UMA CONVERSA
— Disse-te ainda há pouco, falou
o Zeca Magalhães, na mesa de chopes em que estávamos, que não tinha certeza das
minhas sensações e, portanto, não tinha nenhuma das minhas idéias. Não é o
momento de te citar filósofos, nem organizar raciocínios rimados. Conto-te
somente um caso ilustrativo, cheio de proveitosos ensinamentos.
Pegou do copo e sorveu um segundo
chope, enquanto eu via, numa mesa ao lado, um gordo alemão com um focinho de
porco Yorkshire, acompanhado da mais linda alemã que foi dado aos olhos de um
carioca, que nunca saiu da sua cidade natal, ver e contemplar.
— Zeca, disse eu, a meia voz, vê
que alemã bonita.
— Era disso mesmo que eu queria
falar, fez ele descansando o copo.
— Da alemã?
— Relaciona-se. Eu estava no
teatro... Foi há vinte anos, ou mais. Estava no teatro, no jardim, quando vi
uma mulher. Que beleza era! Tinha uns olhos, um nariz! E que boca!
— Pintura.
— Qual! Ouve. Olhei-a
demoradamente, analisei traço por traço, via-a na luz, pus-me mais perto e a
impressão continuava a mesma, e até crescia. Ao sair, acompanhei-a... tu sabes
o resto? Pela manhã, quando acordei e contemplei a mulher, sob a luz do sol,
não era a mesma! Cos diabos! fiz eu. Querem ver que me trocaram a mulher? Nada
disso, despedi-me com toda a conveniência e saí. O caso não me saiu da cabeça.
Eu a tinha visto no teatro, em plena integridade dos meus sentidos; tinha
analisado detalhadamente — como era então que a mulher que eu via, às oito
horas da tarde, não era a mesma de quem me despedi às seis da manhã do dia
seguinte? Pintura? Não foi, eu tinha reparado bem. Voltei à sua casa dias seguintes.
Examinei-a bem, traço a traço, comparei-a com as duas imagens que tinha dela —
a das oito da tarde e a das seis da manhã. Nada lembrava a primeira, sendo
exatamente igual à segunda. Voltei ao teatro, estive a lhe falar — era ainda a segunda
imagem, a mais próxima. Estava doido naquela noite! pensei. Rememorei o que
fizera naquele dia e nos precedentes ao meu encontro com a tal italiana.
Lembrei-me que tinha recebido
umas estampas de grandes obras de escultura e, na sua contemplação, gastara
horas seguidas de uma atenção absorvente. Estava aí a causa do erro! Sobre os
seus traços verdadeiros, ou antes, os mais reais, eu tinha depositado a imagem
anterior da grande beleza que me ficara do livro; e, quando de manhã, com a
fadiga, etc., ela se esvaiu, ficou mais ou menos a mulher comum, fugindo por
completo a idéia anterior com que eu a revestira. Daí concluí, não sem
ligeireza, que essa nossa mania de beleza é um contágio dos delirantes sonhos
de alguns homens, dados a loucuras de Arte, exacerbados com os delírios das
tradições de antigas raças e sofrendo a tirania dos ideais belos; é que as
nossas sensações são interpretadas pelo nosso entendimento, de acordo com as
imagens de certos padrões, que já estamos predispostos a recebê-las...
— Concordo em parte; mas daí
podias concluir que a Arte é útil, estimula o Amor, a eternidade da vida...
— Quanto a isto, não; há nas
boticas outros sucedâneos menos perigosos.
Não havia uma hora que eu o tinha
visto terno; agora estava desabusado, cinicamente brutal, cobrindo com um
sarcasmo o que sempre o vira engrandecer.
— Entretanto, observei, para que
a visses assim, era preciso que ela tivesse alguma coisa da tal estampa que se
te gravara no cérebro.
— Estava talhada para isso... No
momento, possui uma disposição qualquer, nos seus elementos fisionômicos, capaz
de suscitar e de emitir a imagem que eu já tinha, nos seus traços vivos.
Bebíamos o quinto chope, e,
embora por estas alturas, eu sempre fique mais inteligente e animado, naquela
noite, a fadiga não permitiu. Despedi-me.
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Nota:
Lima Barreto: "Histórias e Sonhos" (1920)
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