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O PRESÉPIO
Havia quase um ano que estava na loja, mercearia num bairro escuro, em que mal entrava de esguelha, como espreitando a medo, um raio de sol, entre as casarias muito altas da rua tortuosa.
Com doze anos, que saudades tinha da aldeia,
da família, dos antigos companheiros de escola, dos cães amigos que ladravam de
noite a vigiar a casa!
Tudo lá tão longe! Ah! Se ele soubesse!...
Pois nem uma lágrima lhe viera anuviar o
último adeus, quando a diligência dera volta na estrada e ele vira sumirem-se
os choupos da ribeira e o lenço que mão saudosa sacudia no alto do cabeço.
É que o deslumbrava a ideia de Lisboa, de que
tantas maravilhas grandes lhe contavam. Ainda agora partia, e já se via de
volta na aldeia, de relógio e cadeia de ouro, a falar de alto, a puxar o
bigode, a dar enchente, como o Januário, que lhe arranjara o lugar.
Com o seu examezinho de instrução primária,
marçano de uma tenda... Não, que os pais não o queriam para cavador.
Tinham sido consultados o mestre-escola, o
prior, o senhor Freitas, lavrador muito importante que arrastava tudo nas
eleições, o Custódio, velhote de muito bom conselho, e todos se tinham mostrado
de acordo: não havia como Lisboa para fazer um homem. Era ver o Januário que
tinha casado com a viúva do patrão. A loja era de um cunhado dele, bom homem,
áspero mas bom homem. Os olhos baixos do Manuelzito, fitos no chão, viam no
tijolo resplandecer auréolas, que giravam como o fogo de vistas pelas festas.
Ah estava, havia quase um ano; e no desvão da
escada, onde às dez horas o mandavam deitar, a morrer de calor no Verão, no
Inverno a morrer de frio, punha-se a rever os campos e a casa deixados sem as
lágrimas, que lhe corriam agora em grossos fios pelas faces.
Os primeiros dias tinham passado muito
lentos.
A conselho do Januário, um biscoito ou outro
da mão papuda e oleosa do merceeiro tinham-no ajudado na tarefa. Assim é que
ele havia de ser homem, um dia. Mas o patrão mostrava maior pressa.
Pai, mãe e mestre-escola nunca lhe tinham
batido. Atreveu-se uma vez a declará-lo. Foi pior. Chegou o Verão. As festas de
São João e São Pedro aumentaram-lhe a tristeza. Reviu nesses dias mais
intensamente a alegria da aldeia, os bailes à noite em volta da fogueira, a ida
à fonte pela manhã, o sino a tocar à missa, e ele a pensar que, quando fosse
crescido, havia de ter uma namorada por quem queimasse uma alcachofra, a quem
cantasse umas quadras falando de estrelas e de flores.
A bulha nas ruas, nessas noites, não o
deixara dormir. Cada bomba era uma pancada no coração. Um sol-e-dó que passou
tocando arrancou-lhe lágrimas de imensa saudade.
Pelos Santos, com a melancolia do tempo,
ainda foi pior.
Depois veio o Inverno, começaram os dias de
chuva.
O mau tempo irritava o patrão, porque lhe
afugentava fregueses. Na loja, com recantos muito negros, acendiam-se muito
cedo os candeeiros, e o Manuelzito tinha pena da sombra em que se acolhia com
maior amor. Pasmava os olhos, fugia com o pensamento para muito longe.
— Acorda, ralaço! — gritava-lhe o patrão.
Estava a chegar o Natal.
Que lindo era o Natal lá na aldeia!
Andavam na rua a abrir um cano; quase ninguém
ali passava; os passeios eram cheios de lama. O patrão andava furioso.
Então o pequeno teve uma ideia.
* * *
Lembrou-se de fazer muito misteriosamente um
presépio. O segredo em que havia de trabalhar mais o animava na tarefa.
Todos os dias, muito a medo, enquanto o patrão
almoçava ou saía da loja algum instante, vinha à porta, se não havia freguês a
servir, espreitava, corria, apanhava um nadinha de barro nas escavações do
cano. Escondia-o, e debaixo do balcão, quase às apalpadelas, ia fazendo as
figurinhas.
Assim modelou o menino Jesus, que deitou num
berço de caixa de fósforos, Nossa Senhora de mãos postas, São José de grandes
barbas, os três Reis Magos a cavalo, e os pastores, um a tocar gaita de foles,
outro com um cordeirinho às costas, e uma mulher com uma bilha. Não se
pareceriam lá muito; mas ele deu provas de que sabia puxar pela imaginação.
Sempre lhe faltava alguma coisa. Havia
problemas difíceis de resolver.
Um dia, engraxando as botas do patrão,
lembrou-se de engraxar um dos reis, e pôs-lhe depois umas bolinhas brancas, de
papel a fingir os olhos.
Aos anjos fez asas com as penas de uma
galinha que depenou para um jantar de festa que não comeu. Moeu vidro para
fingir as águas do rio, e no papel de embrulho recortou um moinho que só havia
de armar à última hora.
Levou nisso parte de Novembro e Dezembro
todo, até ao Natal.
Escondia os materiais debaixo da enxerga e,
de vez em quando, revia-se na obra.
O que mais o encantava era o menino Jesus,
com a cabeça do tamanho de um grão de milho, com buraquinhos a fingirem olhos,
ouvidos, nariz e boca. Tinha mãos com cinco dedos riscados a canivete e dois
pezinhos que ele achava um encanto.
Com tiras de papel azul havia de fazer o céu
e, como o não tinha dourado onde recortasse a estrela, fez em papel branco uma
meia Lua; vinha quase a dar na mesma
Aquele mês passou correndo.
Era a véspera do Natal. As dez e meia, o
patrão mandou-o deitar e saiu.
Que alegria estar só!
Não lhe deixavam luz; mas que importava? Às
escuras armaria o presépio. E logo começou. Enrolou o moinho, pôs-lhe as velas;
esticou o papel azul que fingia o céu e pregou nele com um alfinete a meia Lua;
espalhou o vidro moído, num S em volta das palhas; dispôs as figurinhas,
suspendeu os anjos. Depois fez uma carreira de fósforos de cera, que todos se
tinham de acender ao mesmo tempo, num deslumbramento, quando desse meia noite.
Deram onze e três quartos.
Ajoelhou.
Batia-lhe o coração, que lhe parecia que
deviam de ser milagrosas as figurinhas, que delas lhe viria algum bem,
consolação da sua vida triste.
Que seria quando ele iluminasse o desvão da
escada e os santinhos se pusessem todos a luzir quase tanto como os
verdadeiros? Rezava-lhes... Rezava-lhes... Àquela hora, lá na aldeia, tocavam
os sinos alegres e iam ranchos contentes a caminho da igreja. Lá dentro reluzia
o trono, e o sacristão muito atarefado ia, vinha...
Meia noite!
Acendeu os fósforos e ficou embasbacado!
Nunca assim vira coisa tão perfeita. Os anjos
voavam deveras, os cavalos dos reis galopavam, o rio corria, as velas giravam
no moinho e os pontinhos do Menino Jesus sorriam-lhe no rosto a São José e a
Nossa Senhora!
Pôs-se a cantar, como lá na aldeia:
Andava nessas campinas,
Esta noite, um querubim.
Tão enlevado cantava, que nem ouviu o patrão abrir a porta, entrar na loja, chegar ao desvão.
Acordou-o do êxtase um pontapé.
— Isso... Agora larga-me fogo à escada!...
Varre-me já esse lixo!
E ele, a chorar, levantou-se, foi buscar a
vassoura.
O bruto continuava aos pontapés.
— Vá?... Vá!
Mas quando se deitou, encontrou na enxerga
uma figurinha. Apalpou-a, conheceu-a logo: era a do Menino Jesus. Beijou-a
muito. Pior vida levara do que ele...
Sentiu de repente um dó muito grande do
patrão, que não vira nada, nem que era tão bonito aquele Menino, com um olhar
tão meigo nos seus olhinhos picados.
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In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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