A PRESENÇA
Havia uma mulher cujo nome não se sabe, porém — não neste conto, mas na vida que levou — foi chamada simplesmente Chanda. Dela se pode repetir o que já foi dito de muitas mulheres em relação à paisagem: parecia sempre estar passando por ela pela primeira vez. E ali naquela casa, que em verdade era muito ordinária, e embora não houvesse memória de uma só noite sem Chanda, ela parecia tão nova e tão estranha, cada dia, como se a tivessem admitido na véspera. E novo era também cada dia o seu gesto de alarme. De súbito se enrijecia, parecendo mais alta e mais ereta, prestes a partir como um alegre veleiro. Em lugar de o fazer, apertava nas mãos delgadas o guardanapo. Era bastante seguir-lhe o olhar, e no ponto extremo desse olhar, detendo-o e enfeixando-o estaria o homem; fato certo e inflexível como o resultado de uma soma de dois. Era grande e gordo como um gato bem alimentado. Poder-se-ia imaginá-lo de patas cruzadas e eriçados bigodes, diante de um peixinho com escamas de prata. A sala enevoada pelo fumo dos cigarros, indistinta e oscilante, aparecia torva e baça como de taverna. O peixinho se fragmentava e se tornava apenas uma xícara branca. De olhos de gato permanecia o fulgor dos olhos miúdos e empapuçados do homem. Chanda se arrancava com esforço da hipnose. Então, se pedíssemos creme de queijo, ela traria café com leite. Ficava depois imóvel, alta e magra como a sua própria sombra, olhando desamparada para os lados, até que puxada por invisíveis cordões, ia em passos mecânicos para ele. Impossível saber se era amor, cólera ou medo o que a arrastava, mas nos seus olhos se lia angústia. Nada acontecia, afinal. Ouvia-se a voz dela, velada e doce, na familiar pergunta:
— Mais alguma coisa, meu senhor?
O homem saía e com ele o mistério. Teria ela
suspirado de alívio, ou isto também fazia parte da ilusão? O caso é que
poderíamos então pedir, sem susto, creme de queijo e o fazíamos com a alegre
certeza de que seríamos corretamente servidos.
De qualquer maneira, estávamos bem certos de
que havia alguma coisa. Tínhamos consciência da repentina densidade do ar,
sempre que ele entrava e víamos como Chanda se endireitava e como o seu olhar
fixo se prendia ao canto da sala. Não nos atrevíamos a lhe perguntar nada, pois
assim de olhos mortos, ela parecia curiosa- mente ausente.
E ele. Como saber o que quer que fosse sobre ele?
Bem. Um de nós tentou se aproximar um dia, não sem procurar se explicar, com
certa timidez
— Perdão, cavalheiro, não há outro lugar...
E depois em falso tom de à vontade.
— Isto está animado hoje...
Mas imediatamente após dizer isso, conteve o
gesto de recostar-se e permaneceu rígido e expectante pois pressentiu que
alguma coisa estava errada. O homem não topou a conversa, como se poderia
esperar. Jogou o guardanapo sobre a mesa, afastou ruidosamente a cadeira e
resmungou numa vozinha ciciante, pequena demais para o seu grande corpo e como
que solta dentro dele.
— Já ia sair..
Depois desse fracasso, nada mais foi tentado.
Realmente nada vimos de precioso, até que a
cena atingiu uma espécie de silencioso clímax. Vimos, sim, nitidamente, quando ele
se pôs em pé, e agarrou com força o braço de Chanda, num repentino furor sem
palavras. Depois murmurou, ou falou em tom normal como se poderia saber? — e
era estranho vê-lo mover os lábios como num filme mudo. Pareceu que Chanda ia
gritar e houve quem se erguesse para socorrê-la. Nos lábios entreabertos estava
o grito sem som, e olhava como se implorasse, ou não — era antes como se
procurasse apoio, como se precisasse de se segurar para resistir. Pensamos, com
a maligna satisfação que advém de ter acertado uma profecia ruim, que o quer
que fosse de dramático estava afinal se realizando, mas no minuto seguinte
Chanda curvou gentilmente a cabeça, concordando e até sorriu. Podia ter sido ou
não um sorriso desamparado, como desamparado era sempre o olhar. Retirou o
avental e saiu deslizando diante dele, parecia que sem ruído, sombra, apenas,
sombra. Nem ficamos certos de a ter visto desesperar. Nunca se poderia ter
certeza de coisa alguma, naquela sala, com fumaça e barulho demais e iluminação
de menos.
Muito tempo depois, quando já tinha sido esquecida,
sentimos novamente a presença. Sabíamos, antes de o ver, que ele estava ali,
como antes. Era a intensidade do olhar incidindo em nossa nuca, ponto imantado,
ou qualquer coisa assim, o que nunca se conseguiu explicar bem. Foi bastante o
voltar-se, para se ver o homem, um pouco menos gordo e com a expressão
concentrada a tal ponto que parecia estúpido. E era tão estranho estar ali, que
o olhamos quase esperando vê-lo dissolver-se e subir ao teto em grossos rolos
de fumaça. Todos se puseram a perscrutar as entradas, impacientes, como se
Chanda devesse surgir por uma delas, de aventaizinho branco e guardanapo nas
mãos.
Naquela noite, soubemos que ela estava
morrendo.
A pergunta foi eloquente demais em nossos
olhares, ou então o homem necessitava de desabafo. Primeiro falou sem se mover
e sem nos olhar de frente, num tom que era meia afirmativa e meia pergunta:
— Esperam que ela venha?
Antes que dominássemos o sobressalto,
inclinou-se pesadamente e disse:
— Está morrendo.
Olhou para as próprias mãos, abertas a meio,
crispadas, balofas como de afogado e muitos pensaram que ele a tivesse
assassinado, assim, cerrando os dedos em torno do frágil pescoço.
— Poderíamos vê-la? — perguntamos, suspensos
da resposta.
— Sim, sim. Decerto.
Ele oscilou pesadamente, para a direita e
para a esquerda, mas o seu hálito quente cheirava apenas a fumo.
Pensávamos já em Chanda, agonizante, numa enxerga,
em quarto miserável de algum impressionante bairro suspeito, e o que nos movia
a vê-la era uma curiosidade malsã e não piedade ou estima. À saída o vento
passou, bramindo heresias. O homem pareceu, de repente, acordar, e perguntou
espantado.
Por que vão comigo? Que querem? Que têm vocês
com a minha Chanda?
Entreolhamo-nos estupefatos.
— Suicidou-se — soprou ele. — E a palavra veio
gelada e solta, de tal modo que no primeiro momento não a compreendemos.
Afastou-se quase correndo. Quando recuperamos
o equilíbrio, e pensamos em segui-lo, ele tinha virado sabe Deus que esquina,
naquele emaranhado de ruas estreitas. Vaga vergonha nos mordeu a alma e o frio
vento nos mordia as faces.
Dias depois, notamos que o homem rondava o
bar à noite e seu grande vulto maciço nos dava calafrios. Quando nos via,
escapava ràpidamente, num trote pesado. Mas voltava sempre, fascinado, o que se
percebia pelos seus modos, assim com esse determinismo com que se volta para o
norte um ponteiro de bússola. E então discorríamos animadamente sobre a atração
que leva os culpados aos locais onde viveu ou morreu a sua vítima.
Encontrávamos abismos nos seus olhos empapuçados, entrevistos em rápidos
vislumbres, de passagem.
Gostávamos, nessa época, de dar nomes
românticos a desconhecidos. O garção, por exemplo, que não era sombrio, porém
empertigado como um colarinho alto, passou a se chamar Ivan o Terrível. Vinha
para nós, como se não enxergasse o caminho, carregando o mundo na bandeja, sem
se dignar olhar para os lados. Tinha essa marcha indiferente, qualquer coisa de
implacável. Mesmo assim todo teso, teve que ouvir a nossa absurda pergunta.
— Por que que não prendem esse homem?
Ele relanceou o olhar para fora, pela janela
semi- aberta e viu lá fora recortado contra a neblina, dentro da ilha de luz
que circundava um poste, o vulto espesso do homem gordo. Suas sobrancelhas
deram um pulo para cima e uma delas desceu sozinha, devagar, contrariada.
— Quem?! — e em tom diferente — Por quê?
Oh! Chanda... essas coisas... Por que se
suicidou?
O garção não estava preparado para essa
pergunta direta. Curvou-se e limpou a mesa como se precisasse dela para
permanecer em pé.
— Não se pode saber — respondeu vagamente —
Por causa de uns e de outros.
— Por causa dele também?
— Aquele tem idade para ser pai dela —
completou um outro.
As sobrancelhas de Ivan o Terrível se
projetaram para cima, novamente.
— Mas se ele é o pai dela...
Disse e saiu mais empertigado do que nunca.
Alguém tamborilou com as pontas dos dedos na mesa e murmurou:
— Como foi que sonhamos tanta coisa?
Esquisito. Seria o chope o responsável pela
nossa sensação de termos diminuído? Sentíamo-nos como deve se sentir uma formiga
ao pé de uma bota enlameada, ou subindo penosamente uma parede branca, lisa e
alta.
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