DENTES NEGROS E CABELOS AZUIS
A Edgard Hasselman
Era dos mais velhos, o
conhecimento que eu mantinha com esse rapaz. Iniciadas na rua, nos ligeiros
encontros dos cafés, as nossas relações se estreitavam dia a dia. Nos primeiros
tempos, ele sempre me apareceu como uma pessoa inalteravelmente jovial,
indiferente às pequeninas cousas do mundo, céptico a seu modo; mas, em breve
sob essa máscara de polidez, fui percebendo nele um queixoso, um amargo a quem
uma melancolia, provinda de fugitivas aspirações impossíveis, revestia de uma tristeza
coesa. Depois o seu caráter e a sua organização muito concorriam para sua
dorida existência. Muito inteligente para amar a sociedade de que saíra, e
muito finamente delicado para se contentar de tolerado em outra qualquer,
Gabriel vivia isolado, bastando-se a si e aos seus pensamentos, como um
estranho anacoreta que fizesse, do agitado das cidades, ermo para seu
recolhimento.
As vezes ele nos surgia com uns
ares de letrado chinês, lido em Sai-Tsê, calmo, superior, seguro de si e
contente de se sacrificar à lógica imanente das cousas. Não dava um ai, não se
lamentava, talvez temendo que o alarido de seus queixumes não desassossegasse a
viagem do seu espírito “par-dela du soleil, par-dela de l'éther,
par-dela des confins de sphères étoilées".
Um dia o encontramos, eu e mais
alguns da roda, e a um deles que lhe perguntava: “Que tu vais fazer
agora?" aludindo às conseqüências do último desastre da sua vida, Gabriel
responde:
— Nada! O soberano bem não é
agir.
Dias depois confessava-me o
contemplativo que seguia idiotamente, pelas ruas e pelos bondes, os belos olhos
negros de uma preceptora francesa.
Sua natureza era assim, dual,
bifronte, sendo que os seus aspectos, por vezes, chocavam-se, guerreavam-se sem
nunca se colarem, sem nunca se justaporem, dando a crer que havia entre as duas
partes um vazio, uma falha a preencher, que à sua união se opunha um forte
obstáculo mecânico...
Esta maneira biface de sua
organização, a sua sensibilidade muito pronta e uma tentação delirante, para as
satisfações materiais, tinham transformado a sua vida num acúmulo de desastres;
pelo que, em decorrer dela, de todo se lhe fora aquela película céptica,
faceta, gaiata, ficando-lhe mais evidente a alegria e o sainete do filósofo
pessimista, irônico, debicando a mentira
por ter conhecimento da verdade, que é uma das povoadoras da imagem sem
validade que é o mundo. Pelos seus trinta e quatro anos, eu o procurava em
sua casa uma pequena casinha, numa rua da ponta do Caju, junto daquele mar de
morte que beija as praias desse arrabalde, olhando defronte o cinzelado
panorama das montanhas.
Não vivia mal, o emprego exigia
pouco e dava relativamente muito; e solteiro, habitava a casinha com um
africano velho, seu amigo, seu oráculo e seu cozinheiro; e um desgraçado
poetastro das ruas, semilouco e vagabundo.
Era uma colônia de ratés animados
pela resignação africana.
Quando eu entrei em sua casa
naquela tarde, a sua fisionomia radiava. Pareceu-me que a iluminação interior
que há muito sentíamos nele ia afinal exteriorizar-se. Seu rosto afinara-se,
sua testa alongara-se, havia pelo seu olhar faiscações novas; era como se a
graça descesse até ele, povoasse-lhe a alma e a enchesse de tal modo que se
extravasasse pelo seu olhar brilhante, bondoso e agora calmo.
— Que tens hoje, fui lhe dizendo,
a tua apaixonada rendeu-se ou achaste... o teu destino?
— Qual paixão, qual destino!
interrompeu ele. O sábio não tem paixões para melhor poder contemplar a
harmonia do universo.
E depois dessa sentença, não sei
de que filósofo hindu ou chinês, ele me leu o seguinte, escrito com letra miúda
e irregular em duas dezenas de tiras de papel almaço, cheias de paixão.
Morava eu nesse tempo em rua
remota de uma estação de subúrbio afastado. Sem calçamento e mal iluminada, eu
a trilhava às desoras em busca da casa reconfortante. Afazeres, e, em geral, a
exigência do meu temperamento pelo bulício, pela luz da cidade, faziam-me
demorar nas ruas centrais. A esmo, por elas à toa, passeava, vagava horas e
horas, olhando e conversando aqui, ali; e quando inteiramente fatigado, buscava
o trem e durante uma meia hora, tímido, covarde, encostado a um canto, pensava,
sofria à menor risota e o mais imbecil dito cortava-me a alma. Era a constante
preocupação das minhas idéias passar meu sofrimento, a outra pessoa, evitá-lo
detidamente a alguém.
Sob a pressão daquela mágoa
eterna, no meu íntimo ficava o seu segredo exigente de comunicação, fosse mesmo
a quem não tivesse o refinamento do meu espírito e que a substância imortal lhe
animasse a vida, não tivesse sido adivinhado e me sentia impelido a
comunicá-lo.
Era nessas ocasiões que eu
pensava no amor, mas... Bem depressa, porém, meu espírito se perdia, caia em
devaneio, não encontrava deleite, sorria. Do homem ia aos cães, aos gatos, às
aves, às plantas, à terra, em busca de confidente.
Uma vez, em frente ao mar
augusto, verde e translúcido, tive desejos de lhe contar o meu segredo, mas
logo o temor me veio de que os ventos voltassem, e trouxessem para a vasta
cidade as minhas palavras, tal como a planta que nasceu à confidência feita à
terra do feitio das orelhas do rei Midas.
Quando a percepção do meu estado,
da maneira da minha existência, era mais clara aos meus olhos, arquitetava
planos de fugas para lugares longínquos, livros vibrantes como indignações de Deus;
mas nada disso executei. Qualquer cousa muito obscura na minha estrutura
mental, talvez mesmo o sentimento da lógica da hostilidade de que me via
cercado, impedia-me de reagir ativa ou passivamente. Agachava-me por detrás do
meu espírito e então bebia em largos prantos o fogo claro, claro que enche os
límpidos espaços e, por instantes, era feliz porque:
Heureux celui qui peut d'une aile vigoureuse
S'élancer vers les champs lumineux et sereins,
Celui dont les pensées comme des alouettes
Vers les cieux le matin prennent un libre essor
Qui plane sur la vie
et comprend sans effort
Le langage des fleurs
et des choses muettes.
Depois de ter carinhosamente
ouvido essa linguagem, a amargura aumentava. O espírito dirigia, reclamava,
queria qualquer cousa, não se bastava a si mesmo, esperava na sua prisão, no
seu cárcere; e, para o meu caso, oh! que blasfêmia, o provérbio se modificara:
"não é só de espírito que vive o homem...”
Certa noite, demorando-me mais do
que de costume, fui saltar à estação pelas duas horas da madrugada. Tudo era
mudo e ermo. Um ventinho constante soprava, inclinando as árvores das chácaras
e agitando as amareladas luzernas de gás como espectros aterradores. As casas
imóveis, caiadas, hermeticamente fechadas pareciam sepulcros com portas negras.
A escuridão aconchegava os morros nas suas dobras. Pus-me a andar rapidamente.
A rua pouco larga, bordada de bambuais de um e outro lado, iluminada
frouxamente e abobadada no nevoeiro, era como uma longa galeria de museu. Em
meio do caminho, alguém saltou-me na frente e, de faca em punho, disse-me:
— Olá! Passe o "bronze"
que tem.
Não tinha francamente grande
prática desses encontros, contudo me portei na altura da sua delicadeza.
Calmamente tirei das algibeiras o pouco dinheiro que tinha e, de mistura com
alguns cupons de bonde, pálido, mas sem tremer, entreguei-o ao opressor daquele
minuto fugace.
O gesto foi belo e impressionou o
bandido, a tal ponto que nem por sonhos desconfiou que eu poderia ter deixado
algum oculto pelos forros. Há, já se disse, mais ingenuidade nos grandes
criminosos do que a gente em geral supõe. Quase com repugnância ele recebeu o
maço que lhe estendia; e já se retirava quando a uma onda de luz que em um
vaivém da chama de gás lançou-me, percebeu alguma cousa nos meus cabelos e com
ironia indagou:
— Tens penas? És azul? Que diabo!
Estes teus cabelos são especiais.
Ouvindo isso, eu o fitei com as
pupilas em brasa e minha fisionomia devia ter tão estranha expressão de
angústia que o ladrão fechou a sua e estremeceu. E que as suas palavras
relembravam-me toda a minha existência envenenada por aquele singular acidente;
as desastrosas hesitações de que ela ficara cheia; o azedume perturbador,
ressaibo do ódio e de amarguras de que estava tisnado. Os suplícios a que meu
próprio espírito impunha. E de uma só vez, baralhado tudo isso se ofereceu aos
olhos como uma obsessão demoníaca, algo premente, cruel, vivendo em tudo, em
todas as cousas, em qualquer boca, na boca de um ladrão.
— Pois até tu! Que mais queres de
mim? disse-lhe eu. Acaso além do dinheiro que trazem nas algibeiras, mais
alguma coisa te interessa nos transeuntes? Es também da sociedade? Movem-te as
considerações dela?
Olhei-o interrogativamente. O
homem tinha o ar mudado. Os lábios estavam entreabertos, trêmulos, pálidos, o
olhar esgazeado, fixo, cravado no meu rosto.
Olhava-me como se olhasse um
duende, um fantasma. Contendo porém a comoção, pôde dizer:
— Dentes negros! Meu Deus! É o
diabo! É uma alma penada, é um fantasma.
E o rosto dele dilatava-se, as pupilas
estendiam-se; tinha os cabelos eriçados o homem que me assaltava; e desandaria
a correr se o medo não lhe pusesse pesadas toneladas nas pernas.
Esteve assim minutos até que
percebeu que a expressão do meu rosto era de choro e que nele havia a denúncia
de uma grande mágoa fatal. O meu interlocutor transmudou as contrações de
horror estampadas nas suas feições,
abrindo-as num dúlcido sorriso de bondade.
— Desculpa-me. Desculpa-me. Não
sabia. Quem não sabe é como que não vê.
E sem ligação continuou:
— Não me creias um miserável
gatuno de estradas, um comum assaltante de ruas. Foi o momento que me fez.
Emprego-me em mais altos "trabalhos", mas preciso de uns
"miúdos" e, para obtê-los, o
meio se impunha. Se me demorasse, a ocasião perdia-se. Bem sabes, a vida
é um combate; se não se fere logo, morre-se. Mas... Deus me ajudará. Toma o teu
dinheiro. Arranjarei sem ele como iniciar o meu grande "trabalho",
aquele que é a mira, o escopo da minha existência, que me vai dar, enfim, o
descanso (resplandecia), a consideração dos meus semelhantes e o respeito da
sociedade. Vai... Tu és sem esperança. Vai-te... Desculpa-me.
Aqueles meus cabelos azuis,
cabelos que eram o suplício da minha vida, e aqueles meus dentes negros
compuseram-se, dignificaram-se para sorrir ao herói jovialmente, de
reconhecimento e ternura.
— Mas quem te faz sofrer, rapaz?
perguntou-me o desconhecido.
— Ninguém, falei-lhe eu, ninguém.
E o meu espírito, meu entendimento, é a representação que ele faz do mundo
circundante.
Íamos nos separar, quando ainda
ele insistia:
— Com isso deves sofrer muito?
Dessa vez, antes de lhe responder
pensei ligeiramente. Quem seria aquele homem?
Vê-lo-ia ainda uma vez? Nunca
mais, era certo. Depois daquele minúsculo incidente de sua carreira,
continuaria inflexivelmente na sua grande missão sobre a terra. Teria todo o
interesse em me fugir, em desaparecer dos meus olhos, ou senão, reconhecido, se
eu encontrando não o denunciasse, ligar-se-ia a mim pela gratidão. Por que,
sendo assim, não havia eu de lhe contar o meu segredo? Ouviria, não
compreenderia bem; se o quisesse contar a outrem as palavras me faltariam. Certo
disso e de que naquele indivíduo a ternura não era um jogo de sociedade, nem
uma forma de elegância, quase espontaneamente, pus-me a lhe narrar a minha desventura:
— Dói-me, sim! Dói-me muito. É o
demônio que me persegue, é o perverso desdobramento da minha pessoa. E uma
companhia má, amarga, tenaz que me esporeia
e que me retalha. Ela vai junto a mim, bem junto, no caminho que trilho, haja luz
ou haja trevas, seja povoada ou deserta a estrada. Não me abandona, não me
larga. Dorme comigo, sonha comigo; se me afasto um instante dela ela volta logo,
logo, dizendo-me ao ouvido baixinho, com um cicio cortante: 'stou aqui! É um símio irritante que me faz
caratonhas e me vai às costas, pula na minha frente, dança, esperneia.
O ladrão tinha agora outra
espécie de espanto: era o espanto das palavras, das altas palavras. A sua
grosseria nativa, primacial, sem limitações de qualquer educação, ia por elas
alto, entendendo-as a meio, seu espírito aguçava-se e penetrava melhor no meu.
— Se, em dia claro e azulado,
continuei, vou por entre árvores, crendo-me só, e feliz, o miserável rafeiro
que passa deixa a inexorável busca do osso descarnado, para olhar as caretas do
símio em que me desdobro, e ri-se de mim, meio espantado, mas satisfeito.
Então, como por encanto o caminho se povoa. Há por toda parte zumbidos,
alaridos, risotas. Do farfalho das árvores ouço: Olá, tingiste a cabeça no céu; mas onde enlameaste a boca? Os seixos
rolam, crepitam, e na sua vileza não escolhes palavras, não ensaiam deboches,
gritam: monstrengo, vergonha da terra.
O gatuno analisava-me a
fisionomia. Detinha-se nos meus olhos, no meu nariz, nos meus lábios, até as
minhas mãos, os meus pés mereceram a análise do seu olhar inquieto. Foi por
esse tempo que me lembrou reparar quem estava na minha frente. Era um homem
alto, de largas espáduas, membrado, e que em "sotaque" espanhol, me
falou ainda:
— Tu és poeta. Fantasias... Vês
demais.
— Talvez que a minha
sensibilidade... Mas não, não! Meu organismo não mente, fala a verdade: é como
o microscópio a descobrir um mundo hostil onde nada se vê, retorqui eu...
— Não andas por aí, pelos
teatros, pelos cafés - como então é possível isso? inquiriu ele.
A pergunta me atrapalhava; era da
minha natureza, estas contradições ostensivas, entretanto pude lhe responder:
— É verdade.., mas palmilho tais
lugares escravo do meu gênio, servo dos meus sentidos, que são inimigos do meu
corpo; posso fugir deles, mas muito me custa seguir o curso imperioso dos meus
nervos. Não sei... Não sei... Eu devia fugir, desaparecer, pois mal ando
passos, mal me esgueiro numa travessa, das gelosias, dos mendigos, dos
cocheiros, da gente mais vil e da mais alta, só uma cousa ouço: lá vai o homem
de cabelos azuis, o homem de dentes negros... É um suplício! Tudo se apaga em
mim. Isso unicamente brilha. Se um amigo quer referir-se a mim em conversa de
outros, diz: aquele, aquele dos dentes negros... Os meus sonhos, as minhas
leituras, são povoados pelos momos do símio. Se escrevo e faltam sílabas nas
palavras, se estudo e não compreendo logo, o sagüi salta-me na frente dizendo com
escárnio:— fui eu que a "cumi", fui eu que não te deixei
compreender...
Meu peito arfava, meus olhos
deviam brilhar desusadamente. A animação passava de mim ao ouvinte. Ele todo
vibrava às minhas palavras...
— Mas trabalha, sê grande...
combate, aconselhou-me.
— Bom conselho, bom... Ah! Como
és mau estratego! Não percebes que não me é dado oferecer batalha; que sou como
um exército que tem sempre um flanco aberto ao inimigo? A derrota é fatal. Se
ainda me houvesse curvado ao estatuído, podia... Agora...não posso mais. No
entanto tenho que ir na vida pela senda estreita da prudência e da humildade,
não me afastarei dela uma linha, porque à direita há os espeques dos imbecis, e
à esquerda, a mó da sabedoria mandarinata ameaça triturar-me. Tenho que avançar
como um acrobata no arame. Inclino-me daqui; inclino-me dali; e em tomo recebo
a carícia do ilimitado, do vago, do imenso
Se a corda estremece acovardo-me logo, o ponto de mira me surge
recordado pelo berreiro que vem de baixo, em redor aos gritos: homem de cabelos
azuis, monstro, neurastênico. E entre todos os gritos soa mais alto o de um
senhora de cartola, parece oco, assemelhando-se a um grande corvo, não voa,
anda chumbado à terra, segue um trilho certo cravado ao solo com firmeza — esse
berra alto, muito alto: "Posso lhe afirmar que é um degenerado, um
inferior, as modificações que ele apresenta correspondem a diferenças
bastardas, desprezíveis de estrutura física; vinte mil sábios alemães,
ingleses, belgas, afirmam e sustentam"... Assim vivo. E como se todo dia,
delicadamente, de forma a não interessar os órgãos nobres da vida, me fossem enterrando
alfinetes, um a um aumentando cada manhã que viesse... Até quando será? Até
quando? fiz eu exuberante.
Uma rajada mais forte do vento
que soprava quase apagava o combustor próximo. Ao cantar dos galos já se
juntava a bulha do rolar de carroças na rua próxima. O subúrbio ia despertar.
Despedi-me do salteador.
Andara alguns passos e como me
parecesse que me chamavam, voltei-me e dei com a figura retangular do ladrão,
agitando-se ao meneio de sua cabeça, como a venerável bandeira de misericórdia
das execuções.
Pelos anos em fora, pelos dias
iguais e monótonos que minha vida presenciou, mais fundo que essa incurável
mágoa muito sofrida na mocidade, doeu-me à minha alma mais, muito mais a
sincera piedade que inspirei àquele homem.
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Nota:
Lima Barreto: "Histórias e Sonhos" (1920)
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