DESEJO
As coisas que não
conseguem morrer
Só por isso são
chamadas eternas.
As estrelas,
dolorosas lanternas
Que não sabem o
que é deixar de ser.
Ó força
incognoscível que governas
O meu querer, como
o meu não-querer.
Quisera estar
entre as simples luzernas
Que morrem no
primeiro entardecer.
Ser deus — e não
as coisas mais ditosas
Quanto mais
breves, como são as rosas
É não sonhar, é
nada mais obter.
Ó alegria dourada
de o não ser
Entre as coisas
que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu
dormir nem morrer.
A MEDUSA DE FOGO
A simples bulha
surda
Do meu coração
batendo
Poderá te acordar.
Mesmo a penugem da
lua
Que cai sobre o
ombro nu
Das árvores, tão
de leve,
Poderá te acordar.
A simples caída da
bolha
D'água sobre a
folha,
Por ser fria como
a neve,
Poderá te acordar.
Só porque a rosa
lembra
Um grito vermelho,
Retiro-a de diante
do espelho
Porque — de tão
rubra —
Poderá te acordar.
E se nasce a manhã
Calço-lhe logo pés
de lã,
Porque ela, com
seus pássaros,
Poderá te acordar.
Mesmo o meu maior
silêncio,
O meu mudo
pé-ante-pé,
De tão mudo que é,
Não irá te
acordar?
Ó MEDUSA DE FOGO
Conserva-te
dormida.
Com o teu fogo
ruivo e meu,
Qual monstruosa
ferida.
Como data
esquecida.
Como aranha
escondida
Num ângulo da
parede.
Como rima
água-marinha
Que morreu de
sede.
E eu serei tão
breve
Que, um dia,
deixarei
Também, até de
respirar,
Para não te
acordar.
ó medusa de fogo,
Dormida sob a
neve!
A RUA
Bem sei que,
muitas vezes,
O único remédio
É adiar tudo. É
adiar a sede, a fome, a viagem,
A dívida, o
divertimento,
O pedido de
emprego, ou a própria alegria.
A esperança é
também uma forma
De continuo
adiamento.
Sei que é preciso
prestigiar a esperança,
Numa sala de
espera.
Mas sei também que
espera significa luta e não, apenas,
Esperança sentada.
Não abdicação
diante da vida.
A esperança
Nunca é a forma
burguesa, sentada e tranquila da espera.
Nunca é figura de
mulher
Do quadro antigo.
Sentada, dando
milho aos pombos.
GEOMETRIA CIVIL
Eu tenho um corpo
feito de barro vil
mas cheio de
deveres
e obediência
civil.
Sou um transeunte
em dia com o
código
da ética pedestre.
Não raro invento
dívidas
só pelo prazer
de saldá-las,
lesto,
antes do protesto.
Para depois entrar
entre os festões
vermelhos,
num salão de baile
cumprimentando-me
cordialmente
Exato no meu fato
azul, sob medida;
exato na cesura
de um verso
alexandrino;
exato se combino
um encontro de
dois,
pois chego à hora
certa,
nem antes nem
depois.
Exato — se procuro
te beijar no
escuro
não erro a tua
boca
entre os pontos
cardiais
de minha geografia
amorosa;
enfim, sou tão
exato
como é o número
do meu sapato.
Sofro, também, de
ordem.
Da irrecorrível
ordem
que aceitei por
herança.
Em vão as vespas
da revolução me
mordem.
Minha geometria
é uma coisa viva
feita de carne e
osso.
Um ângulo quebrado
logo escorre
sangue.
Todo o meu futuro
é um retângulo
obscuro...
Estes meus dois
braços
são linhas
paralelas
que se cruzarão em
viagem
para algum
infinito.
A lua, esfera
fria,
me ensinou, em
garoto,
a riscar bolas de
ouro,
sem compasso,
na aula de
geometria.
Ah, eu sofro de
ordem,
mas em vão;
pois não ganhei,
com isso,
nenhum laurel,
comenda,
ou condecoração.
E nem pertenço à
Ordem
do Cruzeiro.
Pertenço — e é só
— à ordem
em que estão
colocadas,
no céu, as
estrelas.
E à outra ordem —
a em que, no
futuro,
estarão colocadas,
em redor do meu
corpo,
quatro velas
acesas...
QUADRO ANTIGO
Por certo que amo
as coisas, os objetos,
que me acompanham,
neste fim de viagem.
São elas, coisas,
minhas cúmplices, à hora
em que, ó lua, me
contas teus segredos.
São eles, os
objetos, os meus símbolos,
para uma última
fotomontagem.
Mas, como são —
coisas e objetos — tristes,
por já não serem
mais os meus brinquedos.
Em vão o calor
físico os dilata.
Em vão meu
pensamento lhes dilui
o acre contorno,
em proustiana sondagem.
Só, contra o sol,
a sombra deles flui!
no chão, na mesa,
ou — colorida imagem —
no cristal onde
nunca sou quem fui.
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