A INDÚSTRIA DA CARIDADE
Era dia de moda. A confeitaria
regurgitava. Aqueles móveis de falsa laca, muito pechisbeques e pernósticos,
davam a tudo um ar de fatuidade e presunção. A freqüência especial de
cavadores, gigolôs, "melindrosas", "guitarristas", bobos-alegres,
etc., enchiam o salão, sentados ao redor das mesinhas, olhando, de quando em
quando, de soslaio os espelhos que o circundavam.
A um canto, abancados a uma mesa,
tendo uma garrafa de Canadian em frente, dous amigos conversavam. Eram
sibaritas desses lugares. Gozam em contar um ao outro o que sabem da vida
faustosa dessa gente que, rica de uma hora para outra, se empavesa de repente
com cousas caras, tal e qual um régulo africano que, nos salvados de um
naufrágio, achando um fardão de oficial de marinha, o veste, põe o chapéu
armado e fica de pés no chão. Os dous amigos tinham esse prazer, esse
“gozo" de andar pelas reuniões públicas, tidas como da moda, para
"biografar" os freqüentadores.
Já tinham passado em revista a
toda a sala e, com desgosto, viram que todo o pessoal era
"conhecido".
Afinal, deram com uma família
"desconhecida" que procurava esconder as suas maneiras de Catumbi,
com uma morgue procurada e sob trajes caros no rigor da moda.
O mais velho, o Chichorro,
perguntou ao mais moço, o Veiga:
— Quem é aquela gente? Tu
conheces?
— Sim; conheço, Chichorro; aquela
gente é típica, é a mais pura representação da época. É a família do major
Almério que é aquele de cinzento.
— Major! então não é dos
"novos"?
— Qual! É da Guarda Nacional,
filho!
— Quem é aquele que tem uma
pasta, no último mês de gravidez, e está ao lado do tal Almério?
— Aquilo não é uma pasta; é uma
“guitarra". Aquele sujeito é um advogado que anda metido com
contrabandistas e gente que tal.
— Compreendo... Ele, o tal
Almério, é "guitarrista" também?
— Não. É homem honesto; exerce
legalmente a Indústria da Caridade.
— Indústria da Caridade! Tens
cada uma - livra!
— Lembras-te dos da Renée
Mauperin?
— Lembro-me; e como não me havia
de lembrar desse livro que me causou tanta emoção?
— Pois bem. Há lá um personagem,
cujo nome não me recorda agora, que diz: o furto é a maior indústria do nosso
tempo. Os autores do Renée dizem que estudam, nesse livro, a burguesia ou um
povo burguês de 64; há, portanto, quase sessenta anos que isso era corrente.
Hoje ainda contínua a ser; mas uma indústria nova apareceu ultimamente.
— Qual é?
— A da Caridade.
— Meu Deus! Isto é uma blasfêmia!
— Mas é uma verdade.
— Vou te mostrar como o é. Este
Almério, há menos dez anos passados, morava em Bonsucesso, numa casinha, pela
qual pagava trinta ou quarenta mil-réis. Vivia sabe Deus como. O aluguel da
casa era pago com o produto das costuras da mulher e da filha mais velha, que
tinha, por esse tempo, dezesseis anos; e o resto os vizinhos e amigos forneciam.
Ele vinha todo dia à cidade, a ver se arranjava alguma cousa, qualquer lugar,
mesmo de servente em qualquer repartição pública. Era, porém, caipora, nada
obtinha; mas não desanimava. Veio uma agitação política, por ocasião de uma
sucessão presidencial, e ele viu bem que o "caminho do burro" era ser
do partido do candidato popular. Recordas-te da anedota de Diderot com Rousseau?
— Qual?
— Aquela da resposta a dar à
Academia de Dijon: — "se o progresso das ciências e artes tinha
contribuído para a felicidade do gênero humano?"
— Sim; lembro-me, pois não.
Rousseau queria responder afirmativamente; mas Diderot disse-lhe que seria
burrice: devia responder negativamente.
— Foi o que fez o nosso major. No
negócio presidencial, respondeu — não; foi contra a opinião geral e acertou.
Entrou para uma junta a favor do candidato
execrado; fizeram-no major da
Guarda Nacional e recebia uma diária pelo serviço de
meetings, etc. Começou a jantar e
a almoçar diariamente, e a família também. Os seus horizontes se alargaram. Não
quis mais emprego, fosse qual fosse. Pensou cousa melhor.
— Que fez?
— Planejou um hospital de
crianças. Interessou jornalistas e repórteres do partido da cousa. Recebeu
donativos, o governo federal cedeu-lhe o velho edifício do hospital da brigada
e casas adjacentes, restauradas, deu-lhe uma subvenção; o governo municipal,
outra. Ele se instalou num palacete, mobiliado com remanescentes das
subvenções, que lhe dão também para
comer e vestir-se luxuosamente, ele, mulher e filhas.
— Como se mantém nessa
“mamata"?
— À custa de manifestações a tudo
quanto é impopular, portanto, do agrado do "poder".
— Talvez tenha razão, porque nem
tudo o que é popular é justo.
— Não há dúvida, caro Chichorro.
Noto um fato social e mais nada.
— O papai Basílio fez pior, com o
seu Asilo de Santa Rita de Cássia — caso que muito contribuiu para a fama do
nosso atual desembargador Ataulfo... Como o tempo corre, hein?
— É verdade. Valha-nos isto:
Almério não repetiu o papai Basilio.
Sorveram um trago de uísque e, com
o pensamento longe, puseram-se a olhar a sala sem nada ver ao centro e sem
trocarem palavra.
A família do major levantou-se e
todo o rancho passou por perto dos amigos que sonhavam, mergulhados naquele
burburinho de vaidade.
O homem da “guitarra” disse bem
alto e cheio de suficiência:
— Consinto em ir jantar com
"vocês"; mas com uma condição: eu pago o automóvel.
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Nota:
Lima Barreto: "Histórias e Sonhos" (1920)
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