![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhSBlP0trzs971RMReWwzsSXX1q7vznnqq2DC1Y46cJTVOnesSAprU6Q9sh-cMIK0KGl7v4zfbf46-1URKidjXnMiHVbdP-Qf0pBhHaLwwwTsh2grMsPvOdJgWoFCFq96JyvZY1pS3pkk9N/s1600/hd-taja-contos-Ortigao-680.jpg)
O NATAL MINHOTO
É dia de Natal.
A cidade amanheceu alegre no céu fresco e
azul. Os carrilhões das igrejas repicam festivamente. As salsicharias, os
restaurantes, as pastelarias, ostentam em exposição os seus produtos mais
apetitosos: os grandes porcos, de couro nitidamente barbeado, suspensos do teto
com a cabeça para baixo; as salsichas e os chouriços de sangue pendentes em
bambolim; as cabeças de vitela, de uma palidez linfática, rodeadas de agriões;
os perus gordos como ventres de cônegos, com o papo recheado pela respectiva
cabidela; as galantines marmoreadas; as louras perdizes postas em pirâmide; as
costeletas; as geleias de reflexos cor de topázio; as verduras de salsa picada;
os grossos molhos opulentos dos espargos; os bolos do Natal: os fartes, os
sonhos, os morgados, as filhós, as queijadas, os christmas-kacks, os puddings,
os bombons glacês.
E a profusão destas exposições dá às ruas o
aspeto culinário da abundância, da plenitude.
Os ramalhetes de violetas, com o seu
colarinho feito de duas malvas, estendem-se de todos os lados para as casas dos
paletós, e perfumam o ambiente com uma frescura orvalhada. Os cabazes das
camélias cintilam como grandes esmaltes. As lojas de bijuterias armaram o
grande pinheiro do Natal, cujas hastes desabrocham em cartuchos de amêndoas, em
cartonagens douradas, em animais de quase todas as espécies recolhidas na Arca,
em cabriolets de lata, em cavalos de
cartão, em palhaços vermelhos que tocam pratos, e em lindas bonecas vestidas de
cetim com os seus piifs, os seus chignoiis e os seus regalos.
Lisboa inteira passeia na vasta alegria do
sol. Os homens trazem os seus embrulhos, as mulheres levam os seus filhos pela
mão.
As meninas, vestidas de novo, em grande toilette, frescas como lilases, com os
seus narizinhos rosados pelo nordeste, dirigem-se ao baile infantil, organizado
no salão de um teatro por uma associação de senhoras, em favor de um
estabelecimento de beneficência.
O piano, em alegres esfuziadas, chama à
quadrilha as jovens damas de quatro anos e os pequenos cavalheiros seus pares.
A árvore de Natal braceja as dádivas encantadoras sobre o grande baile em
miniatura...
Ide, queridos amiguinhos, ide divertir-vos!
Aquele que vos fala já foi em tempo — há bom tempo! — aquilo que vós hoje sois,
e teve também a sua festa inteiramente desanuviada, absolutamente feliz como a
vossa. A única diferença é que, nessa remota idade e no obscuro canto da
província em que ele nasceu, a árvore do Natal era ainda uma instituição
desconhecida. Era uma terra bárbara aquela em que este pai-avô veio à luz e que
tantas vezes ele percorreu, já periclitante na imperial de trêmulas e
arrastadas diligências, já a cavalo debaixo de um amplo capote de cabeções, já
a pé, só, com um bordão!
Ele conhecia-a nesse tempo como o seu próprio
quarto, a essa terra; tinha de cor o número das covas no macadame das estradas,
os buracos dos velhos muros por onde rompiam os musgos e as madressilvas, os
brancos campanários das igrejas situadas no fundo dos vales, entre as nogueiras
e os carvalhos, ao cabo dos longos tapetes formados pela superfície variegada
dos campos de trevo. Sabia em que casais se bebia o melhor leite nas manhãs de
Verão, e em que rios se pescavam à linha os salmões mais saborosos e as mais
volumosas trutas. Constava-lhe cada manhã em que outeiros cobertos de urze, de
cardos, de ásperas moitas de tojo e de espessos fetos tinha ficado de véspera a
revoada das perdizes. Conhecia os diferentes vinhos selvagens, que se vendiam
na sombria frescura interior das tabernas recolhidas nos cotovelos das brancas
estradas cobertas de sol, nos recostas das empinadas ladeiras tortuosas, e nas
desembocaduras das longas pontes de madeira de pinho. Sabia os nomes dos abades.
E ainda agora, depois de uma ausência de bastantes anos, pensando nisso e
fechando os olhos, torna em espírito a ver as viçosas várzeas, as frescas matas
das terras fundas, sonoras dos murmúrios da água corrente na rega ou caindo nas
levadas e nas azenhas; a forte vegetação dos milhos e dos castanheiros; e,
acompanhados de um pequeno pastor imundo, a cavalo numa velha égua lãzuda,
alguns poucos bois magros de trabalho e de fadiga atravessando lentamente o
ribeiro, mugindo com saudosa melancolia, ou abeberando-se inclinados e humildes
na frescura da corrente. Depois, nos terrenos altos, os pinhais, as
encruzilhadas das estradas com os seus cruzeiros de granito, as caixas das
esmolas para as almas, o tosco nicho na forma de um armário de cozinha, talhado
em arco, tendo em frente a sua lanterna enfumada, encanastrada num a rede de
ferro e chumbada ao alto do nicho por um gancho; e, disseminados pelos caminhos
recurvos e acidentados, os pequenos eirados seguros em esteios de pedra com os
parapeitos pintados de vermelhão; os alpendres dos ferradores, onde os pardais
debicam nos beirais do telhado; as choças cobertas de colmo, eternamente
envoltas em fumo, ao pé das eiras em que se erguem as medas como altas cabanas
pontiagudas.
O objeto do culto, da admiração, do
entusiasmo, do enlevo dos pequenos do meu tempo era o velho presépio, tão ingênuo,
tão profundamente infantil, tão cheio de coisas risonhas, pitorescas, festivas,
inesperadas.
Era uma grande montanha de musgo, salpicada
de fontes, de cascatas, de pequenos lagos, serpenteada de estradas em
ziguezagues e de ribeiros atravessados de pontes rústicas.
Em baixo, num pequeno tabernáculo, cercado de
luzes, estava o divino bambino, louro, papudinho, rosado como um morango,
sorrindo nas palhas do seu rústico berço, ao bafo quente da benigna natureza
representada pela vaca trabalhadora e pacífica e pela mulinha de olhar suave e
terno. A Santa Família contemplava em êxtase de amor o delicioso recém-nascido,
enquanto os pastores, de joelhos, lhe ofereciam os seus presentes, as frutas,
os frângões, o mel, os queijos frescos.
A grande estrela de papel dourado, suspensa
do teto por um retrós invisível, guiava os três magos, que vinham a cavalo
descendo a encosta com as suas púrpuras nos ombros e as suas coroas na cabeça.
Melchior trazia o ouro, Baltasar a mirra, e Gaspar vinha muito bem com o seu
incenso dentro de um grande perfumador de família, dos de queimar pelas casas a
alfazema com açúcar ou as cascas secas das maçãs camoesas.
Atrás deles seguia a cristandade em peso, que
se afigurava descendo do mais alto do monte em direção ao tabernáculo. Nessa
imensa romagem do mais encantador anacronismo, que variedade de efeitos e de
contrastes! Que contentamento! Que alegria! Que paz de alma! Que inocência! Que
bondade!
Tudo bailava em chulas populares, em velhas
danças mouriscas, em bailados à la moda ou à meia volta, em ingênuas gaivotas,
em finos minuetes de anquinhas e de bico de pé afiambrado.
Tudo ria, tudo cantava nesses deliciosos
magotes de festivais romeiros de todas as idades, de todas as profissões, de
todos os países, de todos os tempos! Os cegos tocando as suas sanfonas; os
pretos pulando uma sarabanda; os galegos com a sua gaite-de-fole dançando a
munem; a saloia de carapuça de bico e de saiote encarnado, trazendo o cesto com
ovos; o saloio com o peru, com o vitelo ou com o bacorinho às costas; o aguadeiro
com o seu barril novo; o ceifeiro com a sua foice e o seu feixe de trigo; o
lenheiro carregando o cepo sagrado para a fogueira da Missa do Galo; o pequeno
saboiano com a sua marmota; o tocador de realejo dando à manivela do seu
instrumento; o pastor com um borrego ou um chibo debaixo do braço; o
passarinheiro com as suas esparrelas e o seu alçapão com um melro dentro; a
manola com o seu leque e a sua mantilha sevilhana traçada na cinta; o maioral
tocando a guitarra sentado no garrido albardão da sua mula; os gitanos entoando
a seguidilha; numerosos rebanhos, de perus, de patos, de anhos, de porcos e de
cabritos; e muitas personagens, de variegados trajos exóticos, tangendo
pandeiros, adufes e castanhetas, como nos autos pastoris, nos colóquios e nos
vilancicos, antigamente representados diante das lapinhas nas catedrais da
Idade Média.
Alguns — os mais ricos presépios — tinham
corda interior fazendo piar passarinhos que voavam de um lado para o outro,
mexiam as asas e davam bicadas nas fontes de vidros, em que caía uma água
também de vidro, fingida com um cilindro que andava à roda por efeito de
misterioso maquinismo.
Todas essas figuras do antigo presépio da
minha infância tinham uma ingênua alegria primitiva, patriarcal, como devia ser
a de David dançando na presença de Saul. Dessas boas caras de páscoas, algumas
modeladas por inspirados artistas obscuros, cuja tradição se perdeu, exalava-se
um júbilo comunicativo como de uma grande aleluia.
Um outro menino — não o do tabernáculo, que
esse estava seguro ao berço com um parafuso —, um menino maior, sobre uma
toalha bordada, era trazido em roda e recebia sobre os seus diminutos pés
polpudos, saudáveis, rubenescos, a enfiada de beijos de todas as pequenas bocas
inocentes, vermelhas, afiladas em bico, gulosas dos refeguinhos daquele
pequenino Deus tão louro, tão manso, tão lindo!
Depois celebrava-se a ceia, o mais solene
banquete da família minhota. Tinham vindo os filhos, as noras, os genros, os
netos. Acrescentava-se a mesa. Punha-se a toalha grande, os talheres de cerimônia,
os copos de pé, as velhas garrafas douradas. Acendiam mil luzes nos castiçais
de prata. As criadas, de roupinhas novas, iam e vinham ativamente com as rimas
de pratos, contando os talheres, partindo o pão, colocando a fruta, desrolhando
as garrafas.
Os que tinham chegado de longe nessa mesma
noite davam abraços, recebiam beijos, pediam novidades, contavam histórias,
acidentes da viagem; os caminhos estavam uns barrocais medonhos; e falavam da
saraivada, da neve, do frio da noite, esfregando as mãos de satisfação por se
acharem enxutos, agasalhados, confortados, quentes, na expectativa de uma boa
ceia, sentados no velho canapé da família.
E o nordeste assobiava pelas fisgas das
janelas; ouvia-se ao longe bramir o mar ou zoar a carvalheira, enquanto da
cozinha, onde ardia no lar a grande fogueira, chegava num respiro tépido o
aroma do vinho quente fervido com mel, com passas de Alicante e com canela.
Finalmente o bacalhau guisado, como a
brandade da Provença, dava a última fervura, as frituras de abóbora-menina, as
rabanadas, as orelhas-de-abade tinham saído da frigideira e acabavam de ser
empilhadas em pirâmide nas travessas grandes. Uma voz dizia: — Para a mesa!
Para a mesa!
Havia o arrastar das cadeiras, o tinir dos
copos e dos talheres, o desdobrar dos guardanapos, o fumegar da terrina.
Tomava-se o caldo, bebia-se o primeiro copo de vinho, estava-se ombro com
ombro, os pés dos de um lado tocavam nos pés do que estavam em frente. Bom
aconchego! Belo agasalho!
As fisionomias tomavam uma expressão de
contentamento, de plenitude. Que diabo! Exigir mais seria pedir muito. Tudo o
que há de mais profundo no coração do homem, o amor, a religião, a pátria, a
família, estava tudo aí reunido numa doce paz, não opulenta, mas risonhamente
remediada e satisfeita. Não é tudo?
Não é. O primeiro dos convivas que tinha o
sentimento dessa imperfeição era a velhinha sentada ao centro da mesa. Ela, que
para nós representava apenas a avó, tinha sido também a filha, tinha sido a
irmã, tinha sido a esposa, tinha sido a mãe ... No seu pobre coração, quantos
lutos sobrepostos, quantas saudades acumuladas! Por isso, enquanto os outros
riam e conversavam alegremente, a mão dela emagrecida e enrugada tremia de
comoção ao tocar no copo, e dos seus olhos cansados despegavam-se
silenciosamente duas lágrimas, que ela embebia no guardanapo enquanto a sua
boca procurava sorrir e titubear palavras de resignação, de conforto, de
felicidade.
Essas lágrimas eram como a evocação do
espírito dos ausentes e do espírito dos mortos para aquele banquete. A festa
era então interrompida por silêncios graves, pensativos, durante os quais cada
um se recolhia em si mesmo e olhava um pouco ao passado e um pouco ao futuro.
Dos que se tinham sentado àquela mesa, em
idêntica noite, quantos tinham partido para não voltarem mais! Quantas lacunas
dentro dos últimos anos! Dentro de alguns anos mais, quantas outras!
Se havia, como quase sempre sucede, um filho,
um neto, um irmão ausente, era em volta da recordação dele que se agrupavam e
fixavam esses vagos cuidados dispersos. A mágoa do passado, a incerteza do
futuro, acabava por aparecer a cada um sob a figura aventurosa do viajante
intrépido ou do trabalhador vigoroso que celebrava aquela noite num país
longínquo ou nas águas do mar.
E esse amado ausente era o conviva que cada
um sentia mais perto, a essa mesa, junto do seu coração.
Só nós, as crianças, é que gozávamos nesta
festa uma alegria imperturbável e perfeita, porque não tínhamos a compreensão
amarga da saudade nem as preocupações incertas do futuro. Para nós tudo na vida
tinha o caráter imutável e eterno. O destino aparecia-nos ridentemente fixado,
como no musgo as alegres figuras do presépio. Supúnhamos que seriam eternamente
lisas as faces da nossa mãe, eternamente negro o bigode do nosso pai,
eternamente resignada e compadecida a decrépita figura da nossa avó, toucada
nas suas rendas pretas, no fundo da grande poltrona.
Não tínhamos compreendido ainda todo o
sentido do Natal. Não nos tinham explicado suficientemente que o louro Menino Jesus
que nos sorria no seu berçinho, tão descuidado, tão alegre, no meio do
esplendor dos círios e do perfume das violetas, era o mesmo Deus descarnado e
lívido, coroado de espinhos, alanceado no coração, pregado na cruz e exposto no
altar. Repugnar-nos-ia acreditar, se então no-lo dissessem, que o tenro e suave
bambino do presépio, cercado de amores, de cânticos, de festas, de dádivas, de
bonitos, cheio de carícias e de beijos, teria um dia de ser um mártir, um
herói, um Deus, mas que para isso haveriam de o perseguir como um rebelde, de o
torturar como um criminoso, de o justiçar como um bandido, que ele teria de ser
esbofeteado, azorragado, traído, que receberia o beijo de Judas, que seria
preso entre os seus discípulos no Jardim das Oliveiras, que mandaria embainhar
a espada de Pedro para beber o cálice da amargura, que seria levado de Caifás
para Pilatos, que seria condenado, que lhe poriam a coroa de espinhos, que o
fariam subir o Calvário sob o peso da cruz, que finalmente o crucificariam
entre os dois ladrões aos olhos da sua própria mãe.
Não, a vida não é uma festa permanente e
imóvel, é uma evolução constante e rude. O Natal é a festa das lágrimas para
todos aqueles para quem ele não é a festa da inexperiência. E, todavia,
pensavam alguns que era útil não deixar de a celebrar. Que importa que o número
ou que o nome dos convivas varie em cada ano? Que importa que alguns amados
velhos faltem ao banquete? Que importa que nós mesmos faltemos para o ano que
vem na festa dos mais novos?
Esta noite de alegria para as crianças será
sempre de alguma saudade para os adultos. Assim teremos a esperança terna de
sobreviver, por algum tempo, na lembrança dos que amamos — uma boa vez ao
menos, de ano a ano.
---
In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
---
In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Meu tio avô relata como ninguém aquilo que todos nós desejamos...nunca se perca o ESPÍRITO DE NATAL ...
ResponderExcluirMesmo que o consumismo reine e impere....Unamos os nossos corações para que a Paz e e o Amor floresçam para sempre.