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A CONSOADA
Tinham chegado, havia um instante, da igreja.
No silêncio álgido da noite retinia ainda
alegre o bimbalhar dos sinos. A mesa estava posta — velhos candelabros de
cobre, acesos sobre a alva toalha imaculada, e em volta de cogulo fumegando as
iguarias. Na cal fendilhada da parede resplandecia, esta noite carinhosamente
festoada de flores, uma grande oleografia, em retábulo dourado, de uma das
celebradas Virgens de Murillo, fresca, menineira, a alma toda nos olhos, e em
volta pelas nuvens sua graciosa farândola de amorinhos cor-de-rosa. O ar estava
tépido, embalsamado. E no retângulo negro das vidraças a opaca radiação da
noite, basto rasgada pelos farrapos da neve que caía, realizava visualizações
fantásticas, luarentos contrastes de diorama.
Toca de arrimar na cozinha, ao canto da
chaminé, os guarda-chuvas pingando, largam-se as capas, descalçam-se as
galochas, ruidosamente sacodem-se os vestidos; enquanto de rodilhão invade a
sala a tropeada cantante das crianças; e erguendo-se de salto do escabelo, a
esfregar os olhos, a velha serva Leonor, perdida de sono, resmoneia num alívio:
— Ora louvado seja Deus!
E já à mesa o bom do Simeão se dirigia,
direito à grande poltrona de couro. Toma-lhe a direita sua mulher —
irrepreensível companheira de cinquenta anos —, uma pequenina e interessante
nonagenária, de vagos olhos espirituais e longas mãos de cera; e à esquerda
senta-se-lhe a sua boa e paciente Eugênia, a filha mais nova, de preto,
fisionomia macerada e longa, repassada toda desta austera diafanidade tranquila
que é feita de castidade e abstenção, de isolamento e saudade. Seguia a
variegada profusão de toda a mais parentela — os filhos que vieram de longe,
empregados no comércio, na magistratura, no Governo Civil em Viseu; um cunhado,
capitão do 14; as respectivas esposas, tias, sobrinhas, primas — ao todo trinta
e tantos comensais, afora a galhofeira e turbulenta assistência das crianças,
que redonditas e chilreantes se aninhavam sobre almofadas postas nas cadeiras,
avançando o queixo, cotovelos na toalha, e abrindo para as travessas com os
doces uns grandes olhos ávidos.
Nos primeiros minutos, um guloso silêncio se
intervalou, cortado apenas do discreto tinir de louças e metais. Só o velho
patriarca de carinho insinuou à filha:
— Eugênia, então! Vá de pesares hoje...
E ela, com infinita tristeza:
— Eu não lhe dizia, pai?...
E esmorecida arredava de diante de si o
prato, para melhor apoiar na mesa o cotovelo, de antebraço ao alto, e de peso o
rosto afogado no lenço, a breve trecho empapado de lágrimas.
Era casada à quase sete anos.
Casada com o José Ventura, um honrado e
perfeito rapaz, vizinho seu na cidade, cuja garbosa imagem logo os seus olhos
infantes se tinham acostumado a ver inseparável dos brinquedos. Depois, na
adolescência, a mesma comunicativa e franca liberdade afeiçoara-lhes os
corações, irmanando-lhes os destinos. Falado o casamento o rapaz era sério,
honesto, trabalhador, tinha bens bastantes —, os pais da Eugênia consentiram.
Em boa hora, mercê de Deus! Ao cabo de três anos de inalterável bonança
conjugal, três inocentes eram o vivo penhor do seu afeto.
Mas as coisas da vida iam mal... Pegara brava
a moléstia nas oliveiras e nos castanheiros, o “míldio” acabava de lhe devastar
a vinha, já os estrangeiros lhe não visitavam a adega, o “pulgão” comia-lhe as
searas. A continuarem as coisas por aquele pendor, era uma fatalidade! — Tinha
ali assim três anjinhos... E o mais que viria... Tinha obrigação de lhes deixar
que comer!
Depois de muita hesitação, muita tormentosa
luta interior, muita lágrima represada — não havia remédio... Dolorosamente
concertou com a mulher e partiu para Lourenço Marques. E ela, a pobre, ficou-se
em casa dos pais, paralelamente morta para o exterior, para a luz, para a
alegria, arrastando, como um burel, a sua resignada saudade, paresiada na
mansidão de uma irremediável tristeza.
Com uma resignação' de freira, alheia por
completo ao mundo, vivendo na perpétua lembrança do marido, na exclusiva
preocupação dos filhos, passou anos Eugênia sem sair de casa, levando uma vida
toda crepuscular, na inteira abdicação do seu querer, colada ao dever como a
lapa ao rochedo, iluminada e forte sempre a alma do alimento ázimo do Passado,
o seu fino rosto austero idealizado por uma transcendente, uma inabalável
expressão de confiança e de doçura... Sem um queixume, sem uma revolta, sem uma
indignada apóstrofe ao Destino, ela sofria mas esperava, esperava sempre...
Forte dessa poética submissão, dessa fidelidade sem termo, essa irredutível e
santa conformidade de que a nossa província ainda conserva o segredo. Embalde
vinham as amigas desafiá-la: “que estava dando cabo de si... Não tinha jeito
nenhum... Que faria se fosse viúva!” Esquivava-se invariável às mais inocentes
diversões. Ouvia, ouvia tudo, num desdenhoso silêncio, e ao cabo abanava
negativamente a cabeça, cerrando as pálpebras.
Escrevia amiúde o marido. Sempre cartas
consoladoras, ainda era o que valia! Passados os dois primeiros anos, estava
fazendo rapidamente fortuna. Tivera uma hospedaria; agora era já senhor de
prédios, tomava empreitadas de construções, era grande acionista de uma
companhia mineira.
O Simeão esfregava as mãos, contente, e
exclamava, descendo aos netos os olhos úmidos:
— Abençoada resolução!
Eugênia, porém, nas suas cartas, extensos e
adoráveis breviários de coisas de família — a saúde dos pais, a saudade que a
ralava, os progressos, as graças, as doenças dos filhinhos —, passava sempre de
alto, num leve roçagar de desdém, pela questão de interesses, e invariavelmente
terminava com esta frase:
— Quando te tornarei eu a ver?...
Ultimamente anunciara ele uma próxima vinda à
metrópole — para matar saudades, para revigorar a saúde. Dizia o paquete em que
vinha, designava o dia da partida. Foi então na modesta casa do rossio de Pinhel
uma alegria doida... Não se falava noutra coisa; aos quatro ventos da cidade se
confiou a consoladora notícia. Dia por dia com alvoroço se contava o tempo de
viagem do vapor. Liam-se com avidez no Século os telegramas marítimos, a ver
quando davam conta das sucessivas estações da sua rota. Sem entender nada de
geografia, arranjou no entanto Eugênia um mapa, e aí, de olhos úmidos, como de
instinto ia seguindo o progressivo e moroso avançar do ídolo da sua alma. Fez
roupitas novas aos pequenos, para aparecerem ao pai. Dava repetidas ações de
graças ao Céu; o seu entusiasmo, a sua fé, o seu amor não conheciam limites.
Pela mais feliz das coincidências, acontecia
que o seu José devia ter desembarcado na véspera em Lisboa, e chegaria a casa
portanto exatamente naquela mesma noite de Natal! Eugênia queria de força ir,
com os filhos, esperá-lo abaixo, à estação, a Vila Franca das Naves.
Entretanto, frustrou-lhe a resolução a inclemência do tempo. A família opôs-se.
— Sempre eram 18 quilômetros
de mau caminho, desabrigado, ínvio... E a chuva, o vento, a neve... Uma
imprudência! Seria o mesmo José o primeiro a censurar... — Resignou-se portanto
a ficar. Mandaram-lhe à estação a melhor alimária de cavalaria que havia na
terra, a mula do senhor abade, cedida com a mais pronta decisão; e para o
espírito inquieto, para a alma ansiosa de Eugênia se foram então fechando
interminavelmente as horas. Repercutia-lhe doloroso o bater da pêndula no
pulsar do coração, e o seu adorado marido não vinha!
Por fim, perdera já por completo a esperança.
E agora à mesa perante a ingênua e comunicativa alegria do momento, a dolorida
tristeza da sua alma cerrava-se cada vez mais intensa e mais profunda.
***
Entretanto, continuava meigamente o pai a
querer animá-la:
— É que o vapor não entraria a barra ontem,
filha... Isso que admira, com o mau tempo que faz?...
— Sei lá o que foi!
— É isto. Não podia ser outra coisa... Se
tivesse entrado, bem vês... O comboio passa em Vila Franca às 8... Depois, pra
cima, a mula do senhor abade desunha bem... São três horas da estação aqui.
— Ora! Nem que viesse a pé... — corroborou o
capitão — já estava farto de cá estar!
— Tudo isto é assim, tudo muito belo... —
redarguiu, apreensiva, Eugênia — mas é que eu não faço senão pensar...
— E de repente, depois de uma hesitação, com
ar aflito: — Ai, Deus do Céu! Receio muito que lhe tenha sucedido alguma
coisa...
— Então porquê?... — interrogou mansamente,
com uma bondosa doçura incrédula, do outro lado do Simeão, a espiritual
velhinha.
— Ora, a mãezinha bem sabe... As mulas diz
que são amaldiçoadas. Antes queria que lhe tivessem mandado outro animal!
Porque não pediram ao médico?
— Está sempre a precisar... — aclarou o pai.
— Isso são histórias!
— Não são tal! — insistiu Eugênia com vigor.
— No Presépio a vaca chegava palhinhas ao Menino, para o agasalhar, e vai a
mula comia-as. Por isso a Senhora a amaldiçoou.
— É verdade! É verdade! Assim diz a mestra...
— aqui acudiu com interesse o filho mais velho, o Josezito, abrindo em claras
convicções os olhos.
— Pois sim, filha... — insistia com amor o
velho a derivar — mas come...
— Não tenho vontade...
Estes bolos de bacalhau.., estão ótimos!
— A mim amargavam-me como piorno!
E o bom do pai, largando a travessa,
desistia.
— Valha-te Deus! — E, sempre no empenho de espertar
a animação, arredando daquela festa as sombras, agora interrogava o neto: —
Então que histórias foram essas que te ensinou a mestra?
— Sim senhor! — acudiu pronta a criança, com
o mesmo tom de convicção escampe. — Sei essa história toda da fugida pró Egito.
Ainda há mais coisas... Ao atravessar a burrinha um tremoçal, quase seco, as
ervas faziam muito barulho, dando sinal aos perseguidores... E vai a Senhora
amaldiçoou-as também.
— Meu anjinho! — exclamou com ternura a avó
desvanecida.
— E também está amaldiçoada a perdiz —
continuou muito sério o rapaz. — Só a pena...
— Conta lá... — disse-lhe a mãe,
momentaneamente distraída.
— Foi assim... Quando Nossa Senhora fugia, um
bando de perdizes, levantando-se-lhe na frente, assustadas, espantou-lhe a burrinha
e deu sinal ao inimigo. Vai a Senhora exclamou: “Malditas sejais!” São José
perguntou: “Por inteiro, carne e tudo?” E a Virgem respondeu: “Não, coitadas! A
carne, não... Só as penas.”
Aplaudiram todos, encantados, o pequenino
narrador, cujos lábios de cereja a mãe comia de beijos.
De súbito — que estranho estrupido é este?! —
no pleno sossego daquela hora alta, áspero e vibrante ressoou no pátio um
significativo tropear de ferraduras. Logo um trinado silvo familiar, num
segundo, quando, à instantânea impulsão do espanto, mal tinham tido ainda os
convivas tempo de se erguer da mesa, já o José Ventura invadia de rompão a sala
e estrangulava a mulher de comoção nos braços, balbuciando entre soluços de
escachoante amor:
— A Geneta! A minha querida Geneta!
Enquanto, pequeninos e dobrados, todos em
lágrimas, dele se aproximavam os pais, trêmulos na ansiosa suplicação de uma
carícia; e aturdida, boquiaberta, a velha Leonor exclamava, limpando os olhos à
serguilha do avental:
— Parece mentira!
— Mentira me parece a mim mas é eu estar de
volta outra vez! — bradava na veemência da sua ardente emoção o rapaz.
— Aqui assim na nossa casa... Junto da minha
mulher, dos meus filhos, dos meus velhos, dos amigos!...
E ia e vinha, a um e outro lado, irrequieto,
gárrulo, feliz... Dava abraços, palmadas, beijos, entregava-se,
dispersava-se... Num trasbordar suave de efusão prodigalizava o melhor e o mais
íntimo do seu ser, irreprimivelmente expandia a sua sentimentalidade represa de
tantos anos.
— Mas que horas são estas de aparecer?...
— Com efeito!
— Já ninguém fazia conta de ti!
— Que ralações aqui iam!...
— Faço ideia... Bem me lembrou! — disse o
José Ventura, olhando com amor a mulher. — Mas que querem?... O comboio vinha
atrasado, os caminhos estão péssimos!
— Louvado seja Deus Nosso Senhor! — murmurou
de mãos postas a santa velhinha, considerando o filho.
— Como tudo isto me parece bem! — exclamou
num ímpeto o recém-chegado, sentando-se, com todos os mais, à mesa. — Que bela
compensação a todas as minhas penas e trabalhos! Que saúde ao corpo, que
refrigério à alma!
— Comes? — perguntou-lhe o pai.
— Ai, não! Trago uma fome de pedras... Vou já
começar aqui por estes ovos verdes.
— Agora também eu como! — rompeu, sentando-se
junto dele, a mulher.
E reatando conversa, patriarcalmente, como se
de princípio também ali estivesse, como se nada de anormal, desde o começo da
ceia, se houvera ali passado, disse ainda, todo natural, o José:
— Mas que conversa era essa então com que
estavam, de maldições?... Eu ainda ouvi...
— Falava-se de quando foi da fuga da nossa
Senhora, com São José e o Menino. Diz que ela amaldiçoara então a mulinha do
Presépio, os tremoços, as perdizes...
— E então dos noitibós e das cotovias, não
sabem?... Disse o José, sorrindo.
— O quê!?
— Ainda me lembro!
— Sabes mais do que nós...
— Pois então! Contava-me aquela nossa
criadita velha, a Emília... Ora espera, como era?... Ah! Quando Nossa Senhora
ia a caminho, os bisbilhoteiros dos noitibós iam na frente, a gritar: “Ela aqui
vai! Ela aqui vai!” E atrás as cotovias, apagando as pegadas da burra com as
patitas, diziam: “Mentira! Mentira!” Por isso Nossa Senhora abençoou estas e
amaldiçoou aqueles.
— É verdade, mamã? — perguntou com interesse
o Josezito.
— O papa nunca mente.
E a cada instante o papá, radiante, cheio de
si, na amorosa incidência da atenção de todos, e com os filhos pendurados em
cacho dos ombros, do colo, do pescoço, demandava a mulher com os olhos rasos de
água, numa expressão fundente de ternura:
— A minha Geneta!
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In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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In: Contos de Natal Portugueses. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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