MISSA DE
SÉTIMO DIA
O senhor gordo e apoplético subiu desesperadamente a escada ao mesmo tempo que enxugava o suor do rosto, com um lenço de cores. Mas, ao penetrar na sacristia, vendo as pessoas silenciosas e graves de pé em torno à pequena mesa, assumiu uma atitude lenta de compunção e respeito. E avançou. Alguém ao lado dizia ao ouvido de outro que a missa ainda não começara, e isto acalmou um pouco o cavalheiro apressado. Agora só o incomodava o fato de estar de brim. Afligiu-o mesmo o contraste entre o seu terno e os trajes sisudos da gente toda em volta: senhoras vestidas de escuro, homens com roupas sóbrias, gravatas funerárias e respeitosos chapéus tia mão. Todos, numa delicadeza compassada e cuidadosa, procuravam a pena e deixavam seus nomes nas folhas de papel sobre a mesa. Depois, numa amabilidade q’’ só o medo da morte e de Deus comunica à humanidade, molhavam na tinta a caneta e cediam-na ao seguinte.
Só o gordo — já menos apoplético da carreira
— recusou a pena que lhe passavam. Enfiou os dedos por dentro do paletó, sacou
uma caneta-tinteiro, desaparafusou-a e assinou. E com passo medido afastou-se
do grupo compacto. Foi quando rodava a tampa da caneta, para fechá-la, que deu
com os olhos no rapaz magro, que o contemplava desde a entrada. Era um moço
triste e cinzento, que parecia estar sempre na atitude inerte das aves
pernaltas. O recém-chegado não teve efusões, pois o momento não comportava.
Falou baixo, discreto, e com composta seriedade
— Carvalhinho amigo...
Apertaram-se as mãos, num silêncio. O gordo
achou que devia justificar:
— Estou sabendo agora, meu caro... Que
desgraça, hein? Sacudiu a enorme cabeça calva, num resumo da inutilidade da
vida, como querendo exprimir que tudo era uma longa desesperança. O outro,
enquanto isso, tinha um ar parado, repleto de dores mortas e resignadas.
— Pois é, Pacheco.
Mas Pacheco, numa espécie de incredulidade, e
com voz de quem ainda acha possível tomar providências diante do irremediável —
Pacheco queria saber
— Mas, Santo Deus, como foi isso? De que terá
morrido esse pobre Adalberto?
Carvalhinho já estava na fase em que o golpe
sofrido exige poucas explicações. Apontou, com o dedo magro e sarrento, o
coração. Depois, em palavras breves e abatidas, contou: de manhã cedo, depois
do café, Adalberto, ainda de pijama, abriu o jornal. Comentou com dona Rosa
dois ou três fatos, vagamente. Reclamou a ausência de Carlinhos e Juracy, os
filhos, que ainda dormiam. A mulher andou até a escada, gritou por eles, e,
quando voltou, lá estava o marido, debruçado na mesa, o jornal desfolhado no
chão. Sem um ai.
— Ora veja!
Houve uma pausa meditativa. Depois Pacheco
concluiu a moralidade da história:
— A vida é isso mesmo, seu Carvalho!
Ambos suspiraram.
A voz do órgão soou dentro da nave; pelas
portas laterais os grupos avançaram, meio dispersos. O cavalheiro gordo tomou o
outro pelo braço, e, enquanto seguiam, foi narrando também:
— Pois só soube hoje, imagine. Estava já no
escritório quando a patroa telefonou: “Sabe quem morreu? O Adalberto!“ Calcule
você o choque! Um bom amigo, uma alma de ouro...
— É verdade...
— Nem tive tempo de botar outra roupa. Vim
assim mesmo, de brim.
Já estavam no interior da igreja. Pacheco
espiou tini instante o sacerdote, as cabeças paradas à sua frente, e reclamou:
— Mas vocês deviam ter-me avisado! Nem fui ao
enterro, nem nada... Eu, que era da casa!
— Não houve tempo. Você sabe como são estas ocasiões.
Desespero, aflição, providências a tomar..
— Lá isso é verdade...
No fundo do altar crepitavam levemente os
círios bruxuleantes. No meio deles, entre rosas dolorosamente iluminadas, a
figura de um Cristo pendia dos ombros cabeça torturada. Fulgiam chispas breves
das vestes do sacerdote. E, de quando em quando, de alguma dama contrita entre
os bancos, ou de algum dos homens de pé, partia um pigarro no meio do silêncio.
Na sombra dos outros altares jaziam imagens coloridas e serenas. Vagava um ar
póstumo por dentro do templo, e as notas redondas tio órgão esmagavam as almas,
os pensamentos, as orações. Do alto da nave descia esse frio peculiar e
incensado que têm as igrejas nas cerimônias tristes.
Uma recordação recurva e abafada tomou conta
de Pacheco. Sussurrou para o outro:
— Pobre Adalberto! Um amigo, um grande
amigo... É assim mesmo: os bons é que vão. Sempre lutando, sempre acreditando
que um dia tudo melhoraria... Depois, aquele gênio, você sabe. Uma pérola. Mas
a mulher não compreendia ele. Botava ele de lado, fazia de conta que ele nem
existia...
A essa lembrança, espiou para as primeiras
filas. Dona Rosa lá estava, e Carlinhos, e Juracy, todos de negro, as cabeças
inclinadas. Mais atrás, outros parentes, num grupo cerrado e escuro. Vinham em
seguida os amigos, que espiavam por cima, numa atenção longínqua. Um cavalheiro
alto, de pince-nez, balançava-se nas
pernas, com as mãos para trás; perto, uma senhora grande e loura não sabia se
daria ouvidos ao padre ou ao filhinho, que se impacientava. De vez em quando
intimava entre- dentes: “Fica quieto! Fica quieto!“ E ameaçava beliscões.
Depois circunvagava o olhar num pedido de indulgência aos incomodados. Do outro
lado, dois senhores igualmente paquidermais e míopes falavam à meia voz:
— “Esse ano o mercado está infame para nós!“
— “Home, eu até que fiz uns negociozinhos de laranja — “É, mas os plantadores...”
Pacheco, de repente, como se o assaltasse uma
idéia, soprou para o amigo:
— Ó Carvalho: a Lenita é que deve estar
triste hein?
O outro estava longe, remoto:
— Hein?
— A Lenita...
— É mesmo. Aquela é que era a verdadeira
mulher do Adalberto... Que carinho, que amparo moral para ele...
— Claro. Tanto que o Adalberto fazia todas as
vontades dela. Dava-lhe tudo. Até casa, não é? Muitas vezes eu ia lá com ele.
— Também fui.
— Chamava “o meu oásis”. E era mesmo. Quando
Dona Rosa fazia uma das suas, ou os filhos, lá corria ele para o oásis.
Dizia-me: “É aqui que eu descanso de todas as decepções. Quando não sou
entendido em casa, quando não encontro lá o entusiasmo, o estímulo, o amor, é
aqui que venho viver de novo o que o lar não me deu..
Aconselhava-me sempre: “Não se case,
Carvalhinho...“ Ou melhor: “não se case sem imaginar antes o abandono em que te
deixará a companhia de tua mulher...“ Estive duas vezes com ele em casa de
Lenita. Era outro homem, lá. Ria, pilheriava, contava anedotas...
— Metia-se naquele pijama riscadinho e
explicava:
“É aqui que eu uso a farda de prisioneiro que
devia botar lá em casa..
E, após uma fermata:
— Escuta: dona Rosa como ficou?
— De dinheiro? Creio que bem. O Adalberto
tinha posses. Uns terrenos. Parece-me até que apólices. Por esse lado até deve
estar contente, que Deus me perdoe.
— Veja só, hein? Está agora livre e rica. E
mocelona. É bem capaz de casar de novo...
E, num riso quase invisível:
— Carvalho, por que você não conquista a
viúva? Negocião!
—Credo!
A campainha do sacristão chamou ao silêncio
as palestras segredadas que começavam a despontar. Houve um ruído de pés, de
saias que se ajoelhavam, e o órgão vibrou com unção. Carvalho puxou o lenço,
estirou-o no ladrilho, dobrou o joelho por cima. Pacheco permaneceu de pé, mas
havia uma lágrima saudosa que lhe brilhava no olho. E quando o amigo se
levantou, espanando a calça, bateu-lhe com o cotovelo e indicou com o queixo
uma direção, à direita:
— Olha ali. Não é a Lenha?
Lenita, ali? Seria crível? O outro espiou.
“Onde?“ Era a Lenita. Aparecer na missa do amante, entre a família do morto, os
amigos honestos... não parecia correto a Carvalhinho. Lenita tinha os braços apoiados
no encosto do banco, a testa alva e lisa dobrada para a frente, o corpo como
que desabado numa das almofadas do chão. Vestia de negro, um renard
enrolava-lhe os ombros. De vez em quando um soluço a sacudia, mas rápido e
quase imperceptível. Pacheco viu-lhe os olhos inchados e magoados. O rosário
corria-lhe entre os dedos, e toda a sua fisionomia indicava um longo desespero,
um longo cansaço, uma longa angústia. Que fazer dali em diante? Continuaria a
vida? Como faria para reerguer tudo do nada de afeto em que tinha ficado? Os
dois amigos contemplaram-na um minuto. Carvalho considerou a ocasião, a
santidade da hora, a impropriedade da presença, e perguntou:
— Você não acha que ela não devia ter vindo?
Não fica bem.
Mas terminava a cerimônia. Avançavam todos,
gravemente para perto do altar, onde gemia a família do morto. Chegavam junto
de dona Rosa, dos filhos. Uns só apertavam as mãos, mudamente. Os mais íntimos
e os mais sentimentais deixavam-se estar por uns momentos com o peito apertado
contra o do parente. Batiam-lhe nas costas: “Ah! Fulano!” Choravam. Ou então
não terminavam a frase: “Meus pés Carvalhinho tomou o braço de Pacheco, que se
esquivou:
— Não, eu não vou. Detesto pêsames. Fico por
aqui te esperando.
O outro seguiu. Lenita permanecia rezando,
enquanto os outros passavam perto para cumprimentar a família. Passavam. Depois
levantou-se, e sua magreza lânguida e acabrunhada despertou atenções. Caminhou
entre os bancos, para sair. Pacheco então transportou para si mesmo a dor da
mulher. Voltou-se, quis saudá-la. Ela, porém, conteve-o com o olhar. Um olhar
quase que agradecido por ele ter-se lembrado; mas também um olhar que parecia
desconhecê-lo, ignorá-lo, apagá-lo da vida diante das conveniências, diante das
outras pessoas, diante dela mesma.
Passou. Seu vulto desapareceu na porta.
— Vamos?
Era o Carvalhinho. Andaram em silêncio alguns
passos. Desceram a escada. Pacheco acendeu um cigarro. O outro declarou:
— Essa Lenita é um pedaço de mulher...
A frase ficou no ar. Outros pensamentos
deformaram-na, murcharam-na. Pacheco, como que apagando da memória tudo que
ficara para trás, perguntou:
— Que tal um cafezinho, Carvalho?
— Vamos lá.
---
Contos Paulistas - Poeteiro Editor Digital. São paulo, 2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário