segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Florisvaldo Mattos: "5 Poemas"

AO RAPAZ QUE SE PARECIA COM DEUS
Homo sum: nihilhumani a me alienum puto
Terêncio

Nas vastas pradarias em que me converti nativo,
Em que, livre, desarmei cercas e ergui um povoado,
Juntei nuvens, pássaros e animais de carga
E deles tirei um para percorrer o que era só campo
E mata fora. Mirei o horizonte com desconforto
Sensível. Pelas tardes juntei mais nuvens e mais pássaros
E, com eles, formei o meu rebanho; me recompus.
Por detrás do céu percebi luz de treva enamorada
E me contentei em saber e sentir que não estava só.
Dali parti para o nada com as cores de meu sonho,
Me adivinhei descoberto, porém jamais perdido. Logo,
Sigo os passos da luz, sem inimigos conhecer,
Porque todos me veem como um deus entre malvas,
Tiriricas, sensitivas, cansanção e moitas de espinho,
Cerne de dor que torna a vida um jogo entre paixões,
E o corpo, um advento que ao destino nos transporta.
Não sei o que a água oculta; se ninfas, se anjos rebelados;
Me percebo, me educo com respirações de olvidos
E não me revolto por ser súdito no reino do silêncio.
Não me atrevo a sorrir, mas a chorar me recuso.
Homem sendo e ouvindo dia e noite antiga voz,
No íntimo, guardo: nada que é humano me é indiferente.



INSTÂNCIA DE FLOR E VASO
(D´après Ortega y Gasset sobre a pintura)

Afortunadamente, a rosa ignora
A ciência botânica, tanto quanto
Eu, ainda jovem, saindo porta afora,
Não saiba aonde me leva meu espanto.
Pego um objeto; por exemplo, um vaso.
Olho-o ali; miro-o e sei que me está perto.
Se distante, o não sei capaz acaso
De me manter o mudo olhar desperto.
Tenho-os como uma só coisa, igualmente:
Se longe, vejo bem mais o fundo oco,
Que foge sem que paire em minha mente
O olhar que me estremece, quando toco.
Olhando, atento, vou seguindo a luz,
Que deste ponto é a flor que me seduz.



CATORZE JANELAS ABERTAS
A natureza aponta-me o caminho.
Ei-lo. Sereno e sem fadiga, sigo-o.
As águas vêm e voltam. Quando o sol
Resseca sapucaias ainda vivas,
Poeira recobre dias que já somem,
Vozes estendem búzios pela tarde,
O vento ruge, o frio me estrangula.
É noite. Contemplo o horizonte vasto:
Vésper ateia a lenha dos sentidos.
Perguntam-me se a luz ajuda. O fogo
Logo se ergue (as achas já estão crestando).
Daqui a pouco, haverá estrelas no céu,
A paisagem descansa inteira. Então,
Dormirei sossegado com os meus ontens.


SIM, ESTAR É SER
Qual Pessoa de tantos heterônimos,
sofro, pelos desvãos da vida do eu
profundo, a perda da feliz infância,
a irremediável morte de meus anjos.
Pouco apressado, por iluminadas
tabernas e sombrios corredores,
segui e ainda os persigo com o meu fardo.
Incapaz de ser muitos, fui nenhum;
apenas um único que recorda,
pastoreando horas, infindáveis dias.
Sou e não sou — de hoje, quase ninguém;
de ontem, muitos. Dialogo com os meus prantos.
Mas, se das nuvens um sorriso pende,
Pela porta entram retornados anjos.



REQUIESCAT IN LUCEM
O poema nunca diz o que devia.
Sugere apenas, tanto quanto alude.
Homem cansado, quando morto o dia,
sacia a sede à beira de um açude.
Escrevi um poema e quanto mais o lia,
mais nele vibrava um acento rude;
bem mais fadado a palco de arrelia,
que em mim persiste a rogar que o mude.
Lugar de se pensar no que dizer,
o poema aguarda; pérola na concha,
tudo nele pertence a quem vai ler.
Se retorna lanhado da porfia,
logo implora que se lhe tire a roncha.
Poema tem a ver com a luz do dia.



---
Fonte:
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário