nem um restico
de tristeza nos olhos e na fisiolomia.
Voz do
povo é voz
de Deus. A
sinh’Ana refiava um
Jerominho lá do
dourado, paranista cheio de cheio
de não-me-toques, enjoado numa combersa e namorador por devoção antiga. Ele, então, quanto mais corda ela
dava, mais corda ele puxava. Vinha todo domingo
passear aqui na vila, montado num macho ruço que era um mundo: e se ele
Jerominho era contador de
histórias duma vez,
o macho não
ficava atrás, tinha
um passo esquipado
dos dianhos, e alevantava as mãos
no lançante a desmunhecar-se.
Primeiro foi namoro direito, com
todo o juízo: pro paranista era só aquela soneira, e pra sinh’Ana a mesma coisa. Mas o inimigo
intreverou-se no meio, tentou a sinh’Ana, até que ela não teve como não acreditar nas
patacuadas que o Jerominho lhe contava, e fez-lhe uns adiantados por conta do casamento, que havia
de vir logo que ele preparasse os dicumentos
percisos. Foi uma
regalia! Ele gozava
que gozava, ela
gozava, que gozava
− e o
mundo principiou a
treler c’o negócio,
que se via
atrasado. Umas pessoas
chegaram a dizer
pra sinh’Ana:
− Olhe, criatura: casamento
demorado é desmanchado.
A sinh’Ana a mó’ que nem vivia na
terra, nem deu fé.
Passaram-se uns par de meses. Um
dia, sem mais aquelas, o Jerominho abriu o pala, cortou chão; sumiu, ver uma onça espaventada,
pra esses fundos de sertão de Mato Grosso,
ninguém lhe pôs mais a vista em riba.
A
sinh’Ana chorou, que
foi uma lástima.
Depois consolou-se, tal e qual
como quando o Ozébio morreu. Ora,
se o que está feito não está por fazer! E ficou tudo nisto.
No dia em que a sinh’Ana estava
c’as dores, fazendo uma gritaria angustiada (porque afinal
o presente que o Jerominho
lhe deixou foi
uma esperança, nada
mais), nesse dia
a Chiquinha Araçá,
vestindo-se c’o vestido
mais ventena que
pissuía, entrou-lhe pela
porta a dentro, sem mais nem menos, foi até o quarto
onde ela gemia, que causava piedade, e falou-lhe por este jeito:
− Sinh’Ana, agora que nós semos
iguais de verdade, se mecê não tem mais soberbia, eu posso vir assistir-lhe, com todo o gosto.
Mecê sabe que a gente vive na terra é pra ajudar seu semelhante.
A sinh’Ana não disse sim nem não:
já estava c’a dormideira, mal ouviu aquela voz
que parecia vir de muito longe, apagada e mansinha, e, quando voltou em
si, foi pra pedir à outra ûa mão naquela
hora apertada. A Chiquinha encostou-se-lhe às costas, segurando-a por debaixo
dos braços, depois
de a ter
feito sentar numa
quarta, e deu
de contar-lhe histórias
engraçadas, pilhérias de
fazer rir, um
passatempo e um
consolo. Uma hora
que lhe estava
repetindo a passage
que aconteceu c’o
Teodorinho, quando foi
camarada do padre
Aranha, num ajutório
tirano pra certo
carreiro que ‘tava
c’o carro atolado
na Água Espraiada,
a sinh’Ana riu
que foi uma
coisa de espantar,
no meio mesmo
das dores, e
a criança nasceu
como por encanto, botando a boca no mundo.
A Chiquinha continuou a fazer-lhe
animação:
− Pois assim é que ‘tá direito e
que ‘tá bom. Onde é que já se viu uma dona como
mecê, forte e sacudida, querendo entregar agora a rapadura c’a palha e
tudo? Isso inté nem tinha cabimento!
Mas a sinh’Ana descaíra pra uma
banda, meio desmaiada, c’os olhos afundando e um suspiro saindo de lá bem de longe, puxado de
vargazinho e fracamente: foi perciso mandar
aquentar-lhe uma pinga, e a Chiquinha, depois de bebida a pinga, ainda
caçoou c’a doente:
−
Ué, sinh’Ana, é
agora que amarela
então a sola
do pé? Largue
mão disso, crie
corage: repare nesse boizão do seu filho e veja que ele já ‘tá com fome!
Repare só!
Pouco a pouco, assim como quem
vem cansado, duma viagem cangotuda, a sinh’Ana
foi abrindo os olhos, ficando outra vez co’as cores, e quase que chegou
a rir. Mas o outro não nascia, a
Chiquinha tomou-a outra vez pelos braços, mandou que ela fizesse força e
rezasse três vezes a oração de Santa
Margarida, que é a última pra esta necessidade:
− Santa Margarida... Santa
Margarida... Santa Margarida...
A sinh’Ana mal chegou a rezar a
terceira vez. Estava livre. Olhou em roda de si, não viu mais ninguém que não fosse a Chiquinha
Araçá, teve uma saudade do tempo em que vivia
cercada de flor do povo, uma gana louca do Jerominho, e principiou a
chorar baixico e sem falar nada.
A Chiquinha, depois que arranjou
a cama, os travesseiros, e pôs a criança em riba dûa almofadinha, perguntou serena e
sossegada:
− Antão, sinh’Ana, a gente se
ajeita bem é mesmo c’os pobres e c’as mulheres que vevem na tafularia, não é?
E foi-se embora. Quando já tinha
desaparecido, quando o som dos passos já morrera na volta duma esquina, a sinh’Ana, pegando o
filho e abraçando-o, falou consigo mesmo, tal
qual quem fala com alguém:
− Mas porém não sou da sua relé,
saracutinga! Ao menos inda tenho esta criança,
coisa que você nunca teve e nunca mais há de ter na terra, mulherzinha
rebelde!
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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