O COMPRADOR
DE FAZENDAS
Pior fazenda que a “Espiga”, nenhuma. Já
arruinara três donos, o que fazia dizer aos praguentos: Espiga é o que aquilo
é!
O detentor último, um David Moreira de Souza,
arrematara-a em praça, convicto de negócio da China. Mas já lá andava, também
ele, escalavrado de dívidas, coçando a cabeça, num desânimo.
Os cafezais em vara, batidos de pedra ou
esturrados de geada ano sim ano não, nunca deram de si colheita de entupir
tulha. Os pastos ensapezados, enguanxumados, ensamambaiados nos topes, eram
acampamentos de cupins com entremeios de macegas mortiças, formigantes de
carrapatos. Boi entrado ali punha-se logo de costelas à mostra, encaroçado de
bernes, triste e dolorido de meter dó.
As capoeiras substitutas das matas nativas
revelavam, pela indiscrição das tabocas, a mais safada das terras secas. Em tal
solo a mandioca bracejava a medo varetinhas nodosas; a cana caiana assumia
aspecto de caninha, e esta virava uma taquariça magrela, das que passam
incólumes por entre os cilindros moedores.
Piolhavam os cavalos. Os porcos escapos à
peste encruavam na magrém faraônica das vacas egípcias.
Por todos os cantos imperava soberano o ferrão
das saúvas, dia e noite entregues à tosa dos capins, para que em outubro se
toldasse o céu de nuvens de içás, em saracoteios amorosos com enamorados
savitus.
Caminhos por fazer, cercas no chão, casas de
agregados engoteiradas, combalidas de cumieira, prenunciando feias taperas. Até
na moradia senhorial insinuava-se a breca, aluindo panos de reboco, carcomendo
assoalhos. Vidraças sem vidro, mobília capengante, paredes lagarteadas...
Intacto, que é que havia lá?
Dentro dessa esborcinada moldura, o fazendeiro,
avelhuscado por força de sucessivas decepções e, a mais, roído pelo cancro dos
juros, sem esperança e sem concerto, coçava cem vezes ao dia a coroa da cabeça
grisalha.
Sua mulher, a pobre dona Isaura, perdido o
viço do outono, agrumava no rosto quanta sarda e pé-de-galinha inventam os
anos, de mãos dadas à trabalhosa vida.
Zico, o filho mais velho, saíra-se um pulha,
amigo de erguer-se às dez, ensebar a gaforinha até às onze e consumir o resto
do dia em namoricos mal-azarados.
Afora este malandro, tinham a Zilda, então
nos dezessete, menina galante, porém sentimental mais do que manda a razão e
pede o sossego dos pais. Era um ler Escrich, a rapariga, e um cismar amores de
Espanha...
Em tal situação só havia uma aberta: vender a
fazenda maldita para respirar a salvo de credores. Coisa difícil, entretanto,
em quadra de café a cinco mil réis, pôr unhas num tolo das dimensões
requeridas. Iludidos por núncios manhosos, alguns pretendentes já haviam
abicado à Espiga, mas franziam o nariz, indo-se arrenegar da pernada, sem abrir
oferta.
— De graça é caro! — cochichavam de si para
consigo.
O redemoinho capilar do Moreira, ao cabo de
coçadelas, sugeriu-lhe um engenhoso plano mistificatório: entreverar de caetés,
cambarás, unhas-de-vaca e outros padrões de terra boa, transplantados das
vizinhanças, a fímbria das capoeiras e uma ou outra entrada acessível aos
visitantes. Fê-lo, o maluco, e mais: meteu em certa grota um pau d’alho trazido
da terra roxa, e adubou os cafeeiros margeantes ao caminho, no suficiente para
encobrir a mazela do resto. Onde um raio de sol denunciava com mais viveza um
vício da terra, ali o alucinado velho botava a peneirinha...
Um dia recebeu carta de seu agente de
negócios, anunciando novo pretendente: “Você tempere o homem — aconselhava o pirata
— e saiba manobrar os padrões, que este cai. Chama-se Pedro Trancoso, é muito
rico, muito moço, muito prosa, e quer fazenda de recreio. Depende tudo de você
espigá-lo com arte de barganhista ladino”.
Preparou-se o Moreira para a empresa.
Advertiu primeiro aos agregados para que estivessem a postos, afiadíssimos de
língua. Industriados pelo patrão, estes homens respondiam com manha consumada
às perguntas dos visitantes, de jeito a transmutar em maravilhas as ruindades
locais. Como lhes é suspeita a informação dos proprietários, costumam os
pretendentes interrogar à socapa os encontradiços. Ali, se isso acontecia — e
acontecia sempre, porque era o Moreira em pessoa o maquinista do acaso — havia
diálogos desta ordem:
— Tem geada por aqui?
— Coisinha, e isso mesmo só em ano brabo.
— O feijão dá bem?
— Nossa Senhora! Inda este ano plantei cinco
quartas e malhei cinquenta alqueires. E que feijão!
— Berneia o gado?
— Qual o quê! Lá um ou outro carocinho, de
vez em quando. Para criar, não existe terra melhor. Nem erva nem feijão bravo.
O patrão é porque não tem força. Tivesse ele os meios, e isto virava um
fazendão.
Avisados os espoletas, debateram-se à noite
os preparativos da hospedagem, alegres todos com o reviçar das esperanças
emurchecidas.
— Estou com palpite que desta feita a coisa
vai! — disse o filho maroto. E declarou necessitar, à sua parte, de três contos
de réis para estabelecer-se.
— Estabelecer-se em quê? — perguntou admirado
o pai.
— Com armazém de secos e molhados na Volta
Redonda.
— Na Volta Redonda?.. Já me estava espantando
de uma idéia boa nessa cabeça de vento. Para vender fiado à gente da Tudinha,
não é?
O rapaz, se não corou, calou-se. Tinha razões
para isso. Já a mulher queria casa na cidade. De há muito trazia d’olho uma de
porta e janela, em certa rua humilde, casa baratinha, de arranjados. Zilda
queria um piano, mais caixões e caixões de Escrich.
Dormiram felizes essa noite, e no dia
seguinte mandaram cedo à vila em busca de gulodices de hospedagem — manteiga,
um queijo, biscoitos. Na manteiga houve debate:
— Não vale a pena — reguingou a mulher. —
Sempre são seis mil réis. Antes se comprasse com esse dinheiro a peça de
algodãozinho que tanta falta me faz.
— É preciso, filha! Às vezes uma coisa de
nada engambela um homem e facilita um negócio. Manteiga é graxa, e a graxa
engraxa!
Venceu a manteiga.
Enquanto não vinham os ingredientes, meteu
dona Isaura unhas à casa, varrendo, espanando e arrumando o quarto dos
hóspedes; matou o menos magro dos frangos e uma leitoa manquitola; temperou a massa
do pastel de palmito; estava a folheá-la quando:
— Lá vem ele! — gritou Moreira da janela,
onde se postara desde cedo, muito nervoso, a devassar a estrada por um velho
binóculo; e sem deixar o posto de observação, foi transmitindo à ocupadíssima
esposa os pormenores divisados. — É moço... Bem trajado... Chapéu panamá...
Parece o Chico Canhambora...
Chegou afinal o homem. Apeou-se. Deu cartão:
Pedro Trancoso de Carvalhais Fagundes. Bem apessoado. Ares de muito dinheiro.
Mocetão e bem falante, mais que quantos até ali aparecidos. Contou logo mil
coisas, com o desembaraço de quem no mundo está de pijama em sua casa — a
viagem, os incidentes, um mico que vira pendurado num galho de embaúva.
Entrados que foram para a saleta de espera,
Zico, incontinenti, grudou-se de ouvido ao buraco da fechadura, a cochichar
para as mulheres ocupadas na arrumação da mesa o que ia pilhando à conversa.
Súbito, esganiçou para a irmã, numa careta sugestiva:
— É solteiro, Zilda!
A menina largou disfarçadamente os talheres e
sumiu-se. Meia hora depois voltava, trazendo o melhor vestido, e no rosto duas
redondinhas rosas de carmim. Quem entrasse a essa hora no oratório da fazenda
notaria, nas vermelhas rosas de papel de seda que enfeitavam o Santo Antonio, a
ausência de várias pétalas, e aos pés da imagem uma velinha acesa, pois na roça
o “rouge” e o casamento saem do mesmo oratório.
Trancoso dissertava sobre variados temas
agrícolas:
— O canastrão? Pff! Raça tardia, meu caro
senhor, muito agreste. Eu sou pelo Poland Chine. Também não é mau o Large
Black. Mas o Poland! Que preciosidade! Que raça!
Moreira, chucro na matéria, só conhecedor das
pelhanças famintas, sem nome nem raça, que lhe grunhiam nos pastos, abria
insensivelmente a boca pasmada.
— Como em matéria de pecuária bovina — continuava
Trancoso — tenho para mim que, de Barreto a Prado, andam todos erradíssimos.
Pois não! E-rra-dí-ssi-mos! Nem seleção, nem cruzamento. Quero a adoção
i-me-di-a-ta das mais finas raças, o Polled Angus, o Red Lincoln. Não temos
pasto? Façamo-lo. Plantemos alfafa. Fenemos. Ensilemos. O Assis Brasil
confessou-me uma vez...
O Assis Brasil! Aquele homem confessava os
mais altos paredros da agricultura! Era íntimo de todos eles — o Antonio Prado,
o Luís Pereira Barreto, o Eduardo Cotrim, homens de muita autoridade em
assuntos de pecuária. E de ministros!
— Eu já aleguei isso ao José Bezerra...
Nunca se honrara a fazenda com a presença de
cavalheiro mais distinto, assim bem relacionado e tão viajado. Falava da
Argentina e de Chicago como quem veio ontem de lá. Maravilhoso!
A boca do Moreira abria, abria, e acusava o
grau máximo da abertura permitida a ângulos maxilares, quando uma voz feminina
anunciou o almoço.
Apresentações.
Mereceu Zilda louvores nunca sonhados, que a
puseram de coração aos pinotes. Também os tiveram a galinha ensopada, o tutu
com torresmos, o pastel e até a água do pote.
— Na cidade, senhor Moreira, uma água assim,
pura, cristalina, absolutamente potável, vale o melhor dos vinhos. Felizes os
que podem bebê-la!
A família entreolhou-se; nunca imaginaram
possuir em casa semelhante preciosidade, e cada um insensivelmente sorveu o seu
golezinho, como se naquele instante travassem conhecimento com o precioso
néctar. Zico chegou a estalar a língua...
Quem não cabia em si de gozo era dona Isaura.
Os elogios à culinária puseram-na rendida. Por metade daquilo já se daria por
bem paga da trabalheira.
— Aprenda, Zico — cochichava ao filho — o que
é educação fina!
Após o café brindado com um “delicioso!”,
convidou Moreira o hóspede para um giro a cavalo.
— Impossível, meu caro, não monto em seguida
às refeições; dá-me cefalalgia — Zilda corou. Zilda corava sempre que não
entendia uma palavra. — À tarde sairemos, não tenho pressa. Prefiro agora um
passeiozinho pedestre pelo pomar, a bem do quilo.
Enquanto os dois homens se dirigiram para lá
em pausados passos, Zilda e Zico correram ao dicionário.
— Não é com S — disse o rapaz.
— Veja com C — alvitrou a menina.
Com algum trabalho encontraram a palavra.
— “Dor de cabeça!” Ora! Uma coisa tão
simples...
À tarde, no giro a cavalo, Trancoso admirou e
louvou tudo quanto ia vendo, com grande espanto do fazendeiro que, pela
primeira vez, ouvia gabos às coisas suas. Os pretendentes em geral malsinam de
tudo, com olhos abertos só para defeitos; diante de uma barroca, abrem-se em
exclamações quanto ao perigo das terras frouxas; acham más e poucas as águas;
se enxergam um boi, não despegam a vista dos bernes.
Trancoso, não: gabava! E quando Moreira, nos
trechos mistificados, com dedo trêmulo assinalou os padrões, o moço abriu a
boca:
— Caquera? Mas isto é fantástico!
Em face do pau d’alho, culminou-lhe o
assombro.
— É maravilhoso o que vejo! Nunca supus
encontrar nesta zona vestígios de semelhante árvore! — disse, metendo na
carteira uma folha como lembrança.
Em casa, abriu-se com a velha:
— Pois, minha senhora, a qualidade destas
terras excedeu de muito à minha expectativa. Até pau d’alho! Isto é
positivamente famoso!...
Dona Isaura baixou os olhos.
A cena passava-se na varanda. Era noite.
Noite trilada de grilos, coaxada de sapos, com muitas estrelas no céu e muita
paz na terra. Refestelado numa cadeira preguiçosa, o hóspede transfez o sopor
da digestão em quebreira poética.
— Este cricri de grilos, como é encantador!
Eu adoro as noites estreladas, o bucólico viver campesino, tão sadio e feliz...
— Mas é muito triste!... — aventurou Zilda.
— Acha? Gosta mais do canto estridente da
cigarra, modulando cavatinas em plena luz? — disse ele, amelaçando a voz. — É
que no seu coraçãozinho há qualquer nuvem a sombreá-lo...
Vendo Moreira assim atiçado o
sentimentalismo, e desta feita passível de consequências matrimoniais, houve
por bem dar uma pancada na testa e berrar:
— Oh, diabo! Não é que eu ia me esquecendo
do... — Não disse do quê, nem era preciso. Saiu precipitadamente, deixando-os
sós.
Continuou o diálogo, mais mel e rosas.
— O senhor é um poeta! — exclamou Zilda a um
regorjeio dos mais sucados.
— Quem o não é, debaixo das estrelas do céu,
ao lado de uma estrela da terra?
— Pobre de mim! — suspirou a menina,
palpitante.
Também do peito de Trancoso subiu um suspiro.
Seus olhos alçaram-se a uma nuvem que fazia no céu as vezes da Via Láctea, e
sua boca murmurou em solilóquio um rabo d’arraia, desses que derrubam meninas:
— O amor!... A Via Láctea da vida!... O aroma
das rosas, a gaze da aurora! Amar, ouvir estrelas... Amai, pois só quem ama
entende o que elas dizem.
Era zurrapa de contrabando; não obstante, ao
paladar inexperto da menina, soube a fino moscatel. Zilda sentiu subir à cabeça
um vapor. Quis retribuir. Deu busca aos ramalhetes retóricos da memória, em
procura da flor mais bela. Só achou um bogari humílimo:
— Lindo pensamento para um cartão postal!
Ficaram no bogari. O café com bolinhos de
frigideira veio interromper o idílio nascente.
Que noite aquela! Dir-se-ia que o anjo da
bonança distendera suas asas de ouro por sobre a casa triste. Via Zilda
realizar-se todo o Escrich deglutido. Dona Isaura gozava da possibilidade de
casá-la rica. Moreira sonhava quitações de dívidas, com sobras fartas a
tilintar-lhe no bolso. Imaginariamente transfeito em comerciante, Zico ficou a
noite inteira em sonhos com a gente da Tudinha, que, cativa de tanta gentileza,
lhe concedia afinal a ambicionada mão da pequena.
Só Trancoso dormiu o sono das pedras, sem
sonhos nem pesadelos. Que bom é ser rico!
No dia imediato visitou o resto da fazenda,
cafezais e pastos, examinou criação e benfeitorias. E como o gentil mancebo
continuasse no enlevo, Moreira, deliberado na véspera a pedir quarenta contos
pela Espiga, julgou de bom aviso elevar o preço. Após a cena do pau d’alho,
suspendeu-o mentalmente para quarenta e cinco; findo o exame do gado, já estava
em sessenta. E quando foi abordada a magna questão, o velho declarou
corajosamente, na voz firme de um alea
jacta est:
— Sessenta e cinco — e esperou de pé atrás a
ventania.
Trancoso, porém, achou razoável o preço.
— Pois não é caro — disse. Está um preço bem
mais razoável do que imaginei.
O velho mordeu os lábios e tentou emendar a
mão:
— Sessenta e cinco, mas... o gado fora!
— É justo — respondeu Trancoso.
— E... e fora também os porcos!...
— Perfeitamente.
—... e a mobília!
— É natural.
O fazendeiro engasgou. Não tinha mais o que
excluir, e confessou-se de si para consigo que era uma cavalgadura. Por que não
pedira logo oitenta?
Informada do caso, a mulher chamou-o de
“pax-vobis”.
— Mas, criatura, por quarenta já era um
negocião! — justificou-se o velho.
— Por oitenta seria o dobro. Melhor. Não se
defenda. Eu nunca vi Moreira que não fosse palerma e sarambé. É do sangue. Você
não tem culpa.
Amuaram um bocado. Mas a ânsia de arquitetar
castelos com a imprevista dinheirama varreu para longe a nuvem. Zico aproveitou
a aura para insistir nos três contos do estabelecimento, e obteve-os. Dona
Isaura desistiu da tal casinha. Lembrava agora outra maior, em rua de procissão
— a casa do Eusébio Leite.
— Mas essa é de doze contos — advertiu o
marido.
— Mas é outra coisa que não aquele casebre!
Muito mais bem repartida. Só não gosto da alcova pegada à copa. Escura...
— Abre-se uma clarabóia.
— Também o quintal precisa de reforma em vez
do cercado das galinhas...
Até noite alta, enquanto não vinha o sono,
foram remendando a casa, pintando-a, transformando-a na mais deliciosa vivenda
da cidade. Estava o casal nos últimos retoques, dorme-não-dorme, quando Zico
bateu à porta.
— Três contos não bastam, papai. São precisos
cinco. Há a armação, de que não me lembrei, e os direitos, e o aluguel da casa,
e mais coisinhas...
Entre dois bocejos o pai concedeu-lhe
generosamente seis.
E Zilda? Essa vogava em alto mar de um romance
de fadas. Deixemo-la vogar.
Chegou enfim o momento da partida. Trancoso
despediu-se. Sentia muito não poder prolongar a deliciosa visita, mas
interesses de monta o chamavam. A vida do capitalista não é tão livre como
parece... Quanto ao negócio, considerava-o quase feito; daria a palavra
definitiva dentro de semana.
Partiu Trancoso, levando um pacote de ovos.
Gostara muito da raça de galinhas criadas ali. Também um saco de carás, petisco
de que era mui guloso. Levou ainda uma bonita lembrança, o Rosilho do Moreira,
o melhor cavalo da fazenda. Tanto gabara o animal durante os passeios, que o
fazendeiro se viu na obrigação de recusar uma barganha proposta, e dar-lho de
presente.
— Vejam vocês! — disse Moreira, resumindo a
opinião geral. — Moço, riquíssimo, direitão, instruído como um doutor, e no
entanto amável, gentil, incapaz de torcer o focinho, como os pulhas que cá têm
vindo. O que é ser gente!
À velha agradara sobretudo a sem-cerimônia do
jovem capitalista. Levar ovos e carás! Que mimo! Todos concordaram, louvando-o
cada um a seu modo. E assim, mesmo ausente, o gentil ricaço encheu a casa
durante a semana inteira.
Mas a semana transcorreu sem que viesse a
ambicionada resposta. E mais outra. E mais outra ainda.
Escreveu-lhe Moreira, já apreensivo, e nada.
Lembrou-se de um parente morador na mesma cidade, e endereçou-lhe carta pedindo
que obtivesse do capitalista a solução definitiva. Quanto ao preço, abatia
alguma coisa. Dava a fazenda por cinquenta, e até por quarenta, com criação e
mobília.
O amigo respondeu sem demora. Ao rasgar o
envelope, os quatro corações da Espiga pulsaram violentamente: aquele papel
encerrava o destino dos quatro.
Dizia a carta: “Moreira, ou muito me engano
ou estás iludido. Não há por aqui nenhum Trancoso Carvalhais, capitalista. Há o
Trancosinho, filho da Nha Veva, vulgo Sacatrapo. É um espertalhão que vive de
barganhas e sabe iludir aos que o não conhecem. Ultimamente tem corrido o
Estado de Minas, de fazenda em fazenda, sob vários pretextos. Finge-se às vezes
de comprador, passa uma semana em casa do fazendeiro, a caceteá-lo com passeios
pelas roças e exames de divisas; come e bebe do bom, namora as criadas, ou a
filha, ou o que encontra — é um vassoura de marca! — e no melhor da festa
some-se. Tem feito isto um cento de vezes, mudando sempre de zona. Gosta de
variar de tempero, o patife. Como aqui Trancoso só há este, deixo de apresentar
ao pulha a tua proposta. Ora, o Sacatrapo a comprar fazenda! Tinha graça”.
O velho caiu numa cadeira, aparvalhado, com a
missiva sobre os joelhos. Depois o sangue lhe avermelhou as faces e seus olhos
chisparam.
— Cachorro!
As quatro esperanças da casa ruíram com
fragor, entre lágrimas da menina, raiva da velha e cólera dos homens. Zico
propôs-se a partir incontinenti na pegada do biltre, a fim de quebrar-lhe a
cara.
— Deixa, menino! O mundo dá voltas. Um dia
cruzo-me com o ladrão e ajusto contas.
Pobres castelos! Nada há mais triste que
estes repentinos desmoronamentos de ilusões. Os formosos palácios d’Espanha,
erigidos durante um mês à custa da mirífica dinheirama, fizeram-se taperas
sombrias. Dona Isaura chorou até os bolinhos, a manteiga e os frangos.
Quanto a Zilda, o desastre operou como um
pé-de-vento através da paineira florida. Caiu de cama, febricitante.
Encovaram-se-lhe as faces. Todas as passagens trágicas dos romances lidos
desfilaram-lhe na memória; reviu-se na vítima de todos eles. E dias a fio
pensou no suicídio. Por fim, habituou-se a essa idéia e continuou a viver. Teve
azo de verificar que isso de morrer de amores, só em Escrich.
Acaba-se aqui a história. Para a platéia,
apenas. Para as torrinhas, segue ainda por meio palmo. As platéias costumam
impor umas tantas finuras de bom gosto e tom, muito de rir; entram no teatro
depois de começada a peça, e saem mal a ameaça o epílogo.
Já as galerias querem a coisa pelo comprido,
a jeito de aproveitar o rico dinheirinho até ao derradeiro vintém. Nos romances
e contos, pedem esmiuçamento completo do enredo; e se o autor, levado por
fórmulas de escola, lhes arruma para cima, no melhor da festa, com a caudinha
reticenciada a que chama “nota impressionista”, franzem o nariz. Querem saber —
e fazem muito bem — se Fulano morreu, se a menina casou e foi feliz, se o homem
afinal vendeu a fazenda, a quem e por quanto.
Sã, humana e respeitabilíssima curiosidade!
Vendeu a fazenda o pobre Moreira? Pesa-me
confessá-lo: não! E não a vendeu por artes do mais inconcebível quiproquó de
quantos tem armado neste mundo o diabo. Sim, porque afora o diabo, quem é capaz
de intrincar os fios da meada, com laços e nós cegos, justamente quando vai a
feliz remate o crochê?
O acaso deu a Trancoso uma sorte de cinquenta
contos na loteria. Não se riam. Por que motivo não havia Trancoso de ser o
escolhido, se a sorte é cega e ele tinha no bolso um bilhete? Ganhou os cinquenta
contos, dinheiro que para um pé-atrás daquela marca era significativo de grande
riqueza.
De posse da maquia, após semanas de tonteira,
deliberou afazendar-se. Queria tapar a boca ao mundo realizando uma coisa
jamais passada pela sua cabeça: comprar fazenda. Correu em revista quantas
visitara durante os anos de malandragem, propendendo, afinal, para a Espiga. Ia
nisso, sobretudo, a lembrança da menina, dos bolinhos da velha e a idéia de
meter na administração o sogro, de jeito a folgar-se uma vida vadia de regalos,
embalada pelo amor da Zilda e os requintes culinários da sogra. Escreveu, pois,
ao Moreira anunciando-lhe a volta, a fim de fechar-se o negócio.
Ai, ai, ai! Quando tal carta penetrou na
Espiga, houve rugidos de cólera, entremeio a bufos de vingança.
— É agora! — berrou o velho. — O ladrão
gostou da pândega, e quer repetir a dose. Mas desta feita curo-lhe a balda, ora
se curo! — concluiu, esfregando as mãos no antegosto da vingança.
No murcho coração da pálida Zilda,
entretanto, bateu um raio de esperança. A noite de su’alma alvorejou ao luar de
um “quem sabe?”. Não se atreveu, todavia, a arrostar a cólera do pai e do
irmão, concertados ambos num tremendo ajuste de contas. Confiou no milagre.
Acendeu outra velinha a Santo Antonio...
O grande dia chegou. Trancoso rompeu à tarde
pela fazenda, caracolando o Rosilho. Desceu Moreira a esperá-lo embaixo da
escada, de mãos às costas.
Antes de sofrear as rédeas, já o amável
patife abria-se em exclamações:
— Ora viva, caro Moreira! Chegou enfim o
grande dia. Desta vez, compro-lhe a fazenda.
Moreira tremia. Esperou que o biltre apeasse,
e mal Trancoso, lançando as rédeas, dirigiu-se-lhe de braços abertos, todo
risos, o velho saca de sob o paletó um rabo de tatu e rompe-lhe para cima
ímpeto de queixada.
— Queres fazenda, grandessíssimo tranca?
Toma, toma fazenda, ladrão! — E lépt, lépt, finca-lhe rijas rabadas coléricas.
O pobre rapaz, tonteado pelo imprevisto da
agressão, corre ao cavalo e monta às cegas, de passo que Zico lhe sacode no
lombo nova série de lambadas de agravadíssimo ex-quase-cunhado.
Dona Isaura atiça-lhe cães:
— Pega, Brinquinho! Ferra, Joli!
O mal-azarado comprador de fazendas, acuado
como raposa em terreiro, dá de esporas e foge a toda, sob uma chuva de insultos
e pedras. Ao cruzar a porteira, inda teve ouvidos para distinguir na grita os
desaforos esganiçados da velha:
— Comedor de bolinhos! Papa-manteiga! Toma!
Em outra não hás de cair, ladrão de ovo e cará!
E Zilda?
Atrás da vidraça, com os olhos pisados do
muito chorar, a triste menina viu desaparecer para sempre, envolto em nuvens de
pó, o cavaleiro gentil dos seus dourados sonhos.
Moreira, o caipora, perdia assim naquele dia
o único negócio bom que durante a vida inteira lhe deparara a fortuna: o duplo
descarte — da filha e da Espiga...
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