sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Márcio Catunda: "5 Poemas"

PERORAÇÃO

Dai-me uma corda pra que eu me acorde.
Dai-me um acorde pra que eu não durma.
Dai-me um acordo pra que eu me acuda.
Dai-me um enfoque pra que não me enforque.
Dai-me um escudo pra que eu me descuide.
Dai-me um encanto pro meu acalanto.
Dai-me um Talmude pra que eu me transmude.
Dai-me um archote pra que eu não me açoite.
Dai-me um Descartes pra que eu não me descarte.
Dai-me um encarte pra que eu dê as cartas.
Dai-me a concórdia em nome da ordem.
Dai-me equilíbrio pra que eu não me ludibrie.



A CRIANÇA NA PRAIA

A criança se distrai,
procurando conchinhas na praia.
Concentrada na sua faina inocente,
não cobiça os bens dos semelhantes,
não inveja o êxito de ninguém.
No diâmetro mínimo do seu horizonte,
caminha com a liberdade do momento pleno.
Ao recolher pequenos tesouros na areia,
tão absorta em sua satisfação,
tarda a escutar o chamado do pai.
E, quando o acompanha,
abstrai-se no encantamento
de nada preocupá-la.
A criança vive o instante,
sem imaginar um Deus que a console.
Pudesse eu ser essa criança
que não sabe o que faz,
mas sabe o que não faz.

  

O MAR FALA COMIGO

O mar fala comigo em seu idioma rústico.
Que dizem os seus rumores embevecedores?
Ele sabe que sou o devoto da sua clara perspectiva,
que bebo em êxtase o amplo, azul, caminho oscilante.
O mar fala comigo desdobrando o fluido manto
na entrega fraternal das flores de espuma.
Dissipo o tédio ao largo das ondas
e observo longamente o fervilhante movimento,
que refulge no seu campo alado.
Por que tanto me agrada esse mistério sonoro?
Essa visão cromática, por que me deleita de lânguidos prazeres?
Vejo a água em curvas sucessivas,
fremente borbulhar que ultrapassa o horizonte,
inundando tudo de encantamento.
O mar fala comigo desde a minha infância.
Cresci escutando a música enigmática,
e vivo sempre extasiado de contemplações.
Sacerdote de Poseidon,
medito envolto na brisa ensolarada.



A ROSA

A rosa vem pela quintessência,
prova de amor.
Dádiva de aroma,
sublime expansão,
em cada pétala um milagre.
A rosa vem das estrelas,
abrindo os véus etéreos.
Sereno materializado
em sacrifício à nossa esperança.
Doadora de luz!
Consoladora dos poetas!
Propiciadora de sonhos afetuosos!
  


PRÓ E CONTRA

Pelo lote da glosa e pelo logos do apelo.
Contra o epílogo da epiglote.
Pelo lótus e a rosa do desvelo.
Contra o pote da hipótese.
Contra o atrito da tribulação.
Pelo pátio da teatralização,
Pelo retrato da retratação.
Pelo destroço do horto ortodoxo.
Contra o acróstico do agnóstico,
contra o gozo do algoz.
Contra o trigo da intriga,
contrito com o lógico.
Contra o trago amargo do letargo.
Contra o luto e o anacoluto de Cloto.


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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Abril-Maio-Junho 2011 - Ano XVII - Nº 67 - (Academia Brasileira de Letras - ABL)

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