AO RAPAZ QUE SE PARECIA COM DEUS
Homo sum: nihilhumani a me alienum puto
Terêncio
Nas vastas
pradarias em que me converti nativo,
Em que, livre,
desarmei cercas e ergui um povoado,
Juntei nuvens,
pássaros e animais de carga
E deles tirei um
para percorrer o que era só campo
E mata fora. Mirei
o horizonte com desconforto
Sensível. Pelas
tardes juntei mais nuvens e mais pássaros
E, com eles,
formei o meu rebanho; me recompus.
Por detrás do céu
percebi luz de treva enamorada
E me contentei em
saber e sentir que não estava só.
Dali parti para o
nada com as cores de meu sonho,
Me adivinhei
descoberto, porém jamais perdido. Logo,
Sigo os passos da
luz, sem inimigos conhecer,
Porque todos me
veem como um deus entre malvas,
Tiriricas,
sensitivas, cansanção e moitas de espinho,
Cerne de dor que
torna a vida um jogo entre paixões,
E o corpo, um
advento que ao destino nos transporta.
Não sei o que a
água oculta; se ninfas, se anjos rebelados;
Me percebo, me
educo com respirações de olvidos
E não me revolto
por ser súdito no reino do silêncio.
Não me atrevo a
sorrir, mas a chorar me recuso.
Homem sendo e
ouvindo dia e noite antiga voz,
No íntimo, guardo:
nada que é humano me é indiferente.
INSTÂNCIA DE FLOR E VASO
(D´après Ortega y Gasset sobre a pintura)
Afortunadamente, a
rosa ignora
A ciência
botânica, tanto quanto
Eu, ainda jovem,
saindo porta afora,
Não saiba aonde me
leva meu espanto.
Pego um objeto;
por exemplo, um vaso.
Olho-o ali; miro-o
e sei que me está perto.
Se distante, o não
sei capaz acaso
De me manter o
mudo olhar desperto.
Tenho-os como uma
só coisa, igualmente:
Se longe, vejo bem
mais o fundo oco,
Que foge sem que
paire em minha mente
O olhar que me
estremece, quando toco.
Olhando, atento,
vou seguindo a luz,
Que deste ponto é
a flor que me seduz.
CATORZE JANELAS ABERTAS
A natureza
aponta-me o caminho.
Ei-lo. Sereno e
sem fadiga, sigo-o.
As águas vêm e
voltam. Quando o sol
Resseca sapucaias
ainda vivas,
Poeira recobre
dias que já somem,
Vozes estendem
búzios pela tarde,
O vento ruge, o
frio me estrangula.
É noite. Contemplo
o horizonte vasto:
Vésper ateia a
lenha dos sentidos.
Perguntam-me se a
luz ajuda. O fogo
Logo se ergue (as
achas já estão crestando).
Daqui a pouco,
haverá estrelas no céu,
A paisagem
descansa inteira. Então,
Dormirei sossegado
com os meus ontens.
SIM, ESTAR É SER
Qual Pessoa de
tantos heterônimos,
sofro, pelos
desvãos da vida do eu
profundo, a perda
da feliz infância,
a irremediável
morte de meus anjos.
Pouco apressado,
por iluminadas
tabernas e
sombrios corredores,
segui e ainda os
persigo com o meu fardo.
Incapaz de ser
muitos, fui nenhum;
apenas um único
que recorda,
pastoreando horas,
infindáveis dias.
Sou e não sou — de
hoje, quase ninguém;
de ontem, muitos.
Dialogo com os meus prantos.
Mas, se das nuvens
um sorriso pende,
Pela porta entram
retornados anjos.
REQUIESCAT
IN LUCEM
O poema nunca diz
o que devia.
Sugere apenas,
tanto quanto alude.
Homem cansado,
quando morto o dia,
sacia a sede à
beira de um açude.
Escrevi um poema e
quanto mais o lia,
mais nele vibrava
um acento rude;
bem mais fadado a
palco de arrelia,
que em mim
persiste a rogar que o mude.
Lugar de se pensar
no que dizer,
o poema aguarda;
pérola na concha,
tudo nele pertence
a quem vai ler.
Se retorna lanhado
da porfia,
logo implora que
se lhe tire a roncha.
Poema tem a ver
com a luz do dia.
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Fonte:
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
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