quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Mariana Ianelli: "5 Poemas"

ARCA DA LEMBRANÇA

Um sol de opala se uma tarde é pasto da memória,
Uma luz de chá dourando o canto cego de uma sala
E sobre a mesa o espelho d’água

A ocasião do ato secreto

De repovoar veredas, antros, mirantes do passado,
Saudade que vai juncando de ramos, conchas e corais
Todo o imenso dorso de um barco naufragado.



OS TEUS OLHOS

Que estejam vivos em algum lugar
Os teus olhos –

Não importa onde se demorem,
Que coisas afaguem, que outras molestem,
Importa que estejam vivos e curiosos
Esses olhos

E olhem para dentro alguma vez
E o que vejam
Seja alguma força de sequóia
Presa à terra desde o império
De outros tempos

E seja ainda uma fonte de pedra,
Sejam águas correntes e o privilégio
De uma calma repleta
(O regozijo da sombra
Passado o terror das guerras)

Que dessa multidão, desse rubor de sumo
E segredo de floresta
Se encham os teus olhos,
E só então se esfumem, e só então se fechem.


  
FANTASIA

Depois da bruma que seduz ao erro
Depois da grande decepção e do escrúpulo
Mesmo que te doendo como a um animal
Perdido, arremessado no vazio de um campo,

Pudesse vingar pura a criança
No sopro que te deu vida, coração fremente,
Deslumbramento à margem dos abismos,
Um guizo de túrgidas estrelas e nada mais...



DÁDIVA

Vem de uma extinta batalha
O calor dessa ternura
Que é uma espécie de cansaço.

Quando a palavra não ousa,
Conversam os nossos olhos
Sobre descampados, carcaças tristes,
Um cenário de fumaça
De uma devastação que nos deu
O ritmo e as razões de um salmo.

O que nos dizemos
Os amantes se dizem, os irmãos,
Os cúmplices numa atrocidade.

Dizem os olhos
A noite que viram do outro lado
E o translúcido,
Finíssimo domo de orvalho
Que começamos a ver (e nos envolve)
No começo de uma lágrima.



NESTE LUGAR

Nenhum traço de delicadeza,
Só palavras ávidas
E o tempo,
A devoração do tempo.

Um jardim entregue
Às chuvas e aos ventos.

O que para os cães
É febre de matança
E para um deus
Um dos seus inúmeros
Prazeres.

Caminhos de sangue
Onde reina o amor primeiro,
Morada de súbita
Ausência do medo.

Um despenhadeiro, o céu
E uma queda
Sem alívio de esquecimento.


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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VIII - Abril-Maio-Junho 2012 - Ano I - Nº 71


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